«No dia 13 de Agosto, algumas dezenas de mulheres afegãs, de rostos destapados, manifestaram-se diante do Ministério da Educação, em Cabul, exigindo o direito a "trabalhar, estudar e ser livre". Gritaram por justiça: "Estamos fartas de ignorância". A manifestação foi dispersa pela polícia com a esperada violência, incluindo tiros para o ar. Algumas ficaram retidas por longas horas.
O protesto ocorreu dois dias antes do primeiro aniversário da tomada de Cabul pelos Taliban, a 15 de Agosto de 2021, depois da retirada precipitada das forças americanas. As fotografias da manifestação mostram mulheres de todas as idades. "Dispersaram as raparigas, quebraram as nossas bandeiras e confiscaram os telemóveis", diz à AFP uma das organizadoras, Zholia Parsi. Munisa Mubariz garantiu à mesma agência de notícias que iam continuar a lutar pelos direitos das mulheres. "Mesmo que queiram, os Taliban não vão conseguir calar-nos, vamos continuar a protestar a partir de casa."
As mulheres e as raparigas afegãs não podem sair de casa, a não ser com uma justificação e de burka. Deixaram de poder ir à escola. Foram afastadas de muitas profissões. Voltaram à vida que tinham antes de 2001, quando o regime Taliban governava o país, antes da intervenção americana na sequência do 11 de Setembro. Durante 20 anos, puderam fazer o que quiseram. São médicas, professoras, investigadoras, polícias, militares, jornalistas, vendedoras, cozinheiras. Habituaram-se a viver em liberdade. Hoje, voltam a ser quase nada. A diferença é que se habituaram a uma vida livre. Vão continuar a protestar.
Não sabemos exactamente, caro leitor, cara leitora, como é hoje a vida delas, de novo confinadas e subordinadas aos maridos, aos pais, aos irmãos. Imaginamos que deve ser miserável. Em casos de violação do decreto que as remete ao estatuto de reclusas, o homem responsável por elas pode ser sujeito a uma multa ou mesmo a uma pena de prisão. Foram encerrados todos os abrigos para mulheres maltratadas em casa.
Mesmo assim, a imprensa internacional dá conta de que as mulheres activistas continuam a reunir-se em segredo e a organizar protestos como aquele que aconteceu a 13 de Agosto. Quando tomou o poder, o regime taliban prometeu à comunidade internacional governar o Afeganistão "ombro a ombro" com as mulheres. Como era previsível, o seu comportamento não mudou. A sociedade afegã mudou tremendamente. A resistência será muito maior.
Nos últimos 20 anos, uma nova geração de afegãos cresceu num país que estava em contacto com o resto do mundo, teve acesso a informação relativamente livre e a um estilo de vida liberto de constrangimentos. Quase dois terços da população têm menos de 25 anos. O choque será muito maior. O Ocidente não pode ignorar o que sentem, nem a repressão bárbara a que são sujeitas as mulheres que prometeu defender em múltiplas ocasiões, fechando os olhos ao seu destino, porque foi a presença americana e da NATO que lhes garantiu essa vida.
Algumas mulheres conseguiram fugir aquando da retirada caótica dos EUA e já depois disso. Reconstroem as suas vidas em Dublin, São Paulo, Roma, Nova Jersey, Londres ou Nice, onde foram sendo acolhidas. A revista americana Times localizou algumas delas. Conta as suas vidas, que não são fáceis. Não desistem. Sonham em voltar ao seu país. Choram pelos seus familiares que lá ficaram. Mandam dinheiro. São "histórias de esperança, de medo e de resistência".
O Afeganistão vive a sua maior crise humanitária de sempre.
Salma, 34 anos de prisão
Em Riad, a 9 de Agosto, Salma Al-Chehad, que deveria estar a concluir o seu doutoramento em Medicina Dentária na Universidade de Leeds, foi condenada a 34 anos de prisão por ter partilhado mensagens a defender os direitos das mulheres numa conta do Twitter. "Liberdade para os presos de consciência e para todas as pessoas que são oprimidas no mundo". É a mais longa pena infligida até hoje a uma mulher em Riad.
Salma foi condenada, entre outros "crimes", pelas suas mensagens de apoio a Lujain Al-Hathlul, que militava pelo direito das mulheres sauditas a conduzirem e que foi condenada a três anos de cadeia. Depois da sua prisão, Salma não teve direito a um advogado, foi mantida em isolamento durante 13 dias, privada de receber a família durante 70 dias. Esperou 285 dias antes de ser apresentada a um juiz. "Devia ter sido apresentada à justiça ou libertada depois de 180 dias", disse ela própria aos juízes, remetendo-os para a lei saudita.
Em 2021, já lhe tinha sido aplicada uma pena de seis anos. Estava a estudar no Reino Unido e a pena foi comutada para a proibição de sair da Arábia Saudita pelo mesmo período de tempo. Tinha sido presa durante uma visita ao seu país e acusada de "fornecer apoio àqueles que querem perturbar a ordem pública e difundir informações falsas e maldosas". Salma pertence a uma minoria xiita num país de domínio sunita.
Desta vez, os juízes aplicaram-lhe uma pena de prisão 14 anos mais longa do que a que foi aplicada ao principal responsável do comando que assassinou e desmembrou o jornalista e dissidente saudita Jamal Khashoggi no consulado saudita em Istambul. O ódio dos fundamentalistas islâmicos às mulheres é incomensurável. A coragem de muitas delas é extraordinária.
As mulheres ucranianas resistem à brutal invasão do exército russo de todas as maneiras possíveis. Lutam e morrem em combate. Salvam vidas nos hospitais. Tentam manter escolas a funcionar. Fazem o que podem e o que não podem para manter as suas famílias a salvo. Não desistem de levar uma vida normal no meio da anormalidade e da violência da guerra. São heroínas todos os dias. Não perdem a esperança.
O rosto da resistência a Trump
Do outro lado do Atlântico, é um rosto de mulher que simboliza a resistência do que ainda sobra do velho Partido Republicano, depois de Donald Trump o ter transformado numa simples marioneta ao seu serviço.
Liz Cheney pertencia à ala mais conservadora do partido. Votou algumas das medidas apresentadas pelo anterior Presidente. Não podia tolerar a tentativa de subversão da democracia americana que Trump orquestrou com o ataque ao Capitólio, a 6 de Janeiro de 2021, para tentar impedir pela violência a confirmação dos resultados das eleições presidenciais que deram a vitória a Joe Biden.
Foi por três vezes eleita para a Câmara dos Representantes pelo estado do Wyoming, a última com mais de 70% dos votos. Não hesitou em votar a favor do segundo impeachment do então Presidente, em Janeiro de 2021. Co-presidiu à comissão de inquérito do Congresso à invasão do Capitólio, cujas audições revelaram a implicação directa do anterior Presidente. Citando o artigo de Alexandre Martins aqui no PÚBLICO, "prescindiu de um futuro promissor na liderança do seu partido ‘para impedir que Donald Trump volte a chegar à Casa Branca’", como afirmou no seu discurso de derrota nas primárias republicanas do seu Estado, na terça-feira passada. "O primeiro grande rosto do nosso partido, Abraham Lincoln, foi derrotado em eleições para o Senado e para a Câmara dos Representantes, antes de ter sido eleito para o cargo mais importante de todos." As suas palavras, no dia da derrota, são uma promessa de que não vai abdicar do combate político "pela defesa da Constituição e da democracia". "No fim, Lincoln prevaleceu. Salvou a nossa União e definiu as nossas obrigações, como americanos, até ao fim dos nossos dias."
Liz Cheney não vai desistir, por maiores que sejam os obstáculos que tem pela frente. É uma mulher de extraordinária coragem, mesmo que a sua coragem não lhe exija o mesmo preço que é cobrado às mulheres do Afeganistão ou da Arábia Saudita, da Ucrânia ou tantos outros lugares no mundo onde os direitos humanos mais fundamentais têm de ser defendidos por vezes com a própria vida. Não deixa de ser um exemplo de coragem que dignifica a política e que dignifica a democracia.»
Teresa de Sousa
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