12.2.22

12.02.1929 – Nuno Bragança



 

O Nuno chegaria hoje aos 93 e morreu, estupidamente cedo, com apenas 56. De uma colheita anterior à minha, foi sempre reconhecido por todos como absolutamente excepcional, mesmo antes, bem antes, de A Noite e o Riso por aí aparecer com estrondo.

Errando pelos mesmos meios oposicionistas, os destinos juntaram-nos também em casa de amigos comuns, onde passámos longas semanas de férias. Um pouco mais tarde viria a acampar, no sentido estrito da palavra, no minúsculo apartamento em que o Nuno viveu vários anos em Paris.

Para a História ficou sobretudo o escritor e o excelente documentário U Omãi Qe Dava Pulus, de João Pinto Nogueira. Eu registo também o católico resistente, boémio e espartano, fundador de O Tempo e o Modo, membro do MAR (Movimento de Acção Revolucionária), colaborador das Brigadas Revolucionárias, o conspirador por feitio e por excelência – neste caso, não tanto A Noite e o Riso, antes Directa e Square Tolstoi.

Mais detalhes AQUI, num post de 2019.
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A China, a Rússia, a paz na Europa e mais além

 


«Estive ontem em contacto com uma fonte chinesa bem informada, residente em Beijing. O tema central da discussão foi a crise à volta da Ucrânia, um assunto sem relevo na imprensa do país. A comunicação social está focada nos Jogos Olímpicos de Inverno, a decorrer de modo exemplar, e no sucesso dos atletas chineses que nasceram nos EUA, mas optaram por competir sob a bandeira da China. O espaço que resta é dedicado a Taiwan e à reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros do Quad (Estados Unidos, Austrália, Índia e Japão), hoje a decorrer em Melbourne, e que é vista como sendo mais uma tentativa dos dois países anglo-saxónicos para criar uma aliança hostil à China. Quanto à Europa, o único assunto que parece preocupar Beijing continua a ser a Lituânia, por causa da abertura nesse país de uma representação comercial com o nome de Taiwan inscrito na fachada.

Durante a minha videoconferência, ficou claro que a China não vê qualquer tipo de vantagem num eventual conflito armado na Europa. Por várias razões.

Primeiro, porque uma confrontação desse tipo entraria rapidamente numa espiral incontrolável. Acabaria por ganhar uma dimensão extraordinária, muito para além das fronteiras ucranianas. Segundo, porque os mercados europeus contribuem de modo significativo para a prosperidade da economia chinesa. É fundamental que continuem a funcionar sem perturbações. A legitimidade de Xi Jinping assenta, em boa parte, num crescimento económico acelerado e constante. Terceiro, porque o conflito perturbaria fortemente a circulação de mercadorias por via-férrea, tendo em conta que os comboios vindos da China atravessam uma parte significativa do território russo, antes de chegarem aos destinos europeus. Quarto, porque a Polónia estaria certamente na linha da frente e seria, por isso, profundamente desestabilizada, numa altura em que os decisores chineses resolveram considerar esse país como uma das placas logísticas mais importantes, a partir da qual as encomendas vindas por via terrestre serão encaminhadas para o resto da Europa. Quinto, porque a Ucrânia é um importante parceiro comercial e agrícola da China - 80% do milho importado pela China provém dos campos ucranianos. Sexto, porque a narrativa oficial de Beijing assenta na promoção da paz internacional, com a China no centro dos esforços para a resolução pacífica dos conflitos e como um dos novos pilares do sistema multilateral.

Também entre nós ficou mais clara a razão que explica a ausência de qualquer referência à Ucrânia no comunicado conjunto que saiu da recente cimeira entre Xi e Putin. O comunicado fala explicitamente da NATO, que é ao fim e ao cabo o álibi estratégico das manobras de Putin, mas ignora a crise ucraniana. Uma crise que contraria, aliás, um dos princípios básicos da política externa chinesa que é o da inviolabilidade das fronteiras nacionais. Os chineses não veem com bons olhos a anexação da Crimeia nem a presença de tropas especiais russas na região ucraniana de Donbass, aí presentes para apoiar os grupos rebeldes. E não querem que se compare essa anexação ao problema de Taiwan, que é apresentado como uma questão interna da China.

A aliança entre Xi Jinping e Vladimir Putin assenta numa visão pragmática, não ideológica, por parte dos chineses. A China importa petróleo, gás e outras matérias-primas russas como também necessita de manter relações de boa vizinhança. A título de exemplo, note-se que a Rússia é o segundo maior fornecedor de petróleo e de carvão da China, e o primeiro, em termos de energia elétrica. Uma parte significativa da Nova Rota da Seda passa por território russo. Por outro lado, Beijing tem plena consciência de que Moscovo nunca voltará a ser a capital de uma superpotência, mas apenas de uma potência de segunda grandeza. A competição a sério é com os Estados Unidos da América. E para ganhar essa competição a China precisa, entre outras coisas, de uma expansão económica contínua, que depende, em larga medida, da prevalência de um clima de paz na Rússia, no resto da Europa e mais além.»

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José Miguel Júdice

 


Sobre o deputado do Chega que nos chama caucasianos.
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11.2.22

11.02.2007 – IVG 15 anos

 


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Louçã e condenação de um vice-presidente do Chega

 



«Na decisão emitida pelo Tribunal de Cascais, a que a Lusa teve acesso, considera-se que a publicação em questão é ilícita e que "tais afirmações são ofensivas do direito à honra" de Francisco Louçã.

Nesse sentido, a juíza condenou Pedro Frazão a, "no prazo de cinco dias", "eliminar a publicação do dia 14 de novembro de 2021, às 20:43, da sua conta na rede social Twitter", sendo que, "não cumprindo o ordenado, será punido com a sanção pecuniária compulsória de 100 euros por cada dia de atraso no cumprimento".

Além disso, o Tribunal indica também que o vice-presidente do Chega deverá "emitir e publicar uma declaração de retificação na sua rede social Twitter, em que desminta a notícia publicada" e indique que a mesma "é falsa".

O tribunal determinou também que o deputado do Chega eleito por Santarém deve "publicar a sentença condenatória na sua conta pessoal da rede Twitter", sendo que, caso não cumpra ambos, será novamente passível de uma multa de 100 euros por cada dia em atraso.»

O tweet e respostas estão AQUI.
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Mary Quant, 92

 


Mini-saia ainda vos diz alguma coisa?
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25% de utentes sem médico de família, o elefante na sala

 


«Na Administração Regional de Saúde Lisboa e Vale do Tejo (ARS LVT), em dezembro de 2021 mais de 25% dos utentes não tinham médico de família, segundo os dados do site transparencia.sns.gov.pt. Esta percentagem varia entre 11,9% no ACES (Agrupamento de Centros de Saúde) Lisboa Norte e 30,5% no ACES Sintra.

A Reforma dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) introduziu distorções que passados 16 anos continuam por resolver, assistindo-se a um agravar das assimetrias e da desigualdade no acesso aos CSP. O grupo de Reforma dos CSP e o Ministério da Saúde foram fazendo vista grossa ao elefante no meio da sala, neste caso os utentes que não cabem nas USF (Unidades de Saúde Familiar), centros de saúde com limite de utentes inscritos e que são transferidos para as UCSP (Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados), centros de saúde sem limite de número de utentes inscritos, para onde são canalizados os utentes excedentários das USF, mas que ficam quase sempre sem médico de família.

Acontece que a abertura de uma nova USF raramente inscreve a totalidade dos utentes da UCSP que lhe deu origem e as UCSP vão-se reduzindo em número mas aumentando a sua taxa de utentes sem médico, alguns oriundos de USF de outras freguesias. Existem UCSP com mais de 75% de utentes sem médico de família, como a UCSP Moscavide (91%), a UCSP Agualva (81%) ou a UCSP Loures (79%).

A falta de médicos de família, tal como a falta de professores, é um problema que veio para ficar, à semelhança do que se passa noutros países, desde o Reino Unido ao Canadá. A reforma em simultâneo de um elevado número de médicos de família é também um problema há muito identificado. É por isso lamentável a falta pensamento estratégico e de apresentação, ao longo destes anos, de propostas pragmáticas não só pelo Ministério da Saúde, mas também pelo Grupo de Reforma dos CSP e pelas associações profissionais.

Agora que entramos num novo ano, seria fundamental mudar a contratualização dos Centros de Saúde, passando dos actuais indicadores para uma contratualização que responda às reais necessidades da população, como a resposta dos Centros de Saúde às situações agudas não graves que “entopem” as urgências hospitalares, resposta equitativa aos utentes sem médico de família, resposta domiciliária aos utentes de baixa mobilidade, entre outras.

O aumento (eventualmente temporário) das listas de utentes na ARS LVT, com redefinição de prioridades e delegação de tarefas noutros profissionais, é uma solução óbvia, tendo já sido implementada com sucesso noutros países. O verdadeiro problema não são as listas de utentes extensas, pois raramente ultrapassarão os 2000 utentes/médico, número a partir do qual a OMS diz ser difícil manter qualidade de resposta. preguiçosamente há anos, perpetuando um modelo que não provou melhorar os resultados de saúde Os maiores problemas são o subaproveitamento dos enfermeiros e a contratualização desajustada que a Administração Central dos Sistemas de Saúde (ACSS) mantém. As plataformas informáticas que servem de base ao trabalho dos médicos de família e enfermeiros (Sclinico e SAPE) são também uma fonte obstrução e de baixa produtividade.

É triste assistir à crónica lamentação sobre a dimensão das listas de utentes, cujo aumento se tornou um assunto tabu, em vez de uma oposição construtiva mas firme a uma contratualização desadequada.

A fase pós-crítica da pandemia está a colocar desafios extraordinários na recuperação da resposta às situações não covid-18, que se foram acumulando. A gestão muito criteriosa dos recursos humanos e financeiros é fundamental, o que implica uma redefinição corajosa das prioridades ajustada a cada região e mesmo a cada Centro de Saúde.»

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Mariana Mortágua e os oligarcas russos


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10.2.22

Betty Davis

 


Morreu ontem este ícone da música soul e funk, que fez estalar a polémica com estas canções (de 1973, 1974 e 1975) que chegaram a estar boicotadas nos Estados Unidos devido à natureza sexual da música e das performances.






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Normalização em curso

 


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Jaime Serra (1921 – 2022)

 


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A superioridade moral da Constituição da República Portuguesa



 

«Agora que o Chega passou a grupo parlamentar e, portanto, aprofunda a sua institucionalização na vida política portuguesa, o debate acerca da legitimidade moral deste partido na nossa vida política adensa-se.

O Tribunal Constitucional não impediu a existência deste partido político, pelo que a sua legitimidade legal está, até ver, assegurada. Coisa bem diferente é aferirmos da sua razoabilidade moral.

Qualquer comunidade tem uma moral institucionalizada. Nos países com Constituição escrita, é nesse documento que se encontra a consubstanciação dessa moral. Se é certo que as Constituições são fruto do momento em que foram criadas, é também verdade que as suas sucessivas actualizações permitem validá-las como repositório da moral vigente na sociedade. E a Constituição da República Portuguesa é laica, humanista, consagradora da democracia liberal e dos direitos económicos, sociais e políticos.

É verdade que há fundamentalistas religiosos em Portugal que queriam que o nosso país fosse confessional, há quem defenda a monarquia e há quem odeie a democracia parlamentar e liberal. Mas essa minoria de portugueses não representa Portugal. Portugal, enquanto nação e comunidade de valores, é representado pela CRP e por todo o espectro partidário que nela se revê. Ora, só o Chega não se revê na CRP, defendendo uma refundação do regime que emergiu da revolução de Abril e da implantação da democracia em Portugal. Olhando para as percentagens de votação nas últimas legislativas, ficamos com a noção de que 92,85% dos portugueses estão alinhados com o regime, e só 7,15% estão em oposição.

João Miguel Tavares queixa-se da superioridade moral da comunidade em relação ao Chega, acusando políticos, jornalistas e comentadores de estarem a desrespeitar esse partido e os seus deputados, de serem classistas e de não estarem dispostos a rebater os argumentos do Chega. Acontece que nada disso é verdade.

Primeiro, se há partido que tem protagonismo mediático é o Chega, de uma forma que nenhum outro partido emergente teve (pense-se no protagonismo de André Ventura durante todo o tempo em que o Chega ainda não tinha representação parlamentar, ou quando passou a ter apenas um deputado).

Depois, aquilo que mais tem acontecido é os debatentes desmontarem os argumentos do Chega. O que Joana Amaral Dias fez a Rita Matias foi uma sova intelectual, apenas porque a posição de Rita Matias era intelectual e logicamente insustentável.

Finalmente, se há partido de pessoas privilegiadas é o Chega, em que nenhum dos seus deputados ou nomenclatura é pobre. Terão os jornalistas uma atitude de discriminação face às classes a que pertencem Mithá Ribeiro, Pacheco de Amorim, Rita Matias e demais? Mais, a táctica comunicacional do Chega é contrária ao debate: insultos, insinuações, berros e todas as falácias argumentativas existentes impedem um debate são, de ideias, com o Chega. E isso é só culpa da estratégia desse partido, não dos outros.

O Chega tem o direito a defender o que quiser, inclusivamente de mudar constantemente a sua posição sobre os mais diversos assuntos. O que não pode é obrigar a comunidade, e os outros partidos, a respeitarem a suas ideias ou a acharem que são merecedoras de consideração, quando essas ideias são chocantes para os padrões morais da sociedade.

O programa eleitoral do Chega está disponível para consulta. A visão de sociedade aí explanada vai contra vários valores de Portugal, consagrados na CRP (p. ex, a laicidade ou a adesão à Declaração Universal dos Direitos Humanos).

Enfim, não se pode obrigar uma comunidade que se baseia em princípios científicos a debater a cientologia como explicação do universo. O absurdo político tem direito a existir, mas deve ser tratado como tal.»

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9.2.22

Dois caucasianos?

 

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O país precisa que a oposição democrática se recomponha

 

«Do lado direito, o PSD vai andar nos próximos meses à procura de um líder provisório. (...) Na oposição, "sobram, com um mínimo de representação", a Iniciativa Liberal e o Chega, lembra o jornalista. O seu reforço "desequilibrará toda a política nacional para a direita". "E não tenham qualquer dúvida que o partido de André Ventura será, de entre os dois, o centro do confronto." "A imprensa adora-o. Porque com tudo o que é chocante e polarizadora ele dá audiências. (…)

Grande parte dos órgãos de comunicação social já pouco trata de jornalismo, produz conteúdos que possam ser vendidos e se os atentados à democracia são o que tem mais saída, promove esse produto para vencer a guerra de audiências. O jornalismo é fundamental para a democracia, as audiências são fundamentais para os acionistas. E nem sempre a democracia e os acionistas têm interesses coincidentes." (…)

"É por tudo isto que só por deslumbramento ou tontice alguma pessoa de esquerda pode ficar satisfeita com esta maioria absoluta. E é por isto que PSD, Bloco e PCP têm o dever democrático de ultrapassarem rapidamente os seus desgostos eleitorais e voltarem ao ativo. Esta maioria absoluta vai precisar de uma oposição democrática à direita e de uma oposição social à esquerda. Vai precisar, como todos os governos precisam, de oposição".»

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O ridículo não mata – mas mói

 

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Terrorismo

 


«Hospitais incapazes de convocar doentes para consultas ou exames. Rede multibanco em baixa e operações bancárias por fazer, por causa da incapacidade de enviar ou receber um SMS. Piquetes da Polícia Judiciária incapazes de atender as queixas dos cidadãos vítimas de crimes. Dados móveis disfuncionais ou desligados. Chamadas de telemóvel impossíveis. Televisões sem sinal de vida. Bombeiros desligados da comunidade que deles depende.

Serviços de socorro a funcionar apenas para situações de emergência, graças à rede alternativa do Estado, o famigerado SIRESP. Foi assim o dia de ontem para milhões de portugueses e milhares de empresas e instituições, na sequência do ataque à Vodafone, um dos três grandes operadores de telecomunicações em Portugal.

Os responsáveis da Vodafone não pouparam na qualificação. Foi um "ataque terrorista". Foi uma acertada escolha de palavras. Há muito que a pirataria informática deixou de poder ser associada ao romantismo de ações espetaculares de engenhosos Davides contra os Golias corporativos e capitalistas. Não se confunda a denúncia dos segredos sujos e dos crimes dos estados ou corporações com a tentativa de destruir uma sociedade. Estes ataques a empresas (como a Vodafone), instituições políticas (como o nosso Parlamento), ou organizações que garantem o bom funcionamento da democracia (como a comunicação social) são na verdade um ataque ao nosso modo de vida.

É importante frisar que este ataque só não causou vítimas mortais (basta pensar na emergência médica) porque havia sistemas de comunicação redundantes de emergência. Mas, e se o ataque tivesse sido dirigido, simultaneamente, à rede da Vodafone e à rede do SIRESP? E se o INEM tivesse ficado incapacitado de receber as centenas de pedidos de socorro que lhe chegam todos os dias? Terrorismo, sim. A dúvida é apenas se foi terrorismo mais ou menos aleatório ou terrorismo de Estado. E sendo terrorismo, então é preciso que os estados, começando pelos democráticos, como o nosso, se organizem. E que tranquilizem os seus cidadãos. Com ações concretas, não apenas com palavras. Um exemplo apenas: vêm aí 2460 milhões de euros da "bazuca" só para a transição digital. Qual é a fatia deste gigantesco bolo que vamos destinar a melhorar a nossa segurança digital coletiva?»

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8.2.22

Nazaré

 


Série “Vidas Difíceis”, Nazaré, anos 50.
Fotografia de Artur Pastor.
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Lágrimas de crocodilo?



 

Ex-eleitores do Bloco e da CDU que apelaram, aberta ou implicitamente, ao voto no PS, e que nele votaram POR MEDO da vitória da direita (não estou a pensar nos «zangados» com o chumbo no OE) começam agora a perceber que talvez não tenha sido boa ideia enfraquecerem tanto, com o seu contributo, a força parlamentar das esquerdas da esquerda, face ao crescimento das direitas da direita e a todos os palcos que a estas estão a ser concedidos.

Mais: até pedem agora (exigem mesmo), que um PS com maioria absoluta e as tais esquerdas da esquerda se unam para enfrentarem a extrema direita. Tarefa fácil, não é? Espera-se que se ponham em campo para ajudarem na sua execução, sobretudo com pressão junto do partido a que deram a maioria absoluta.
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Uma Esquerda de disputa

 

«Em 2015, a esquerda teve força popular para disputar as políticas. E isso foi a Geringonça. Ao contrário do que pretendem alguns, a Geringonça não foi uma governação do PS com o apoio parlamentar da esquerda, foi a esquerda a disputar, a partir de uma posição de força, o programa de governação do PS. A reconfiguração dessa relação de forças em 2019 teve duas expressões contraditórias: por um lado, o aprofundamento da disputa das políticas, materializado no desafio do Bloco ao PS para um quadro de atuação programática mais avançado que o minimalista adotado em 2015; por outro, a recusa do PS de qualquer quadro de atuação vinculada, acompanhada de um spin fortíssimo de recaracterização do que fora a legislatura anterior, criando, com essa ilusão de que as “negociações” prosseguiam, pressão sobre a esquerda para a chancela a orçamentos de estagnação.»

José Manuel Pureza

Texto na íntegra AQUI.
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Há um equívoco sobre a eleição do vice-presidente da AR. É mesmo uma eleição

 


«Como seria de esperar, gerou-se uma polémica em torno da eleição dos vice-presidentes da Assembleia da República. Como ficou em terceiro, o Chega tem o direito indicar um deputado para constar na lista. Não foi seguramente para facilitar o voto que o partido escolheu Diogo Pacheco de Amorim, ex-ativista do movimento terrorista de extrema-direita MDLP.

Comecemos, para não laborar em equívocos, pelo que está escrito no Regimento da Assembleia da República:

“1 – Os Vice-Presidentes, Secretários e Vice-Secretários da Assembleia da República são eleitos por sufrágio de lista completa e nominativa.
2 – Cada um dos quatro maiores grupos parlamentares propõe um Vice-Presidente e, tendo um décimo ou mais do número de deputados, pelo menos um Secretário e um Vice-Secretário.
3 – Consideram-se eleitos os candidatos que obtiverem a maioria absoluta dos votos dos deputados em efetividade de funções.”

Como fica claro, não estamos perante uma nomeação. O regimento não diz que os grupos parlamentares indicam, mas que propõem. E diz que a sua eleição depende do voto de uma maioria absoluta de deputados. De uma eleição em que, não seguramente por acaso, os deputados votam em cada nome. Como é evidente, também não impõe aos deputados o dever de eleger seja quem for. E é por isso que os resultados da eleição da mesa têm sempre votos brancos e nulos e não costuma haver dois candidatos com a mesma votação.

Como muito mais de metade dos deputados se comprometeu perante os seus eleitores a manter um cordão sanitário em torno de um partido racista, xenófobo e inimigo expresso da Constituição e dos seus valores, o nome do Chega deverá ser chumbado. Os que não mantiveram esta clareza na campanha, e até suspeito que tenham sido punidos por isso, poderão ser coerentes com essa postura. Mas qualquer deputado de esquerda que ajudasse a eleger Pacheco de Amorim estaria a violar o seu compromisso para com os eleitores. E se é verdade que eu defendo que os democratas devem continuar a falar para os eleitores do Chega, isso não implica ceder ao partido em quem eles votaram. É fundamental, aliás, separar bem as duas coisas.

O espanto de muitos nesta história é descobrirem que os vice-presidentes podem não ser eleitos se quem os elege não votar neles. Há quem ache que, em democracia, há eleições que são uma mera formalidade em que o voto já vem previamente preenchido. Que é um ato administrativo. Se fosse, o legislador tinha determinado a nomeação, não a eleição. Foi exatamente para isto que exigiu que cada um daqueles vice-presidentes e secretários tivesse maioria absoluta. Para que os deputados, que representam os seus eleitores, pudessem não aceitar, total ou parcialmente, a lista que lhes é apresentada. O voto secreto é exercido em liberdade e em lado algum se diz que os deputados estão obrigados a votar favoravelmente em todos os nomes propostos.

Os deputados do Chega têm o direito a estar no Parlamento, porque foram eleitos. Têm o direito a propor um nome para vice-presidente, porque assim o diz o regimento. Não vão perder nenhuma das suas prerrogativas. Mas, à partida, só contam com os seus próprios votos. Para ocuparem qualquer cargo eletivo que dependa da maioria precisam do voto da maioria. Acontecerá quando a maioria se sentir confortável com isso. Felizmente, não sente.

A resposta a toda esta lapalissada é a tradição e a praxis parlamentar. Se fosse verdade, ela teria acontecido num quadro onde todos os deputados aceitavam a Constituição da República e os seus valores fundamentais. Mas ela já foi várias vezes contrariada.

Em 2011, quando o PSD apresentou Fernando Nobre como candidato a presidente da Assembleia da República, o nome foi chumbado pelo CDS, houve segunda votação, que voltou a falhar, e acabou por ser eleita Assunção Esteves, no terceiro sufrágio. Em 2015, o eleito foi proposto pelo segundo grupo parlamentar, e não, como era tradicional, pelo primeiro. Ferro Rodrigues foi eleito presidente da Assembleia da República porque o sufrágio, que lhe dava maioria a ele e não a Fernando Negrão, se sobrepôs à tradição, que já nem era tradicional.

Foram várias as vezes em que os candidatos a vice-presidentes e secretários indicados não foram eleitos. Em 1987, Ferraz de Abreu (PS) e Marques Júnior (então do PRD) foram chumbados na primeira votação (nesta altura as eleições eram anuais). Em 1995, Nuno Kruz Abecassis e Helena Santo (ambos do CDS) não foram eleitos vice-presidente e secretária da Mesa na primeira votação. Abecassis só conseguiria ser eleito em 1998 – morreu pouco depois. Em 2013, o deputado Pedro Alves (PSD) não conseguiu ser eleito secretário na primeira votação, só na segunda. Isto para não falar dos inúmeros chumbos a nomes indicados para outros cargos que dependem de escolha do Parlamento.

Quem aceita que uma eleição é uma eleição e se sobrepõe à tradição tem usado argumentos pragmáticos. Que este chumbo dá aos deputados do Chega mais uma oportunidade para se vitimizarem e que a forma mais eficaz de os neutralizar é integrá-los no sistema.

A extrema-direita usa a chantagem da vitimização para vergar os seus adversários. É por isso que escolheu a figura mais inaceitável de toda a sua bancada como candidato. Para que o voto nele fosse ainda mais aviltante. A forma de enfrentar os inimigos da democracia não é votar neles para não os aborrecer. Porque depois de um episódio vem outro. E viria a vitimização quando o Parlamento tivesse de agir para obrigar um dos seus vice-presidentes a cumprir as regras. A história já nos explicou, vezes sem conta, que este tipo de “apaziguamento” não resulta. Nunca resultou.

O argumento da integração também tem uma longa história, raramente com um final feliz. Se estivesse vivo, podiam perguntar a Paul Von Hindenburg. A eleição de deputados abertamente racistas e xenófobos teve um efeito na sociedade: tornar aceitável, por via do exemplo, o que tínhamos como censurável. Contra isso, pouco podemos fazer. 1% dos portugueses, e agora 7%, não se chocam com este discurso e dão-lhe o voto. Eleger um destes deputados como vice-presidente é alargar a toda a instituição parlamentar a tolerância com esse discurso. Dar a um partido que constantemente insulta as regras de debate político o poder de dirigir trabalhos do Parlamento e representar o conjunto dos deputados seria como, para integrar um batoteiro, pô-lo como árbitro.

O Chega não se quer integrar (isso seria a sua morte), quer integrar o seu discurso no sistema. Que ele passe a ser ouvido como aceitável. Cargos simbólicos são importantes para que isso aconteça. Para ganharem a aprovação dos outros deputados e com ela tornarem legítimo aos ouvidos dos seus potenciais eleitores o que dizem. O que fariam os deputados quando ouvissem da boca do vice-presidente da Assembleia da República frases xenófobas sobre a comunidade cigana ou comentários misóginos sobre deputadas? O que fariam para corrigir o erro evitando, no entanto, a vitimização do Chega? E o que diriam aos eleitores que, como eu, votaram em quem, traindo-nos, elegeria tal figura para um dos mais altos cargos no Estado?

Os democratas aceitam o direito dos eleitos do Chega a ocuparem os seus lugares no Parlamento, enquanto cumprirem a Constituição. Porque respeitam os resultados das eleições. Se o vice-presidente do Chega for recusado pela maioria dos votos dos deputados, André Ventura também terá de respeitar o resultado da votação. Tão simples como isto.

Como se resolve, caso todos os nomes do Chega sejam chumbados? Como se resolveram em casos anteriores. Aliás, é o próprio regulamento da Assembleia da República que dá a resposta: “Eleitos o Presidente e metade dos restantes membros da Mesa, considera-se atingido o quórum necessário ao seu funcionamento.” O legislador assumiu a possibilidade de nem todos serem eleitos, recusando que esta eleição fosse uma mera formalidade.

No Bundestag, cada grupo parlamentar (e não apenas os quatro maiores) tem direito a propor um candidato a vice-presidente, mas mesmo assim é necessária, como cá, eleição por maioria absoluta de cada um. E, desde 2017, a AfD não elege vice-presidente – já propôs seis candidatos diferentes em sucessivas tentativas ao longo dos anos. Como curiosidade para consumo português, o partido liberal alemão também lhes recusa o voto.

Não há risco de qualquer impasse. Por isso, nenhum democrata está obrigado a votar num candidato de “Deus, Pátria e Família”. Querem que os vice-presidentes sejam nomeados pelos grupos parlamentares? Tirem a eleição do regimento. Até lá, uma eleição é uma eleição.»

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7.2.22

Um país em forma de assim

 


(Expresso, 07.02.2022)
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João Bénard da Costa

 


Seriam 87, hoje.
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Juliette Gréco – Seriam 95

 


Juliette Gréco nasceu em 7 de Fevereiro de 1927 e morreu em 2020. Ficam alguns textos publicados, ou recordados, quando chegou aos 90 e algumas, entre muitas outras, das suas interpretações clássicas.













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Dos lobos disfarçados de cordeiros, ou da propaganda disfarçada de notícia

 


«Surgiu esta semana no Facebook da RFM uma publicação intitulada "Estudo indica que a palavra "mãe" deve ser substituída por "pessoa lactante" para criar uma linguagem neutra", que recebeu 2900 reações negativas, 2400 comentários (muitos insultuosos) e 410 partilhas, sendo repartilhada muito mais vezes. Com um título destes, seria de prever: a estupefação e a rejeição do conteúdo advêm, desde logo, do absurdo de se pretender substituir a palavra "mãe", primordial e carregada de sentidos e afetos, por "pessoa lactante", expressão assética, fria e não significante.

Se a principal função do título é captar a atenção para a publicação que encabeça, poderíamos admitir que este cumpriu a sua função. Porém, mais do que a leitura da publicação, o que ele desencadeou foi uma reação impulsiva e desproporcionada (as pessoas leem apenas os títulos e reagem) contra a linguagem neutra, inclusiva, dita "politicamente correta", que algumas forças tanto atacam, principalmente para desviar as atenções das muitas iniquidades que defendem (de religião, etnia, sexo, estrato social, etc).

A escolha da palavra "estudo" no título reivindica para a publicação da RFM seriedade e cientificidade, que estão bem longe dos seus objetivos. Li o estudo (da revista Brestfeeding [amamentação] Medicine), que afinal não é um "estudo" mas sim uma "declaração" (statement) da Academy of Brestfeeding Medicine - ABM, uma ONG sediada em Chicago. Como declaração que é, a da ABM não visa descrever objetivamente o resultado de nenhum estudo, mas antes tomar posição fundamentada, defender, promover determinados princípios de atuação. Chamar-lhe, pois, "estudo" é uma imperdoável falácia.

A declaração da ABM começa por referir que linguagem é poder e que, como ela influencia o pensamento e o comportamento, é preciso evitar que o seu uso inadequado gere iniquidades de género no acesso à saúde. O texto refere-se à produção de materiais informativos e de divulgação, escritos, em inglês, e visa complementar o Protocolo Clínico # 33: Cuidados no aleitamento para pessoas LGBTIQ+ (Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender, Queer, Questioning, Plus), lembrando que nem todas as pessoas que dão à luz se identificam como mulheres. A declaração avalia a escolha de uma linguagem mais ou menos inclusiva e mostra que essa escolha deve ser fundamentada e ter em conta, entre outros, as preferências das pessoas visadas e as características culturais e legais das sociedades a que se destinam. Realça que a morfossintaxe (e.g., marcação do género e existência ou não de género neutro) varia de língua para língua e que, como tal, o que é preconizado a partir da língua inglesa não pode ser "transplantado" acriticamente para outras línguas e outras realidades.

A publicação da RFM, claro, não reflete nenhuma das condicionantes nem preocupações plasmadas na declaração original, mais não sendo do que uma divagação falaciosa sobre leituras (propositadamente?) mal feitas de textos "sérios".

Bem sei que ninguém em seu perfeito juízo procura informação objetiva e séria no Facebook da RFM, até porque esta estação de rádio se assume como a face divertida e ligeira da Rádio Renascença; contudo, não podemos ignorar o efeito replicador e "infodémico" das redes sociais. Além disso, a publicação em foco é ainda mais perversa, porque vem disfarçada de circunspeção, objetividade e probidade, que afinal não tem, nem pretende ter.

Que propósitos visa este tipo de publicações? A quem serve? Que cada um analise os dados e encontre respostas.»

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6.2.22

Andarão muitos perdidos pelos céus?



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06.02.1932 – François Truffaut, seriam 90

 


François Truffaut nasceu em Paris e chegaria hoje aos 90 (não 89, o «post» é do ano passado), morreu muito cedo com 52, mas deixou-nos vinte e seis filmes que o mantêm connosco. Com uma infância atribulada, que acaba por retratar parcialmente em «Les quatre cents coups», fundou um cineclube aos 15 anos e foi rapidamente descoberto por André Bazin que viria a ter uma influência decisiva na sua carreira, introduzindo-o junto dos grandes nomes da época e nos celebérrimos «Cahiers du Cinéma». Tornou-se um dos principais representantes da «Nouvelle Vague» francesa e, nesses tempos áureos do cinema francês, era sempre com ansiedade que se aguardava a estreia de um novo título.

Pode recordar quatro filmes inesquecíveis AQUI num post do ano passado.
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Confusos?



O tecnofeudalismo e o Spotify

 


«É um dos grandes desafios para os próximos tempos. O que fazer para tornar os gigantes tecnológicos, que deixámos crescer sem qualquer enquadramento, eticamente mais responsáveis, justos e igualitários?

Nos últimos dias muitos congratularam-se por músicos como Neil Young ou Joni Mitchell retirarem a sua música do Spotify, por acolher o podcast de Joe Rogan, que emite falsidades e teorias da conspiração sobre a pandemia, iniciando um movimento de boicote em relação à maior plataforma de streaming. Claro que há razões para criticar a desinformação fomentada, mas nisso nada de novo. Já o vimos acontecer com Twitter, Facebook, YouTube e outros (mesmo se existe a diferença de o Spotify ser “patrão” de Rogan), com discussões sobre limites da liberdade de expressão ou a responsabilidade das plataformas em regular conteúdo.

Discussões válidas – mas nunca se vai ao centro da questão e que é de paradigma económico e de moderação política. Com as atenções a recaírem sobre a multinacional sueca, o que seria estimulante era ver muitos mais músicos — muitos deles lutando pela sobrevivência nestes tempos de pandemia, enquanto os gigantes tecnológicos foram amealhando milhões — erguer a voz para questionar o problema nuclear de plataformas como o Spotify: o valor residual que a maior parte dos criadores obtém a partir dela, a desigualdade e ineficaz política de distribuição de direitos.

O problema do Spotify é igual ao de outros colossos tecnológicos que foram crescendo à frente da legislação. O seu poder tornou-se categórico, hegemónico e pouco transparente. No início, éramos seduzidos pelo serviço barato, funcional e, julgávamos, neutral e livre. Mas há muito que se percebeu que agimos no espaço comercial de empresas cujo modelo de negócio é olhar quer para criadores, quer para utilizadores (e seus dados) como mero produto.

Na realidade, vivemos emaranhados num feudalismo dos tempos modernos. Sob o manto retórico do progresso e inovação, esconde-se muitas vezes o ancestral flagelo da dominação. Instalámo-nos no tempo medieval com as ferramentas da modernidade, por entre acumulação escandalosa de lucros, desigualdades inconcebíveis e um punhado de tecno-oligarcas que vão fazendo fortuna. A “nova economia” deu lugar a uma economia de submissão, de disparidades e restauração de monopólios.

Entre Neil Young e Joe Rogan, o Spotify escolherá sempre o lucro. A solução é, então, sair do Spotify, ou das redes sociais, ou boicotar a Apple, Google, Amazon e outros? Não parece que seja por aí, até porque estamos a falar de instrumentos de comunicação que se tornaram imprescindíveis. Mas é bom ter consciência do chão que se pisa. Entender que quanto mais participamos na vida dessas plataformas, mais serviços nos vão sendo oferecidos de forma a acentuar a dependência. Estamos perante um movimento de monopolização poderoso, em que a lógica é controlar tudo. E, quando algo está fora do controlo, comprar quem representa competição é o objectivo.

Não podemos escapar deste mundo, porque, individualmente, somos mais frágeis do que os algoritmos. Mas é possível reflectir sobre o modo como, colectivamente, nos podemos emancipar, preservando espaços de existência que não estejam dominados por este sistema. É uma discussão política e não tecnológica. Corrigir práticas individuais é possível, mas o repto é a própria estrutura de propriedade de empresas em que a actividade produtiva consiste na criação de valor sob a forma de dados.

O desafio consiste em encontrar soluções que passem pela intervenção política, enquadrando o funcionamento destas plataformas, segundo a lógica dos serviços públicos. A política terá de assumir, com pinças, um papel de moderação em modelos de negócio de estruturas empresariais em que os critérios comerciais não obedecem aos princípios do bem comum. A pressão a desencadear é essa. Caso contrário, nada de substancial mudará.»

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