«1. Hoje de manhã, sabedor de que tenho um artigo para escrever, o maestro da minha orquestra, a dos políticos corruptos e dos poderosos que não querem escrutínio dos seus crimes, e de uma elite que acha que está acima lei e da gente comum, mandou-me escrever sobre a entrevista da procuradora-geral da República. Perguntei-lhe se valia a pena fazê-lo, visto que toda a gente tinha passado a semana a falar e a escrever sobre a dita entrevista. Disse-me que valia por duas razões: uma, é que as reacções à entrevista são interessantes de per si; outra, porque tinha fama de não ter punhos de renda, ou seja, ser mais bruto. O elogio do meu maestro animou-me.
2. Foi bom a procuradora ter dado a entrevista que deu. Para quem não tinha a verdadeira dimensão de com quem estava a lidar, ficou ali mais evidente, a arrogância, o poder sem responsabilidade – o que em democracia é antidemocrático –, a indiferença aos efeitos de acções precipitadas e pouco fundamentadas, o desprezo pelo valor da obrigação de responder pelo que se faz. Ou seja, o Ministério Público (MP) no entendimento da sua chefia é uma entidade divina, um corpo imaculado, perfeito, sem mancha, sem desejos. Como sou avesso a perfeições e não acredito em corpos imaculados, ainda com mais vontade fiquei de servir o meu maestro e participar na minha orquestra.
3. Também percebi por que razão a procuradora não queria dar entrevistas – o que ela tem para dizer tem um efeito de revelação e o poder não gosta de ser revelado. Um dos poderes que protegem o poder é o silêncio, a descrição e o segredo. Quebrado o silêncio, manda-se menos.
4. Eu assinei o Manifesto maldito dos 50, o que levantou uma tempestade genuína nos ares fétidos do pântano do medo e, por isso, enfraqueceu a barreira que protegia o comportamento abusivo do justicialismo e o seu sistema de cumplicidades. Mas, sim meu maestro, as reacções à entrevista são reveladoras e centram-se em três grupos: o jornalismo receptáculo das fugas de informação e que é, ele próprio, corrompido porque sabe que elas dão fama e audiências e estes são dois ingredientes fundamentais no mercado de emprego; a corporação justicialista e os seus apêndices “cívicos” pouco interessados nos direitos fundamentais; e a direita que nunca há-de agradecer o bastante por a procuradora ter atirado abaixo António Costa, coisa que nunca conseguiu fazer.
5. Vejo com muita ironia o desprezo com que jornalistas acusam as críticas à procuradora-geral da República e ao MP de virem de uma elite que nunca se preocupou com as pessoas comuns. É em parte verdade, muitos chegaram tarde. E depois? Têm razão ou não? Esta crítica volta-se contra os seus autores porque tem implícita a ideia de que é vulgar haver abusos sobre as pessoas comuns, só que são invisíveis. Também não os vi muito preocupados, mas, voltando à ironia, é curioso ver tanto zelo na defesa das pessoas comuns quando olho para os jornais e o modo como tratam as mesmas pessoas comuns, violando qualquer presunção de inocência retratando em desenhos as vítimas de violação, mesmo crianças, de uma forma concupiscente, reproduzindo a má-língua de vizinhos e parentes. Respeito pelas pessoas comuns? Tretas. Sim, de facto, estão mesmo muito preocupados com as “pessoas comuns”. Elas não são o manjar real, mas a comida de todos os dias, e há que comer todos os dias para ter o jornal em cima das mesas do café. Concordo, no entanto, numa coisa: talvez no caso das pessoas comuns as fugas de informação não venham dos mais altos níveis das autoridades judiciais, mas sim dos mais baixos.
6. Há uma coisa também interessante nas reacções à entrevista da procuradora, o apoio entusiástico que a nossa direita radical dá ao MP pela sua actuação à volta de Costa. Percebe-se, o MP deu-lhe um gigantesco presente, e ser-lhe-á reconhecida até ao fim dos dias, porque derrubou Costa, que nunca conseguiria deitar abaixo.
7. Mas há uma coisa que não percebe: é que o justicialismo é de direita pelos métodos e pelo desprezo pela democracia, mas é de esquerda pela ideia de que toda a actividade económica é pela sua natureza corrupta – portanto, ir-lhe-á bater à porta. Em seu devido tempo, já não se recordam que andaram anos a dizer que o MP tinha sido tomado pelo PCP, que o sindicato era uma emanação da UEC?
8. O Manifesto dos 50 é um ponto sem retorno, não na questão da justiça, mas sim na denúncia dos abusos que são feitos em seu nome. Eles, sim “eles”, sabem disso muito bem e por isso estão numa fase de contenção dos danos. Mas hoje não é possível, sem controvérsia da pesada, e com o apoio de muito mais do que os políticos, mas da maioria da opinião pública, actuar com a displicência e a irresponsabilidade arrogante dos últimos tempos.
9. É pouco provável que haja a coragem de fazer reformas de fundo, nem em bom rigor elas são necessárias para corrigir os abusos, mas há obrigação de conhecermos o que pensa o futuro/a procurador/a-geral da República sobre estas situações, e de se encontrarem mecanismos que protejam mais eficazmente os direitos fundamentais do abuso justicialista.
10. A culpa última da actual situação não é da corporação justicialista e dos seus espúrios braços “cívicos”, mas dos políticos que fizeram a arquitectura e as escolhas do actual sistema de irresponsabilidade e poder sem controlo do MP. Deitam-se numa cama que foi feita por eles, com uma mistura de cedências populistas, medos e sentimentos de culpa. Será, meu maestro, que dei um bom contributo para a campanha orquestrada?»
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