13.7.24

Gentes de vários mundos (5)

 


Samarcanda, Uzbequistão, 2011.

Num país esmagadoramente muçulmano, são muitas as mulheres, sobretudo jovens, de cabeça destapada. E todas, velhas e novas, fazem gala de terem belos vestidos de cores variadas e mesmo garridas.

Vêm aí os Jogos Olímpicos

 


Karel Pott (à esquerda na imagem), meu padrinho, que terá sido o primeiro mulato moçambicano a licenciar-se (em Direito), concorreu às Olimpíadas de 1924, tenho ficado em 3º lugar numa das eliminatórias dos 100 metros.

13.07.1958 - Carta de um bispo do Porto a Salazar

 


Foi há 65 anos, cerca de um mês depois das eleições presidenciais de 1958 às quais Humberto Delgado tinha concorrido, que António Ferreira Gomes, bispo do Porto, escreveu uma longa e corajosa carta a Salazar, que lhe valeu dez anos de exílio em Espanha, França e Alemanha, entre 1959 e 1969.

Para muitos, sobretudo católicos, a conjugação destes dois acontecimentos – eleições com Delgado e carta do bispo do Porto – foi o verdadeiro pontapé de saída para a resistência e luta contra a ditadura durante as décadas que se seguiram.

Vale a pena ler ou reler o texto para se perceber a importância que teve na época.
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O corpo imaculado: o que o maestro da minha orquestra me mandou fazer

 


«1. Hoje de manhã, sabedor de que tenho um artigo para escrever, o maestro da minha orquestra, a dos políticos corruptos e dos poderosos que não querem escrutínio dos seus crimes, e de uma elite que acha que está acima lei e da gente comum, mandou-me escrever sobre a entrevista da procuradora-geral da República. Perguntei-lhe se valia a pena fazê-lo, visto que toda a gente tinha passado a semana a falar e a escrever sobre a dita entrevista. Disse-me que valia por duas razões: uma, é que as reacções à entrevista são interessantes de per si; outra, porque tinha fama de não ter punhos de renda, ou seja, ser mais bruto. O elogio do meu maestro animou-me.

2. Foi bom a procuradora ter dado a entrevista que deu. Para quem não tinha a verdadeira dimensão de com quem estava a lidar, ficou ali mais evidente, a arrogância, o poder sem responsabilidade – o que em democracia é antidemocrático –, a indiferença aos efeitos de acções precipitadas e pouco fundamentadas, o desprezo pelo valor da obrigação de responder pelo que se faz. Ou seja, o Ministério Público (MP) no entendimento da sua chefia é uma entidade divina, um corpo imaculado, perfeito, sem mancha, sem desejos. Como sou avesso a perfeições e não acredito em corpos imaculados, ainda com mais vontade fiquei de servir o meu maestro e participar na minha orquestra.

3. Também percebi por que razão a procuradora não queria dar entrevistas – o que ela tem para dizer tem um efeito de revelação e o poder não gosta de ser revelado. Um dos poderes que protegem o poder é o silêncio, a descrição e o segredo. Quebrado o silêncio, manda-se menos.

4. Eu assinei o Manifesto maldito dos 50, o que levantou uma tempestade genuína nos ares fétidos do pântano do medo e, por isso, enfraqueceu a barreira que protegia o comportamento abusivo do justicialismo e o seu sistema de cumplicidades. Mas, sim meu maestro, as reacções à entrevista são reveladoras e centram-se em três grupos: o jornalismo receptáculo das fugas de informação e que é, ele próprio, corrompido porque sabe que elas dão fama e audiências e estes são dois ingredientes fundamentais no mercado de emprego; a corporação justicialista e os seus apêndices “cívicos” pouco interessados nos direitos fundamentais; e a direita que nunca há-de agradecer o bastante por a procuradora ter atirado abaixo António Costa, coisa que nunca conseguiu fazer.

5. Vejo com muita ironia o desprezo com que jornalistas acusam as críticas à procuradora-geral da República e ao MP de virem de uma elite que nunca se preocupou com as pessoas comuns. É em parte verdade, muitos chegaram tarde. E depois? Têm razão ou não? Esta crítica volta-se contra os seus autores porque tem implícita a ideia de que é vulgar haver abusos sobre as pessoas comuns, só que são invisíveis. Também não os vi muito preocupados, mas, voltando à ironia, é curioso ver tanto zelo na defesa das pessoas comuns quando olho para os jornais e o modo como tratam as mesmas pessoas comuns, violando qualquer presunção de inocência retratando em desenhos as vítimas de violação, mesmo crianças, de uma forma concupiscente, reproduzindo a má-língua de vizinhos e parentes. Respeito pelas pessoas comuns? Tretas. Sim, de facto, estão mesmo muito preocupados com as “pessoas comuns”. Elas não são o manjar real, mas a comida de todos os dias, e há que comer todos os dias para ter o jornal em cima das mesas do café. Concordo, no entanto, numa coisa: talvez no caso das pessoas comuns as fugas de informação não venham dos mais altos níveis das autoridades judiciais, mas sim dos mais baixos.

6. Há uma coisa também interessante nas reacções à entrevista da procuradora, o apoio entusiástico que a nossa direita radical dá ao MP pela sua actuação à volta de Costa. Percebe-se, o MP deu-lhe um gigantesco presente, e ser-lhe-á reconhecida até ao fim dos dias, porque derrubou Costa, que nunca conseguiria deitar abaixo.

7. Mas há uma coisa que não percebe: é que o justicialismo é de direita pelos métodos e pelo desprezo pela democracia, mas é de esquerda pela ideia de que toda a actividade económica é pela sua natureza corrupta – portanto, ir-lhe-á bater à porta. Em seu devido tempo, já não se recordam que andaram anos a dizer que o MP tinha sido tomado pelo PCP, que o sindicato era uma emanação da UEC?

8. O Manifesto dos 50 é um ponto sem retorno, não na questão da justiça, mas sim na denúncia dos abusos que são feitos em seu nome. Eles, sim “eles”, sabem disso muito bem e por isso estão numa fase de contenção dos danos. Mas hoje não é possível, sem controvérsia da pesada, e com o apoio de muito mais do que os políticos, mas da maioria da opinião pública, actuar com a displicência e a irresponsabilidade arrogante dos últimos tempos.

9. É pouco provável que haja a coragem de fazer reformas de fundo, nem em bom rigor elas são necessárias para corrigir os abusos, mas há obrigação de conhecermos o que pensa o futuro/a procurador/a-geral da República sobre estas situações, e de se encontrarem mecanismos que protejam mais eficazmente os direitos fundamentais do abuso justicialista.

10. A culpa última da actual situação não é da corporação justicialista e dos seus espúrios braços “cívicos”, mas dos políticos que fizeram a arquitectura e as escolhas do actual sistema de irresponsabilidade e poder sem controlo do MP. Deitam-se numa cama que foi feita por eles, com uma mistura de cedências populistas, medos e sentimentos de culpa. Será, meu maestro, que dei um bom contributo para a campanha orquestrada?»


12.7.24

Gentes de vários mundos (4)

 


Iximche, Guatemala, 2014.

Que será feito deste pequeno herdeiro da Civilização Maia que vi há dez anos?

E dói mesmo

 


Pablo Neruda

 


Pablo Neruda nasceu em 12 de Julho de 1904, em Parral, no Chile, e morreu em Santiago, em Setembro de 1973, poucos dias depois do golpe que vitimou Salvador Allende. Não se tinha candidatado às eleições presidenciais de 1970 por ter considerado que Allende tinha mais possibilidade de as vencer, como veio a verificar-se.

Recordemo-lo um pouco, com a sua voz inconfundível.




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Mania da perseguição na óptica do utilizador

 


«Quando dizemos de uma pessoa que tem a mania da perseguição, pretendemos significar que ela acredita que os outros a perseguem. Mas a expressão também pode ser entendida noutro sentido: o de que a pessoa tem a mania de perseguir os outros. São duas manias muito diferentes que podem, no entanto, ser designadas com a mesma expressão. Ao que se ouve dizer, Lucília Gago, a procuradora-geral da República, sofre de ambas as estirpes da maleita. Muita gente está convencida de que ela persegue, ela acredita que é perseguida. Em entrevista à RTP, a procuradora-geral respondeu à acusação de que conspira contra certas pessoas afirmando que certas pessoas conspiram contra ela. “Há uma campanha orquestrada contra o Ministério Público”, disse a procuradora-geral. A pessoa que alegadamente orquestra campanhas é alegadamente alvo de campanhas orquestradas. Ora, é muito improvável que, num país em que tudo é feito à balda, haja alguma coisa bem orquestrada, quanto mais duas. Mas é preciso não esquecer que Lucília Gago tem acesso a escutas. É possível que já tenha ouvido conversas entre pessoas que estão a orquestrar uma campanha contra si. Infelizmente, nem referiu essas conversas nem identificou essas pessoas. Ou seja, estamos perante mais um megaprocesso na Justiça portuguesa. Desta vez, é um megaprocesso de intenções. Além disso, o anúncio de que existe uma campanha orquestrada contra o Ministério Público (MP) foi também uma nova ocorrência de uma situação habitual: mais uma vez, o país fica a saber de uma suspeita importante porque o MP a comunica em primeiro lugar a um jornalista.

Infelizmente, na entrevista à procuradora-geral da República não se falou de literatura. É pena. Creio que todos concordamos que Lucília Gago é a maior escritora portuguesa viva. Nenhum outro autor nacional conseguiu ser tão influente e obter tamanha repercussão social. Com um parágrafo apenas, Lucília Gago transformou profundamente o país. Outros autores têm escrito páginas e páginas sem qualquer resultado tangível. Mas Lucília Gago, com apenas cinco linhas, fez cair um Governo de maioria absoluta. O parágrafo foi estudado e analisado durante semanas, inspirou debates intensos, incluiu expressões como “contexto suprarreferido” e “foro competente”, que a generalidade dos escritores, incompreensivelmente, tem esquecido. Ainda assim, o talento literário de La href="" target="_blank">ucília não é reconhecido pela academia. Creio que há uma campanha orquestrada para que isso se mantenha assim.»


Front Populaire

 


11.7.24

Gentes de vários mundos (3)

 


Rotorua, Ilha do Norte da Nova Zelândia, 2017.
Um enorme maori (são mesmo grandes os maoris…)

É em Rotorua que vive a maior população maori do país. Perseguidos por colonizadores vários durante séculos, os maoris são hoje especialmente acarinhados pelo governo, dispondo de uma série de privilégios e incentivos. Pensa-se actualmente que os primeiros exploradores, vindos provavelmente da Polinésia, terão chegado há 700-1200 anos. No Triângulo da Polinésia, os povos têm línguas, culturas e crenças similares e há um sem número de histórias sobre viagens e trocas comerciais dos maoris nesta área.

Bons conselhos

 


França: o que vai sabendo

 


Libération, 10.07.2024

O que está por baixo do título para que se leia melhor:



A marcha de normalização neofascista na Europa

 


«Quem é genuinamente democrata respirou de alívio ao receber os resultados da segunda volta das eleições francesas para a Assembleia Nacional. Principalmente pela conjuntural derrota política e eleitoral da União Nacional (UN), que ficou em terceiro lugar na corrida. No entanto, é necessário assinalar que o partido de Le Pen teve 37% dos votos e aumentou em 63% a sua bancada, passando de 89 para 142 deputados – evidentemente muito longe do previsto nas sondagens, que prediziam uma vitória da UN.

Fiel ao ofício de historiador, entendo ser essencial não perdermos de vista o porquê e quando é que esses movimentos reacionários “despertaram” para um novo impulso, mas sobretudo, a forma como se tem processado a normalização, “naturalização” e legitimação de tais projetos políticos. Esse “novo normal” ganha consistência social a partir das (segundas) vitórias de Orbán na Hungria, em 2010, e do Lei e Justiça (PiS) na Polónia, em 2015; bem como da conquista do governo central do Partido da Liberdade da Áustria, em 2017, e de Giorgia Meloni na Itália (2022) – o seu partido tem ligações diretas com o que restou do movimento fascista italiano. Ou, do recente governo formado nos Países Baixo com vários ministros do Partido pela Liberdade – de cariz neofascista. Em resumo, esses partidos conseguiram ascender à chefia dos governos pela via eleitoral.

Existem outros resultados eleitorais significativos, como a forte subida do Chega para 50 deputados na Assembleia da República (2024); o supracitado crescimento da UN de Le Pen e dos partidos de “extrema-direita” para o Parlamento Europeu – mesmo que tenham ficado muito aquém do que as sondagens apontavam. A Alternativa para a Alemanha (AfD), um partido neonazi, parece se consolidar como a segunda força política na terra do velho Hegel.

Importa ressaltar que o crescimento e alargamento desses partidos/movimentos não são frutos do acaso ou um acidente, mas sim, consequência da crise estrutural do capitalismo e do regime político liberal. Em síntese, esses últimos resultados representam “só” mais um momento de normalização e integração desses projetos políticos reacionários e neofascistas na sociedade e nas instituições (nacionais e europeias).

O ponto que pretendo evidenciar é o papel que a comunicação social (CS) tem tido nesse processo de normalização e integração de movimentos e partidos reacionários e neofascistas no espaço público, como se fossem mais uma organização politicamente legítima a defender interesses legítimos – mesmo que se baseiem em ideias nazifascista, racistas, colonialistas, chauvinistas e afins. Para isso recorrem a algumas táticas (intencionais ou não).

A mais usual tem sido classificar esse fenómeno ou as suas figuras políticas de “populistas”, como se fosse uma categoria autoexplicativa e definidora da natureza social e histórica de partidos como Chega, Vox, União Nacional, Irmãos d'Itália, etc. A categorização e utilização por parte da comunicação social (jornalistas, comentadores, analistas) do termo populista para movimentos e partidos neofascistas (ou de extrema-direita), no meu entendimento, acaba por funcionar como um legitimador fundamental das diversas políticas reacionárias e as suas variantes nacionais, visto que escamoteia para segundo plano o carácter antidemocrático, classicista, chauvinista, fascista e racista dessas organizações.

O ponto central é que estes partidos recorrem à ideia de “povo” (um abstrato no qual cabe qualquer coisa) de forma instrumental, enquanto uma estratégia política, que buscam se apresentarem (falsamente) como os defensores dos interesses “dos de baixo”, que ficaram desamparados, “deixados para atrás” e empobrecidos – mesmo que financiado por grandes grupos económicos. Isto é, utilizam uma eficiente tática de comunicação, a partir de necessidades e interesses reais e concretos daqueles que vivem do trabalho (na sua complexidade e heterogeneidade). Ao utilizarmos o “populismo” para categorizar qualquer ideia que se apresente contrária ao statu quo, não pode resultar no ocultamento da natureza política dessas organizações? (há estudos sobre o papel da academia no reforço dessa prática da CS).

Também identificamos um procedimento de limpeza da imagem de certas figuras políticas, no sentido de demonstrar que elas podem ser racistas, fascistas e etc., mas são humanas que “até” gostam de animais, vejam bem, têm uma coelha de estimação. O que estou a querer dizer: não existem escolhas editoriais aleatórias, são os editores-chefes que escolhem quantas vezes tal figura concede entrevista “em exclusivo” – o grande fetiche da CS.

Para quem acompanhou a comunicação social francesa nos últimos 20 dias teve a oportunidade de verificar o imenso esforço de normalização da UN e de Jordan Bardella. Todavia, a forma é um pouco diferente, mas bem conhecida da historiografia contemporânea: a “história dos dois demónios”; ou da filosofia: as falácias lógicas de falsa analogia ou “argumento” do espantalho. No caso concreto, teve uma campanha muito forte para “demonizar” o programa económico da Nova Frente Popular e Mélenchon, mas como bem disseram Cagé e Piketty no The Guardian, é uma agenda económica da antiga social-democracia europeia, não tem nada de radical ou de extremismo.

A realidade lusitana não é muito diferente, quantas vezes ouvimos dizer que seria “normal” o PSD formar governo com Chega, visto que o PS tinha realizado um acordo de incidência parlamentar com PCP, Bloco de Esquerda e os Verdes – porque esses partidos seriam de extrema-esquerda. Logo, os populistas/extremistas de esquerda e de direita são iguais. Esse tipo de prática na comunicação social é profundamente despolitizadora e normaliza do processo de fascistização no espaço público.

Por que não nomear esses movimentos/partidos de forma precisa? Tem-se medo de estigmatizá-los ao enunciarem que são reacionários ou neofascistas? Falarem “os portugueses são livres para votar”, não estão a fornecer uma “tinta” de democrático a partidos visivelmente antidemocráticos? Ou recorrer constantemente ao “populismo” não velam a raiz elitista e classicista desses partidos? Por que a esmagadora maioria da CS normalizou as alianças políticas de Ursula von der Leyen com a extrema-direita “boa” (atlantista)? O neofascismo mau só é aquele que age sem ambiguidades?»


10.7.24

Gentes de vários mundos (2)

 


A caminho de Machu Picchu, Peru, 2004.

Cavaco não se cala

 


E não percebe que o mundo mudou:


Uma parte da entrevista:



Lucília Gago: uma corporação que vive de si, por si e para si

 

Sérgio Lemos

«A entrevista de Lucília Gago à RTP foi evidentemente coordenada com a de Rosário Teixeira à SIC e o abaixo-assinado dos procuradores. Nenhum problema com isso. Não ter havido, desta vez, divulgação de escutas, buscas a sedes e ministérios ou suspeitas sobre os que criticam o Ministério Público é um avanço democrático. Fico satisfeito por se passarem a usar formas mais saudáveis de defesa de uma corporação.

Valeu a pena o Manifesto dos 50 (sou um dos subscritores acusados pela PGR de participar numa “campanha orquestrada”) para que uma ministra da Justiça falasse e o negócio do jornalismo tabloide tivesse perdido o monopólio da definição dos critérios de avaliação do trabalho dos PGR. É um grande salto: entrevistas em vez de destruição do caracter de quem critica, avaliação do trabalho da PGR em vez do populismo dos justiceiros contra os “poderosos”. Apesar do atraso com que o 25 de abril chega à justiça, é um passo importante.

O Ministério Público sentiu-se no dever de responder a um sobressalto cívico perante a total impunidade com que quotidianamente se viola a lei e, apesar de ter pedido para adiar a sua ida ao Parlamento, a Procuradora-Geral da República quis ir à televisão para falar de um caso concreto: o processo Influencer. Caem por terra, e ainda bem, as recorrentes justificações para o silêncio e ausências de esclarecimentos em tantos outros casos. Os PGR podem prestar, de viva voz, esclarecimentos sobre processos. Como seria evidente quando esteve em causa a queda de um governo.

É impensável alguém ocupar um lugar de topo na hierarquia do Estado durante seis anos sem nunca ter dado uma entrevista. A ideia de que isso é possível resulta de uma outra, mais profunda e perigosa: a de que um PGR não está sujeito ao escrutínio público. Responder, perante a total ausência de prestação de contas, que se duplicou o gabinete de imprensa, diz tudo sobre a cabeça de uma burocrata. Nem se apercebe que nos está a dizer que fez pior com mais e que o problema do Ministério Público, pelo menos no topo, não é falta de meios. Uma detentora de um alto cargo público dar entrevistas não é “espalhafato”. Espalhafato é fazer buscas com câmaras de televisão atrás e passar escutas para a imprensa. Cultura de transparência não é fritar cidadãos na praça pública. É prestar contas do que se faz.

São muitas as pérolas da entrevista que a Procuradora Geral da República deu à RTP, de que infelizmente ficou de fora a sua incapacidade de travar as sucessivas violações ao segredo de justiça. Vou-me concentrar no processo “Influencer”, que foi, na realidade, o que a levou à televisão. O grande argumento de Lucília Gago é a igualdade perante a lei. Um argumento que sabe calar fundo num país desigual, incluindo no acesso à justiça.

Mas há, no que toca ao ex-primeiro-ministro, duas perguntas que não tiveram resposta esclarecedora: porque foi investigado e porque é que a investigação foi parar a um comunicado?

A comparação das referências a Costa em telefonemas com uma escuta a uma vítima de violência doméstica, que pretende ser impressiva, não tem pés nem cabeça. A lei não traça uma linha indiscutível de quais são os indícios que permitem suspeitar da prática de um crime. Mas parece evidente que duas pessoas dizerem coisas vagas sobre o primeiro-ministro não chega. Nem preciso de dar exemplos distantes. Perante as ligações do Presidente da República ao caso das gémeas, o mesmo MP decidiu deixá-lo, provavelmente bem, fora da investigação. Investigar tudo o que se ouve não é, ao contrário do que disse a PGR, uma decisão automática. Se fosse não havia meios que chegassem. É uma escolha que deve ponderar a força dos indícios (era nenhuma, como se viu) e o dano, até para a investigação, de abrir esse caminho. Pesando uma e outra coisa, é evidente que a opção de investigar o primeiro-ministro não foi determinada por critérios de qualidade da investigação.

A segunda questão é o tal parágrafo. Se as pessoas são todas iguais perante a lei, é habitual informar o País de que alguém, que não é arguido, está a ser investigado? É natural atirar alguém para a fogueira sem ter indícios fortes para o dano que se provoca? Não, a PGR não faz isso com outros cidadãos. Não há, por isso, igualdade perante a lei.

O argumento para o ter feito é, segundo a PGR, o da transparência – vindo de quem nunca se sentiu na necessidade de dar uma entrevista, é curioso. Porque Costa é um cidadão como os outros, tem de ser investigado. Como Costa não é um cidadão como os outros, isso tem de ser público. Porquê? Porque se não o fizesse, a PGR seria acusada de tentativa de “branqueamento”.

As consequências para o primeiro-ministro da divulgação de uma suspeita sem indícios que a justifiquem foram, porque aparentemente tinham de ser, indiferentes para a PGR; já as consequências para o Ministério Público de não o fazer foram não só não fora indiferentes, como foram, nas palavras de Lucília Gago, determinantes para aquele comunicado. O primeiro-ministro pode ser infundadamente lançado na lama, a PGR é que não pode ser suspeita de guardar informação (em segredo de justiça) sobre investigações, se isso lhe puder vir a queimar as mãos. Nisto, na realidade, foi bastante clara: tratou de si própria, como, aliás, em toda a entrevista.

A corporação vive de si, por si e para si. Não é que viva alheada dos efeitos do que faz. Apenas tem em conta os efeitos que o que faz venham a ter para si mesma. Isto é tudo menos o primado da lei, que não autorizava, como é evidente, aquele comunicado.

Para explicar que a demissão foi uma decisão do primeiro-ministro, Lucília Gago deu dois exemplos de políticos suspeitos que não se demitiram: Ursula von der Leyen e Pedro Sánchez. O primeiro é real, mas é bom perceber que a presidente da Comissão Europeia sabe exatamente do que está a ser investigada, o que lhe deu a possibilidade de se defender publicamente. Ainda assim, se dependesse do voto direto dos cidadãos, não resistiria muito tempo. Já quanto à referência ao caso de Sánchez, quando a suspeita é sobre a sua mulher, a nossa PGR parece querer exportar a leviandade com que trata o bom-nome dos outros.

Do que ouvimos na entrevista, Lucília Gago não é mesmo responsável por coisa alguma. Há uma hierarquia no Ministério Público, mas ela não é informada de nada e até pode ir falar com o Presidente sem saber que, nesse momento, foi aberto um processo que o envolve. Se há um governante é escutado durante quatro anos é porque a cada 15 dias apareceram dados que permitiam tornar banal o que a lei diz ser excecional. Se os juízes detetam erros grosseiros nas investigações do Ministério Público isso é impossível, porque estes procuradores, ao contrário dos juízes que desfizeram o seu trabalho, são de uma enorme competência técnica. Se há pessoas detidas durante 22 dias sem ter sido determinada uma medida de coaçã, a culpa é capaz de ter sido da greve dos oficiais de justiça.

Seria injusto, no entanto, dizer que não vieram novidades. Lucília Gago decidiu desfazer o esclarecimento feito por Rosário Teixeira e voltou a pôr um cutelo sobre o pescoço do novo presidente do Conselho Europeu: António Costa foi ouvido como testemunha, mas não se livra do estatuto informal de potencial suspeito. Um estatuto que o deixa impossibilitado de defesa, durante anos. O mesmo que afasta Duarte Cordeiro da política. Um estatuto sem existência legal, mas que o Ministério Público usa para ter políticos temerosos pela trela, impedindo qualquer reforma que lhe tire o poder da arbitrariedade.»


Gaza

 


9.7.24

Gentes de vários mundos (1)

 


Monges budistas em Luang Prabang, Laos, 2009.

Centenas de monges saem ao nascer do dia e andam pelas ruas da cidade a recolher oferendas, em espécie ou em dinheiro. Em cada família, há todos os dias uma pessoa que reúne o que pode e entrega aos monges, na convicção de que aquilo que é dado alimentará (também) os seus próprios antepassados.

As explicações da PGR

 


A construção do parágrafo explicada por Chico Buarque:

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Luís Paixão Martins no Facebook

Mercedes Sosa

 


Mercedes Sosa faria hoje 89 anos. Nasceu no Noroeste dessa extraordinária terra que é a Argentina, em San Miguel de Tucumán, cidade onde também num 9 de Julho foi declarada a independência do país (em 1816).

Quando a Junta Militar de Jorge Videla subiu ao poder e se foi tornando cada vez mais agressiva, Mercedes, considerada peronista de esquerda, foi detida durante um concerto em La Plata, em 1979, refugiou-se depois em Paris e em Madrid e só regressou a Buenos Aires, e ao magnífico Teatro Colón, em 1982.







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A terceira volta é de Macron

 


«Emmanuel Macron pediu aos franceses que clarificassem o que queriam dizer quando fizeram da União Nacional (RN, na sigla francesa) o partido mais votado nas eleições europeias. Mas o que seria mais um combate entre Macron e Marine le Pen, que o Presidente tem ganho pelo tradicional bloqueio à ascensão da extrema-direita, revelou-se contraproducente e introduziu um factor inesperado. A vitória do partido de Jordan Bardella na primeira volta e a criação de uma frente popular de esquerda em 24 horas reduziram as alianças em torno de Macron a uma ínfima expressão representativa.

O que os eleitores disseram nesta segunda volta, neste domingo, é que a França deve continuar a ser republicana e não anti-republicana. O sistema de desistências de candidatos a favor de alguém do campo republicano, em detrimentos das listas da União Nacional, resultou, mais por determinação da esquerda, que tinha anunciado essa intenção logo na noite da primeira volta, do que por convicção da ala macronista, onde há quem tenha um discurso de equiparação entre Marine le Pen e Jean-Luc Mélenchon, o líder da França Insubmissa (LFI), o partido de esquerda com mais assentos na Assembleia Nacional.

O que daqui resulta é o adiamento da progressão do voto da extrema-direita, que se vê ainda longe do poder, que agora terá de esperar pelas presidenciais de 2027 ou por legislativas antecipadas, e a grande surpresa da vitória da Nova Frente Popular (NFP). A primeira página do Libération do dia seguinte à primeira volta tinha, como habitualmente, uma manchete engagé: “Depois do choque, fazer o bloqueio”. Foi o bloqueio aos candidatos da UN que garantiu a vitória da esquerda, insuflou oxigénio ao macronismo, que ficou em segundo lugar, e derrotou a extrema-direita.

A França respirou de alívio, mas isso não quer dizer que seja facilmente governável. Macron e NFP terão dois ritmos distintos. O Presidente francês vai tentar adiar ao máximo a escolha de um novo primeiro-ministro, pedindo a Gabriel Attal que se mantenha em funções. Há uma razão evidente para isso — a realização dos Jogos Olímpicos em Paris ¬ e outra mais obscura — a esperança de fragmentação e implosão da frente vencedora. A NFP, por seu turno, já fez saber que tem um nome para propor como primeiro-ministro, o que à partida é sinónimo de consenso entre as várias forças políticas que a compõem. Veremos.

Os resultados deste domingo consolidam a França Insubmissa como principal partido de esquerda, mas não impedem que existam diferentes alas no seu seio, com tentações fratricidas, o renascer do Partido Socialista, que François Hollande deixou em estado de coma, e um partido ecologista em ascensão.

Marine Tondelier, a líder dos ecologistas, emergiu na última semana de campanha com mais preponderância ¬— Bardella não quis debater com ela — e o seu esforço de diálogo foi inexcedível: percorreu todos os canais tablóides (C8, BFMTV, Cnews) sem complexos e com a mensagem: "Estou aqui para tentar esclarecer os vossos espectadores.” O facto de ser líder partidária, porém, deve excluí-la.

A última coisa que deveria acontecer a esta frente, que travou a ascensão da extrema-direita e venceu o macronismo, era dividir-se na hora de construir um governo; estraçalhar-se por uma luta de egos.

Por razões óbvias, o Presidente deveria nomear o nome proposto pela NFP e este deveria ser suficientemente consensual para poder dialogar com a ala macronista na Assembleia Nacional. O que é teoricamente prático é praticamente teórico se Macron e aliados se recusarem a viabilizar um Governo em que participe alguém da LFI. A França está habituada a barrar a extrema-direita, mas não tem qualquer tradição de governos de coligação.

Se a esquerda se dividir entre quem aceita participar num governo do qual parte dela está excluída, isso será o fim da própria frente e a destruição de futuras soluções que possam continuar a evitar que a extrema-direita conquiste a França, com toda a repercussão que isso terá a nível europeu, pois pode ser um exemplo a ter em conta em outros países. Se a esquerda não se mantiver unida, de nada terá valido o caminho de aproximação que fez até aqui.

Macron aposta na fragmentação e terá tendência a escolher um governo que espelhe essas divisões, diluindo a importância de quem venceu. Em caso de união de esquerda, o Presidente não terá legitimidade para ignorar os resultados das eleições e nomear um governo da sua confiança sem participação dos partidos da NFP.

O que irá fazer Macron até poder dissolver a Assembleia daqui a um ano? É o momento de Macron clarificar o que quer para o país. Uma coisa é certa: a coabitação entre presidencialismo e parlamentarismo promete ser agitada.»


8.7.24

Nada está garantido

 

«Esquerda e centro não podem dar por adquirida a derrota da extrema-direita. É provável que a RN venha a ser o principal partido parlamentar. Mas, sobretudo, não podem menosprezar o enraizamento das ideias xenófobas, nacionalista e eurocépticas de Marine Le Pen. E não podem esquecer que as ideias cultivadas pela extrema-direita estão a crescer na maior parte da Europa. Até agora, a extrema-direita tem estado a vencer “a batalha das ideias”.»


Edgar Morin chega hoje aos 103

 


De uma lucidez impressionante, continua bem activo, escreve no Twitter quase todos os dias (ainda ontem o fez), dá entrevistas (uma da semana passada no fim deste post), etc., etc.

Não me é indiferente tê-lo conhecido bem numa das suas primeiras vindas a Portugal nos idos de 60, sempre presente num mundo a que eu também pertencia. Lembro-me de muitas reuniões e colóquios, e até de termos assistido, na TV e em grande grupo, a um decisivo desafio de futebol. Também, de ter convivido algum tempo com ele no Algarve, em casa de amigos muito próximos, onde se refugiara para escrever.

103 é uma bela idade e carimba o passado com muita admiração e uma inesperada nostalgia.



La Carmagnole

 



Os franceses salvaram a democracia, não Macron

 


«Há 40 anos que tanta gente não votava. França mobilizou-se para derrotar a extrema-direita que, contra todas as previsões, ficou em terceiro lugar. Esta é a grande vitória da democracia. Para este resultado, contaram as desistências cruzadas. A linha do “nem-nem” (“nem extrema-direita, nem extrema-esquerda”), defendida por alguns macronistas e pela direita tradicional, também foi derrotada.

Três lições: a esquerda pode aliar-se em dois ou três dias, vencendo sectarismos e supostos bloqueios programáticos e derrotando o tacticismo de Macron, que nada conseguiu com esta dissolução expedita e irresponsável; essa esquerda pode liderar a oposição à extrema-direita; e a frente republicana não se faz com um “nem-nem” que tenta impor uma equivalência entre a esquerda progressista e a extrema-direita, para que o neoliberalismo seja tudo o que sobra em democracia.

A segunda parte deste resultado é a frente de esquerda ter-se assumido como a força alternativa de poder que deve ser chamada a liderar uma solução do governo. A França provou que não é preciso inclinar a política à direita para vencer a extrema-direita. A alternativa aos inimigos da democracia não é o fim da política.

Macron é responsável pelo crescimento exponencial da extrema-direita. O obreiro da destruição do sistema partidário francês. Um autoritário que impôs a agenda neoliberal por decreto e com o bastão na mão. Foi a democracia que os franceses salvaram, não ele. Mas não aceitará esta viragem de página sem tentar destruir o que sobre. Não irá aceitar outro papel que não seja o de “Presidente-Sol”.

Édouard Philippe, ex-primeiro-ministro que lidera o Horizons, da aliança presidencial, foi um dos partidários do “nem-nem”. Agora, veio defender um governo com socialistas e verdes, mas sem os “insubmissos”. Agarrado a uma boia que não reconhece a derrota (o Ensemble passa de 245 deputados em 2022 – 350 em 2017 – para 168), finge não perceber que o RN só foi derrotado porque essa posição foi ignorada pelos democratas. A grande maioria dos franceses não acompanhou a equiparação entre boa parte da Nova Frente Popular (NFP) e a União Nacional (RN).

Seguindo o conselho de dividir a esquerda para continuar a mandar no país, Emmanuel Macron pode convidar socialistas e ecologistas a separarem-se da França Insubmissa (LFI) para se juntarem às suas forças. O seu beijo seria o da morte, depois do PS ter ressuscitado através de alianças de esquerda. Se caíssem nisto, partindo uma aliança vitoriosa para deixar que o responsável pelo crescimento da extrema-direita mantivesse a liderança que os franceses lhe negaram, voltariam à estaca zero, mostrando que nada se aprendeu. Se o PS tivesse usado a NFP, que deu esperança a muitos franceses (sobretudo a muitos jovens), como barriga de aluguer, voltaria a tropeçar no seu próprio tacticismo.

Os primeiros sinais dados pelo líder do PS, Olivier Faure, foram de unidade e disciplina no campo da esquerda. E de vontade aplicar o programa que negociaram. Talvez o fantasma de François Hollande, couveiro dos socialistas regressado ao parlamento, não seja mau agoiro, afinal.

Mas o resultado destas eleições deixa a França numa situação muito difícil. A esquerda não tem maioria absoluta – o governo macronista também não tinha e governou, usando várias vezes o artigo 49.3 da Constituição – e o ódio acumulado ao poder autoritário e neoliberal de Emmanuel Macron, que ainda tem a chaves do poder, torna difíceis entendimentos que não preparem o caminho para a vitória de Marine Le Pen, em 2027.

Que deve ser a esquerda a governar, é evidente. Que Melénchon seja a figura unificadora, é improvável. A sua taxa de rejeição é grande. Foi fundamental para fazer renascer da esquerda. Para que ela voltasse a conquistar o voto dos jovens, dos suburbanos das grandes cidades, dos trabalhadores. Para que a esquerda não se transformasse o voto do privilégio. Mas é como Ronaldo: foi indispensável para o crescimento, mas este tempo já não é o dele. Se não se afastar, arrisca-se alimentar fraturas na NFP que Macron (e alguns setores do PS) tentará aproveitar, para recuperar a liderança que lhe foi retirada pelo voto.

Ontem, a extrema-direita não foi derrotada pelo mal menor. Os franceses não votaram de novo na causa para evitar o crescimento da consequência. Mas, se Macron se impuser com a sua teimosia derrotada, se os socialistas cederem a uma secessão suicida, se Melénchon não sair do palco com a sua vaidade persistente, se todos falharem como continuamente têm falhado, 2027 será o ano de Le Pen. Se não repararam, o crescimento continuou.»


Ouf!

 


7.7.24

Afinal...

 


O inesperado aconteceu. Tudo vai ser muito complicado, mas enquanto o pau vai e vem folgam as costas.

França, 15:40

 



Com um sorriso nervoso, esta não me sai da cabeça esta tarde.

Pelo direito a ser “arrogante”: Cláudia Simões diante da justiça burguesa

 


«“Arrogante”, foi uma das palavras escolhidas pela procuradora do Ministério Público Maria do Rosário Pires para definir a vítima Cláudia Simões na ocasião do julgamento do agente público Carlos Canha por violência policial. Apesar de as lesões graves em Cláudia terem sido confirmadas por médicos especialistas, a procuradora considerou suas alegações “exageradas”.

Mas, o agente Carlos Canha ainda chegou a ser condenado por ofensas e agressão, dessa vez a dois outros cidadãos na esquadra da Amadora. Contudo, nesse caso a procuradora referiu que o depoimento de uma das vítimas demonstrou “ausência de revolta” e “humildade”, como expressão de mérito.

Não é incomum a evocação da humildade, nesse caso adiciona-se a “ausência de revolta”, como medida de valor direcionada especialmente a pessoas pauperizadas ou racializadas. O que a procuradora e juíza que conduziram esses casos fizeram, nas entrelinhas, foi dizer que o “bom cidadão” pobre é aquele que aceita o lugar que a estrutura do capitalismo lhe concedeu de cativo, que eventualmente pode ser agraciado com uma “condecoração de mérito”, quando, com “ausência de revolta” e “humildade” reconhece “o seu lugar”.

A verdade é que a coragem de Cláudia Simões ofende. É intransigente porque não baixa a cabeça, assume que mordeu o policial porque não queria morrer, porque ele a estava a sufocar diante dos olhos da filha de oito anos. É insubmissa pelo simples facto de reivindicar sua humanidade diante de uma justiça que a invisibiliza, que naturaliza que um agente do Estado a descaracterize chamando-a de “puta, vaca, macaca, preta”.

A falta de habilidade, para dizer o mínimo, de alguns agentes de segurança em Portugal para lidar com situações corriqueiras no exercício da sua função tem sido cada vez mais recorrente. Pode ser observada nos mais variados escalões do funcionarismo público, do policial à procuradora e juíza, o despreparo e o uso da violência física e psíquica têm-se naturalizado na sociedade a níveis assombrosos e colocam a nu a face classista e elitista da justiça.

Da figura de Thémis, a deusa grega da justiça, que é caracterizada com olhos vendados, a segurar uma balança e uma espada, que representam respetivamente a imparcialidade, a equivalência da lei e da força para combater a injustiça, são transfigurados todos esses valores e para os anais da memória desse julgamento ficam a parcialidade, arbitrariedade, o elitismo e a injustiça.

De Cláudia, essa mulher trabalhadora, constrangida a vários níveis, tenta fazer-se um exemplo: de vítima passa a acusada. O exemplo não é só direcionado a ela, mas a todo trabalhador e trabalhadora. O exemplo de que a voz cativa obediente, agradecida é o único lugar possível, onde, eventualmente, segundo a conveniência do poder, poderão encontrar alguma benevolência.

As vozes insubmissas das “Cláudias” da nossa sociedade nos lembram Bertolt Brecht quando diz: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Aos cansados e resignados também lembramos: não há transformação na história portuguesa que não tenha passado pela voz dita “arrogante” e intransigente daquelas/es que se revoltaram e lutaram contra a injustiça.»


NON

 


Libération, 06.07.2024