Sérgio Lemos«A entrevista de Lucília Gago à RTP foi evidentemente coordenada com a de Rosário Teixeira à SIC e o abaixo-assinado dos procuradores. Nenhum problema com isso. Não ter havido, desta vez, divulgação de escutas, buscas a sedes e ministérios ou suspeitas sobre os que criticam o Ministério Público é um avanço democrático. Fico satisfeito por se passarem a usar formas mais saudáveis de defesa de uma corporação.
Valeu a pena o Manifesto dos 50 (sou um dos subscritores acusados pela PGR de participar numa “campanha orquestrada”) para que uma ministra da Justiça falasse e o negócio do jornalismo tabloide tivesse perdido o monopólio da definição dos critérios de avaliação do trabalho dos PGR. É um grande salto: entrevistas em vez de destruição do caracter de quem critica, avaliação do trabalho da PGR em vez do populismo dos justiceiros contra os “poderosos”. Apesar do atraso com que o 25 de abril chega à justiça, é um passo importante.
O Ministério Público sentiu-se no dever de responder a um sobressalto cívico perante a total impunidade com que quotidianamente se viola a lei e, apesar de ter pedido para adiar a sua ida ao Parlamento, a Procuradora-Geral da República quis ir à televisão para falar de um caso concreto: o processo Influencer. Caem por terra, e ainda bem, as recorrentes justificações para o silêncio e ausências de esclarecimentos em tantos outros casos. Os PGR podem prestar, de viva voz, esclarecimentos sobre processos. Como seria evidente quando esteve em causa a queda de um governo.
É impensável alguém ocupar um lugar de topo na hierarquia do Estado durante seis anos sem nunca ter dado uma entrevista. A ideia de que isso é possível resulta de uma outra, mais profunda e perigosa: a de que um PGR não está sujeito ao escrutínio público. Responder, perante a total ausência de prestação de contas, que se duplicou o gabinete de imprensa, diz tudo sobre a cabeça de uma burocrata. Nem se apercebe que nos está a dizer que fez pior com mais e que o problema do Ministério Público, pelo menos no topo, não é falta de meios. Uma detentora de um alto cargo público dar entrevistas não é “espalhafato”. Espalhafato é fazer buscas com câmaras de televisão atrás e passar escutas para a imprensa. Cultura de transparência não é fritar cidadãos na praça pública. É prestar contas do que se faz.
São muitas as pérolas da entrevista que a Procuradora Geral da República deu à RTP, de que infelizmente ficou de fora a sua incapacidade de travar as sucessivas violações ao segredo de justiça. Vou-me concentrar no processo “Influencer”, que foi, na realidade, o que a levou à televisão. O grande argumento de Lucília Gago é a igualdade perante a lei. Um argumento que sabe calar fundo num país desigual, incluindo no acesso à justiça.
Mas há, no que toca ao ex-primeiro-ministro, duas perguntas que não tiveram resposta esclarecedora: porque foi investigado e porque é que a investigação foi parar a um comunicado?
A comparação das referências a Costa em telefonemas com uma escuta a uma vítima de violência doméstica, que pretende ser impressiva, não tem pés nem cabeça. A lei não traça uma linha indiscutível de quais são os indícios que permitem suspeitar da prática de um crime. Mas parece evidente que duas pessoas dizerem coisas vagas sobre o primeiro-ministro não chega. Nem preciso de dar exemplos distantes. Perante as ligações do Presidente da República ao caso das gémeas, o mesmo MP decidiu deixá-lo, provavelmente bem, fora da investigação. Investigar tudo o que se ouve não é, ao contrário do que disse a PGR, uma decisão automática. Se fosse não havia meios que chegassem. É uma escolha que deve ponderar a força dos indícios (era nenhuma, como se viu) e o dano, até para a investigação, de abrir esse caminho. Pesando uma e outra coisa, é evidente que a opção de investigar o primeiro-ministro não foi determinada por critérios de qualidade da investigação.
A segunda questão é o tal parágrafo. Se as pessoas são todas iguais perante a lei, é habitual informar o País de que alguém, que não é arguido, está a ser investigado? É natural atirar alguém para a fogueira sem ter indícios fortes para o dano que se provoca? Não, a PGR não faz isso com outros cidadãos. Não há, por isso, igualdade perante a lei.
O argumento para o ter feito é, segundo a PGR, o da transparência – vindo de quem nunca se sentiu na necessidade de dar uma entrevista, é curioso. Porque Costa é um cidadão como os outros, tem de ser investigado. Como Costa não é um cidadão como os outros, isso tem de ser público. Porquê? Porque se não o fizesse, a PGR seria acusada de tentativa de “branqueamento”.
As consequências para o primeiro-ministro da divulgação de uma suspeita sem indícios que a justifiquem foram, porque aparentemente tinham de ser, indiferentes para a PGR; já as consequências para o Ministério Público de não o fazer foram não só não fora indiferentes, como foram, nas palavras de Lucília Gago, determinantes para aquele comunicado. O primeiro-ministro pode ser infundadamente lançado na lama, a PGR é que não pode ser suspeita de guardar informação (em segredo de justiça) sobre investigações, se isso lhe puder vir a queimar as mãos. Nisto, na realidade, foi bastante clara: tratou de si própria, como, aliás, em toda a entrevista.
A corporação vive de si, por si e para si. Não é que viva alheada dos efeitos do que faz. Apenas tem em conta os efeitos que o que faz venham a ter para si mesma. Isto é tudo menos o primado da lei, que não autorizava, como é evidente, aquele comunicado.
Para explicar que a demissão foi uma decisão do primeiro-ministro, Lucília Gago deu dois exemplos de políticos suspeitos que não se demitiram: Ursula von der Leyen e Pedro Sánchez. O primeiro é real, mas é bom perceber que a presidente da Comissão Europeia sabe exatamente do que está a ser investigada, o que lhe deu a possibilidade de se defender publicamente. Ainda assim, se dependesse do voto direto dos cidadãos, não resistiria muito tempo. Já quanto à referência ao caso de Sánchez, quando a suspeita é sobre a sua mulher, a nossa PGR parece querer exportar a leviandade com que trata o bom-nome dos outros.
Do que ouvimos na entrevista, Lucília Gago não é mesmo responsável por coisa alguma. Há uma hierarquia no Ministério Público, mas ela não é informada de nada e até pode ir falar com o Presidente sem saber que, nesse momento, foi aberto um processo que o envolve. Se há um governante é escutado durante quatro anos é porque a cada 15 dias apareceram dados que permitiam tornar banal o que a lei diz ser excecional. Se os juízes detetam erros grosseiros nas investigações do Ministério Público isso é impossível, porque estes procuradores, ao contrário dos juízes que desfizeram o seu trabalho, são de uma enorme competência técnica. Se há pessoas detidas durante 22 dias sem ter sido determinada uma medida de coaçã, a culpa é capaz de ter sido da greve dos oficiais de justiça.
Seria injusto, no entanto, dizer que não vieram novidades. Lucília Gago decidiu desfazer o esclarecimento feito por Rosário Teixeira e voltou a pôr um cutelo sobre o pescoço do novo presidente do Conselho Europeu: António Costa foi ouvido como testemunha, mas não se livra do estatuto informal de potencial suspeito. Um estatuto que o deixa impossibilitado de defesa, durante anos. O mesmo que afasta Duarte Cordeiro da política. Um estatuto sem existência legal, mas que o Ministério Público usa para ter políticos temerosos pela trela, impedindo qualquer reforma que lhe tire o poder da arbitrariedade.»