4.3.23

Galerias

 


Galeria Vivienne, Paris, 1823.
Arquitecto François-Jacques Delannoy.


Daqui.
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CDS

 


Vacas voadoras já não temos há muito tempo, mas eu vi Nuno Melo numa manifestação da FENPROF.
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Deve ter 30 para espalhar as más...

 


(Expresso, 03.03.2023)
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A Igreja portuguesa continua a não saber lidar com os abusos

 


«O relatório final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa foi apresentado há quase três semanas. Os bispos sabiam, há bastante mais tempo do que isso, que o relatório não iria ser lisonjeiro para a Igreja. Não, a excepção portuguesa, pela qual alguns ansiavam, não existe. Não, os abusos de menores não são “um fenómeno fundamentalmente anglo-saxónico”, como chegou a afirmar D. Manuel Linda. São um fenómeno americano, europeu, africano, asiático, absolutamente transversal à Igreja, e potenciado por uma cultura de encobrimento que não só permitiu a continuação dos crimes, como promoveu a sua multiplicação, ao empurrar padres pedófilos de umas paróquias para as outras. Com a cumplicidade de bispos, cardeais e até de papas.

Este é o maior escândalo da Igreja desde a Inquisição. Deve ser assumido enquanto tal. Mas não foi o que aconteceu esta sexta-feira, em Fátima. Aquilo que vimos foi de novo uma Igreja cautelosa, muito possivelmente dividida, incapaz de tomar medidas vigorosas, e, sobretudo, em claríssimo modo de contenção de danos. Passaram três semanas da terrível conferência de imprensa na Gulbenkian sobre os abusos, e a única coisa que os bispos conseguiram acordar de concreto foi a construção de um memorial às vítimas durante a Jornada Mundial da Juventude. Já se sabe: a Igreja é excelente em memoriais, vigílias e orações. Mas não é disso que as vítimas estão à espera. Tudo o resto foram promessas vagas: “acompanhamento espiritual, psicológico e psiquiátrico” (não foi explicado como, nem por quem); “tolerância zero” para com “todos os abusadores”; o envio da lista com o nome dos alegados pedófilos para as dioceses respectivas, para terem “o devido seguimento por parte dos bispos”.

Ao fim de três semanas de reflexão e suposto debate, isto é uma mão cheia de nada – ainda que D. José Ornelas tenha preferido chamar-lhe “uma mão cheia de compromissos”. Olhemos para as suas respostas às três questões mais sensíveis sobre este tema. Indemnizações das vítimas? Nem pensar: o responsável é quem comete o crime, e a Igreja nada tem a ver com isso – como se a cumplicidade no encobrimento fosse irrelevante, ou como se a diocese de Boston não tivesse ido à falência nos Estados Unidos por causa das indemnizações que teve de pagar às vítimas. Afastamento dos padres abusadores? É preciso analisar com cuidado, porque a única coisa que a comissão disponibilizou (ouvimos nós 20 vezes) foi uma lista de nomes, sem quaisquer elementos adicionais, o que vai dificultar a investigação. E quanto à ideia de afastar os bispos que encobriram casos? Silêncio absoluto e pontapé para o pinhal.

D. José Ornelas desculpou-se, claro: “foi uma reunião forçosamente limitada no tempo”; “tivemos a manhã ocupada a reunir com a comissão”; são apenas “linhas de orientação”; há “pontos concretos que têm de ser negociados”. Mas foi curto. Foi muito curto. D. José Ornelas adoptou sempre um modo defensivo; recusou que a Igreja fosse “atracção para pedófilos”; e esforçou-se para alargar o problema da pedofilia à sociedade, uma técnica habitual para evitar que a Igreja fique isolada debaixo dos holofotes.

Mas basta ouvir o Papa Francisco falar sobre o tema – não tem nada a ver com isto. Após a conferência de imprensa, Lisete Fradique, do movimento Nós Somos Igreja, disse na SIC Notícias: “Senti falta de compaixão”. Somos dois. Muito calculismo; muito pouca empatia.»

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3.3.23

Mais vasos

 


Vaso de vidro boémio soprado à mão e de metal, com folhas de hera e bagas, Áustria, 1902.
Loetz.

Daqui.
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José Manuel Galvão Teles, ainda

 


Os que me lêem habitualmente reconhecerão a parte direita desta fotografia que uso como imagem de perfil todos os anos nas redes sociais, por volta do 25 de Abril. Foi tirada às 11h no Largo do Corpo Santo em Lisboa, no dia 25.04.1974, quando ainda nada estava decidido, pela Micucha, mulher do José Manuel Galvão Teles que ontem morreu.

Já disse muitas vezes que é a maior fotografia que guardo da minha longa vida. Acrescento hoje que é um dos símbolos do elo de amizade e de cumplicidade inabaláveis que me ligaram ao Zé Manel (e à sua família), sobretudo nos agitados activismos antifascistas dos anos 60, quando estivemos de braço dado e mão na massa, numa teia de actividades inimaginável. Com algumas características que sempre nos uniram: a persistência (ou talvez teimosia…), a alegria e o hábito, de que tanto nos ríamos, de sermos os últimos a sair de qualquer reunião ou actividade, por mais que os relógios indicassem que já há muito começara o dia seguinte.

Num livro publicado há alguns anos em sua homenagem, escrevi isto: «Posso estar meses, ou mesmo anos, sem o ver. Mas é sempre como há mais de meio século: foi ontem, quando muito anteontem.» O «meu» mundo não será o mesmo sem o Zé Manel.
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Portugal dói tanto

 


«Quando o rei D. Carlos se passeava de palácio em palácio, enfastiado pelas intrigas entre os seus jurados apoiantes e cansado da maçada que era pavonear-se perante o povo, terá dito a alguns dos intelectuais que eram os seus colegas na arte do desespero que Portugal “é uma piolheira”. “Uma granja e um banco: eis o Portugal, português. Onde está a oficina? E sem esta função eminente do organismo económico não há nações. Pode haver populações provinciais; pode haver Mónacos; mas falta um órgão de circulação, um membro ao corpo humano. Um povo constituído em nação é como um abecedário: todas as letras lhe são necessárias para escrever o que pensa”, terá explicado Oliveira Martins, que, fiel à sua ambição e ao rei, tentou vários ministérios e parece ter falhado em todos. A “piolheira”, em todo o caso, era isto mesmo: granja, o poder dos aristocratas e novos-ricos fundiários, sentados num campesinato miserável governado pela baioneta dos guardas, e um banco, onde se negociavam os tesouros ultramarinos, as comissões, as falcatruas. Isso criava “Mónacos”, uma jogatana divertida no Estoril, mas pouca oficina; muito export-import, mas rara produção; um enriquecimento de alguns e um mar de pobres e de sacrificados. A piolheira era o Portugal das castas. Passou mais de um século e será que não nos tutela ainda uma réstia desse espírito de casta, desse menosprezo pela população, do fingimento como forma de política? Portugal dói desse passado que nos persegue e dói tanto quando o presente nos humilha.

ABUSO

Portugal dói quando o primeiro-ministro se dirige aos idosos para lhes anunciar o maior aumento de sempre das suas reformas e pensões. São 8%, coisa nunca vista, um maná celestial, eu cuido de vocês. Ora, como quem lê estas páginas, o Governo sabe que o valor do aumento de 2022 e de 2023 fica pelo menos 6% abaixo do valor da inflação dos mesmos anos e que, portanto, a proteção social empobreceu os idosos; sabe que está a preparar um ajustamento para 2024 que considere um aumento só sobre metade do valor que foi acrescentado em função do ano de inflação máxima e que, assim sendo, vai acentuar essa queda do poder de compra. E, apesar disso, anunciou-lhes um privilégio, um ganho que é uma perda, esperando que a ilusão monetária de um aumento abaixo da inflação os convença de que é uma benesse. A velha obsessão do PS de congelar as pensões, como propôs no seu programa de 2015, até se orgulhando da conta do que assim retiraria aos pensionistas, 1660 milhões de euros — graças a Catarina Martins, essa medida caiu logo que Costa precisou de negociar para ser Governo —, é agora transformada numa medida pior ainda, a redução do valor real espanejando um pagamento abundante. Saber e enganar, com a certeza de que isso resultará, como dói Portugal.

Dói que passem seis anos desde a promessa do médico de família para toda a gente, que foi agora enterrada com alguma baixeza e não pouco cinismo. Na verdade, nada foi feito, nem sequer tentado. E haveria 26 mil casas, todas as famílias que viviam em condições indignas chegariam aos 50 anos do 25 de Abril com casa reabilitada ou construída — quatro anos depois, faltam os tijolos onde se multiplicou a solenidade do juramento, os ministros com a tutela da habitação estão sequestrados no Governo, que lhes recusa o orçamento e a vontade política para começar, e agora multiplica declarações enfáticas sobre o que sabe que não vai acontecer. Em todos estes casos eles sabem que não vão fazer, não vai acontecer, o tempo corre e o problema se agrava. Portugal dói da mentira.

ASSALTO

Privatizaram-se os correios, outra velha obsessão do PS, que pôs no seu programa essa grande reforma pelo menos desde 2011 por razões ainda hoje misteriosas, a empresa financiava o Estado e garantia uma presença de conforto em tantas vilas e aldeias onde é precisa. O mais antigo serviço do país foi entregue a uma horda de capitais vagamente reconhecíveis, a empresa degradou-se ao ponto da vergonha. E agora que a TAP dá lucro e portanto pode pagar o que ficou a dever, começa a corrida para a vender ao desbarato e a missão sagrada do Estado, que era preservar as “caravelas” modernas, disse-nos o primeiro-ministro num arroubo poético, passou a ser vendê-la o mais depressa possível a espanhóis, franceses ou alemães ou a quem seja. O desprezo por Portugal dói.

A inflação dos produtos alimentares é em Portugal o dobro da de países com estruturas produtivas comparáveis, que importam parte do seu consumo e que, como nós, não produzem petróleo nem gás. Descobre-se que há supermercados que cobram na caixa um preço diferente do que afixam nas embalagens. Os bancos festejam lucros monumentais, enquanto cobram juros e um maná de comissões e deixam as poupanças dos depositantes serem corroídas pela inflação. Os vistos gold meio que terminam depois de terem feito o seu serviço, entre a corrupção e a inflação imobiliária, agora temos um substituto melhor, os nómadas digitais para tendas milionárias ou rendas exorbitantes; o Alojamento Local só pareceu ser demasiado quando ocupou três quartos das habitações de um bairro. Se Oliveira Martins hoje nos visse, notaria que Portugal é agora uma granja turística e a finança, irmanados na especulação, o novo Mónaco. Neste festim atiram-nos à cara, como se fosse um sucesso, o que é o desprezo pelo povo. Portugal dói tanto.»

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2.3.23

Mariana Mortágua

 


«Na primeira entrevista de fundo que dá desde que anunciou que é candidata à liderança do Bloco de Esquerda (BE), Mariana Mortágua assume que, com a mudança de direção, a linha política do partido não "muda radicalmente de um lado ao outro". Ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal Público, a dirigente bloquista fala de "um novo ciclo político que se abre e que é um ciclo de oposição à maioria absoluta" conquistada há um ano pelo PS.*

Entrevista a ser lida ou vista e ouvida AQUI.
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José Manuel Galvão Teles



 

Morreu esta tarde uma das pessoas que me foi mais próxima em etapas importantes da vida e de quem disse uma vez, em sessão pública, que era o irmão que não tive.

Teria muito para escrever. Mas, pelo menos agora, não sou capaz.
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1969 e a guerra das calças

 


Uma troca de impressões no Facebook recordou-me um texto que escrevi aqui há muito tempo.

Um recorte de um velho Diário Popular fez-me recuar até 1969. Nele se lê que, nesse ano, as lojas passaram a vender um número absolutamente inusitado de calças a mulheres de todas as idades. Nesse fim de década, os costumes não eram o que até aí sempre eram, Paris e as barricadas do Maio de 68 não tinham estado tão longe como a Nova Zelândia.

Mas o que é mesmo curioso é a fotografia e respectiva legenda: «As alunas da Faculdade de Letras já ganharam a sua batalha». Não é dito qual era a batalha nem qual foi a vitória, talvez porque um lápis azul da censura tenha cortado a explicação.

Eu dava então aulas em Filosofia e a prática corrente quanto a indumentária feminina era a seguinte: só às estrangeiras, que frequentavam cursos de língua portuguesa, era permitido usar calças e a triagem era feita pela Sr.ª Clotilde. Várias gerações se lembrarão desta zelosa empregada, sempre presente pelos corredores, movendo-se lentamente dentro de uma bata preta acetinada. Quando avistava pernas femininas revestidas, aproximava-se e perguntava em voz muito baixa: «A menina é estrangeira?». Ausência de compreensão e, portanto, de resposta, era interpretada como afirmativa e a autorização era tácita, mas tinha ordens para pedir às portuguesas que abandonassem as instalações da Faculdade.

Uma parte desse ano de 69 foi animadíssima na Cidade Universitária - como o foi (e de que maneira…) em Coimbra e nalgumas outras faculdades de Lisboa. Foi decretada uma greve e, enquanto ela durou, é óbvio que a Srª Clotilde se recolheu atrás de uma secretária e que toda a gente fez assembleias por todos os cantos, com calças, saias e mini-saias. A famosa greve teve esse benefício colateral: as calças entraram em Letras para sempre e ficaram como direito feminino adquirido. Ou seja, foi ganha a tal batalha que a fotografia do jornal refere sem explicar.

Uma segunda parte da história pode ser lida AQUI.
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A Bolt ri-se da lei

 


«A pensar nas plataformas digitais, o artigo 12º-A, acabado de acrescentar ao Código do Trabalho, presume "a existência de contrato de trabalho" quando haja fixação de retribuição pelo trabalho efetuado, poder de direção, controlo e supervisão da atividade (por exemplo, através de geolocalização), restrição da autonomia do trabalhador na organização do trabalho, poder disciplinar e utilização de instrumentos de trabalho da empresa (por exemplo, a aplicação ou os sacos térmicos).

O responsável nacional pela Bolt, que garante que Portugal é dos países onde o negócio corre melhor, não se mostra preocupado. Em entrevista ao “Jornal de Negócios”, explicou que não tenciona atribuir contrato de trabalho aos mais de 20 mil motoristas TVDE e quase 20 mil estafetas ao seu serviço. Citando um estudo feito pela própria empresa – o estilo soviético destes patrões que não são patrões é sempre enternecedor –, garante que os “nossos estafetas” (descaiu-se) não querem estes direitos.

Familiarizado com o espírito do direito de trabalho, diz que a lei não é necessária porque quando alguém tem mais de 50% do rendimento pago pela Bolt ela já tem de pagar uma taxa (embora a Uber Eats já tenha dito que nem isso quer). Argumenta com a flexibilidade deste tipo de trabalho, parecendo ignorar que trabalhos com flexibilidade de horário e picos de produção não apareceram com as plataformas e estão contemplados na lei há décadas, com vínculos laborais. O que se faz agora é acrescentar mais esta modalidade.

Como são seis os fatores cumulativos e dois têm de se verificar, é nisso que Nuno Inácio pretende trabalhar. Acredita que, bem feitas as coisas, o risco de as plataformas digitais serem consideradas empregadoras “não será substancial”. Até nos explica um truque possível: “dar, por exemplo, a possibilidade do motorista ou estafeta escolher dentro de um intervalo que preço é que quer fazer”, fazendo assim desaparecer um dos critérios. E ir fazendo isso com todos os critérios, sem mudar realmente nada de fundamental. Ou seja, a Bolt promete encontrar um truque para contornar a lei. Diz que já o fizeram noutros países. As jornalistas do “Jornal de Negócios” perguntaram: “Se a vossa operação não refletir os indícios da lei então o juiz nunca poderá dizer que a plataforma é empregadora. É isso?” Ninguém o pode acusar de falta de honestidade: “É mais ou menos isso”.

E espera que, mostrando que a fuga à lei está à frente da vantagem em relação a concorrentes próximos, que os outros façam o mesmo. As associações patronais ameaçam rasgar acordos que assinaram se houvesse qualquer melhoria na lei para os trabalhadores (entretanto já recuaram, talvez porque lhes prometeram mais umas borlas fiscais). Estes nem isso. Encolhem os ombros e riem-se do Estado. Querem lá saber da lei.

No fim, lá reconhece que pode haver um ligeiro aumento dos custos do serviço. Mesmo com a chico-espertice, a lei terá conseguido alguma coisa para quem fornece a mão de obra, o carro, a gasolina e o seguro a empresas que, mais do que o desenvolvimento tecnológico, que já se generalizou, têm como grande vantagem concorrencial andar à frente dos governos e da lei, aproveitando todas as falhas para fugir a qualquer regulamentação.

O diretor da Bolt não disse que a nova lei punha em causa o seu modelo de negócio. A Bolt tem e espera continuar a ter excelentes resultados em Portugal. Não disse que ela era injusta. Nem se preocupa especialmente em convencer-nos que aqueles são mesmo parceiros e não trabalhadores. Disse apenas e só, com aquela arrogância feudal de quem não tem qualquer receio do Estado ou da justiça, que tenciona contornar a lei. Porquê? Porque pode. Porque estas empresas não receiam os políticos, o Estado, as leis, a ACT e muito menos as greves. Resta saber se conseguem. Em vários países europeus, em mais de 200 decisões, os tribunais têm obrigado a que mudem as suas práticas. Como será por cá?

“Os ricos perderam o medo dos pobres”, escreveu Eric Hobsbawm, em 1989. Não temem que, se não cederem um pouco da riqueza, uma revolta lhes tire tudo. Não têm incentivos para negociar seja o que for. Ainda mais com estes trabalhadores, grande parte imigrantes, pouco organizados, desprotegidos. Esse é verdadeiramente o problema: a balança desequilibrou tanto que a exploração perdeu qualquer noção do limite.»

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1.3.23

Mais um vaso

 


Vaso Oakleaf (folha de carvalho), França, 1895.
Desenhado por Emile Gallé, fabricado por Cristallerie de Gallé.
© Victoria and Albert Museum, Londres


Daqui.
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Ter uma casa

 


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Lula e drama no 25 de Abril

 



Este tema deixa-me relativamente indiferente, excepto por estes motivos: revela esperteza (não) saloia de um (Marcelo), gafe de outro (Cravinho) e a «moleza» habitual (da AR) no desfecho agora anunciado. Enfim, somos uns tristes.

Lula irá duas vezes à AR, em princípio no mesmo dia, numa delas calado e na outra para falar. Isto não se inventa!
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Um país "impressionante"

 


«O ministro das Finanças acha "impressionante" a evolução da dívida pública para 113,8% do PIB (Produto Interno Bruto, ou seja, a riqueza gerada pelo país durante um ano). Talvez tivesse razão para isso, se o país fosse uma folha de Excel.

No entanto, se partirmos do princípio de que o país são as pessoas que nele habitam, parece bem mais "impressionante" constatar que não só a inflação no geral dá poucas tréguas (8,2% em fevereiro), como o preço dos alimentos não transformados disparou 20,1%. Traduzindo, se esta manhã passar pelo mercado e comprar a mesma quantidade de legumes, frutas, peixe e carne que comprou há exatamente um ano, em vez de 100 vai pagar 120 euros. A alternativa é comer menos.

É importante ter em conta, por outro lado, que a redução da dívida pública em percentagem do PIB não quer dizer que o país está a dever menos dinheiro. Significa, isso sim, que o conjunto do país ficou mais rico de um ano para o outro, e que, portanto, mesmo que estejamos a dever agora mais euros do que há um ano, o peso dessa dívida é menor.

Quanto ao facto de o país estar mais rico - na verdade só regressou ao nível de riqueza que tinha antes da pandemia -, que parte do país será essa? Quantos trabalhadores, pensionistas ou desempregados se sentem mais ricos quando vão ao mercado e pagam mais por menos alimentos? Quantos se sentem mais ricos com a acentuada subida do valor da sua prestação ao banco ou com o preço que têm de pagar pela renda de casa?

Dir-se-á, e com razão, que a situação de Portugal não é diferente da do resto da União Europeia. Que também os outros sofrem com o empobrecimento provocado pela inflação e pela subida da taxa de juro. O problema é que os portugueses são bastante mais pobres que o resto dos europeus e não se vislumbra quando deixarão de o ser. Isso, sim, é "impressionante".»

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28.2.23

Lavar roupa?

 


Com uma nova máquina. 1885.

Daqui.
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Memórias

 


Já houve um 28 de Fevereiro em que cheguei a Sydney ao nascer do dia e vi isto. Tenho de reconhecer que esta Ópera é ligeiramente mais bonita do que o Estádio do Benfica que tenho aqui ao lado…
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«Parabéns à prima»

 


Índice referente a produtos alimentares não transformados chegou a 20,1% em Fevereiro.
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28.02.1969 – O sismo de 1969

 


Para mim, foi assim. Eu dava então aulas na FLUL, o meu salário não chegava a dois contos por mês, acrescido de mais um conto e tal por dar também teóricas – uma vergonha, mesmo para a época.

Mas já devia haver «cativações» na era de Marcelo (o Caetano) e, chegados ao fim de Fevereiro de 69, ainda não nos tinha sido pago um tostão do tal acréscimo precioso a que tínhamos direito. Alguém se lembrou então de pedir uma audiência ao ministro da Educação, José Hermano Saraiva, e, audiência concedida, lá fomos recebidos em grupo ao fim da tarde do dia 27. Saímos com a certeza de que o problema seria resolvido (e foi) e resolvemos acabar a tarde e a noite a festejar em casa do irmão de uma das contestatárias.

A conversa durou até altas horas da noite, cheguei a casa a caí num sono à prova de bala – e de tremor de terra. Ou seja: não senti nada, não acordei. E foi assim que falhei a única hipótese de ver os meus vizinhos em cuecas nas ruas de Lisboa.
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Muros à Trump na Europa?

 


«Com uma guerra a decorrer na Europa, os países parecem esquecer que o flagelo da migração ilegal continua a fazer vítimas, como aconteceu este fim de semana em Itália. Uma centena de mortos em mais um naufrágio, incluindo crianças e mulheres. Oito anos após a grande crise migratória de 2015, a União Europeia ainda não encontrou uma forma de enfrentar o problema.

Após anos de negociações frustradas, paralisações e bloqueios, em setembro de 2020 a Comissão Europeia lançou a proposta de um novo pacto sobre migração e asilo que deveria promover um quadro comum de gestão previsível e confiável. Passaram mais de dois anos e o plano não está aprovado e, em vez de avançar para a sua concretização, abriu-se um novo ângulo de confrontação sobre se devem ser construídos muros nas fronteiras externas da Europa e quem deve financiá-los. Ou seja, este é um assunto que equivale a uma perigosa viragem e a um retrocesso na própria ideia de Europa. Aliás, a proposta de vários países do Leste de afetar fundos comunitários à construção de vedações e muros exteriores é a expressão mais recente da crescente fratura entre duas visões antagónicas.

A Europa está dividida entre aqueles que defendem a ideia do continente como uma fortaleza e concebem a imigração como uma ameaça à economia, à identidade ou à cultura e os que veem o fenómeno como típico de um Mundo globalizado que deve ser gerido com pinças, sobretudo com o respeito dos direitos fundamentais e uma forma de enfrentar os problemas derivados do declínio demográfico europeu. Claro está que a ideia de um muro externo intransponível é uma solução mágica e falsa, proposta por aqueles a quem interessa apresentar os estrangeiros como uma ameaça, como os xenófobos e ultranacionalistas. O que acontece é que quando uma rota migratória é selada fisicamente, outra é aberta noutro lugar. Neste momento, já existem mais de dois mil quilómetros de vedações e muros em diferentes pontos da fronteira externa europeia. Mas nada impediu que se registassem mais de 330 mil entradas ilegais na União em 2022, mais 64% do que em 2021 e o valor mais elevado desde 2016. Está à vista que construir muros à Trump não é a solução.»

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27.2.23

Uma bela secretária

 

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27.02.1934 – Baptista Bastos

 


Para além do que foi toda a sua vida, isto ficou-lhe colado à pele:
«Onde é que estava no 25 de Abril?» – perguntava ele aos convidados do programa «Conversas Secretas» na SIC e numa série de 16 entrevistas realizadas para o «Público».

Chegaria hoje aos 89.
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Invisibilidade ou amnésia?

 


«Imensos cidadãos que trabalham são catalogados de "profissionais invisíveis" apesar de serem seres humanos tão concretos quanto os profissionais mais visíveis.

Em tempos de grandes apertos, a sociedade toda consegue vê-los. No auge da pandemia de covid-19, o medo da doença e da morte gerou discursos de valorização de profissões essenciais na engrenagem da organização da nossa vida socioeconómica e sociocultural.

Valorizaram-se muito as profissões médicas e de enfermagem, assistentes operacionais, os professores. Foi enaltecida a sua capacidade para criar e executar respostas qualitativas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e da escola. Não faltou quem dissesse que mereciam muito melhores remunerações. Elogiou-se, com inteira razão, a capacidade criativa e a dedicação dos profissionais da cultura e das artes. Hoje, todos esses profissionais estão em luta contra a amnésia dos governantes. Eles, injustiçados mas não invisíveis, não se submetem ao esquecimento e, com as suas lutas, talvez tirem do estado de letargia parte da sociedade que "só se lembra de Deus quando troveja".

Foram valorizados muitos outros profissionais pela sua importância social e por estarem expostos a penosidades e riscos: os(as) trabalhadores(as) que nos abastecem de produtos alimentares e outros de primeira necessidade; muitos dos que garantem os serviços da limpeza; os estafetas; as cuidadoras e cuidadores; os trabalhadores agrícolas e de várias outras atividades. Todos estes têm em comum executar trabalhos considerados não qualificados, pouco valorizados em termos simbólicos, contratuais e salariais. São, em grande parte, os designados "profissionais invisíveis". A constatação da sua importância não passou do discurso. Continuam submetidos a duras precariedades e desgaste físico e muitos à margem de um vínculo de emprego.

A falta de visibilidade no trabalho gera graves carências materiais e invisibilidade social. Há quem considere que a aceleração na utilização de vários instrumentos da intermediação digital - desde logo com os serviços públicos - permite que quase ninguém fique impedido de exercer os seus direitos. Isso não é verdade, por muito que a digitalização facilite contactos.

As clássicas filas que infelizmente estávamos habituados a ver junto aos serviços de emprego e outros estão agora substituídas por filas virtuais junto de balcões virtuais, para atendimentos igualmente virtuais, logo sem a presença física de alguém que gere proximidade e confiança. As pessoas não obtêm respostas, mas a sociedade não se apercebe. A sua desproteção perpetua-se.

Vai-se formando um pantanal do qual só por milagre se consegue sair. É uma espécie de "habitus de classe", em Portugal fortemente municiado por: uma pobreza estrutural; políticas de baixos salários que têm na imigração um dos seus instrumentos; desigualdades de género e outras; pela manipulação provinciana de conceitos escorregadios que facilitam a exploração. Quantas vezes o conceito "cliente" anula o "cidadão", o "utente", o "beneficiário". O trabalhador é promovido a "colaborador". A procura de "talento" reduz-se, muitas vezes, a contratação por baixa retribuição.

Há que combater estas normalizações de linguagem cheia de enviesamentos e a desumanização do trabalho. É necessário contribuir para a organização dos cidadãos cumulativamente fragilizados, tornados "invisíveis". E fortalecer as instituições de intermediação. Rechacemos a amnésia coletiva.»

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26.2.23

Centros de mesa

 


Centro de mesa Arte Nova em estanho polido, rapariga com folhas de hera,1906.
WMF.

Daqui.
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Imigração

 

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26.02.1973 – A vitória da «Tourada»

 



Foi há 50 anos. Nessa noite, juntaram-se grupos de amigos para assistir à final do Festival da Canção, com muito pouca esperança de que a «Tourada» vencesse, diga-se... Mas venceu e as pequenas fintas vitoriosas valiam muito nessa época de triste memória – e eram raras.
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Professores à espera de Godot

 


«Nada a fazer. Assim começa a peça. Os professores saíram à rua para reivindicar melhores condições de trabalho. Sentem-se indignados, porque Godot não tem respondido aos sucessivos apelos que foram feitos ao longo de uma década.

Os professores saíram à rua para denunciar o que se passa na escola pública, sobrecarregados com horas letivas e não letivas, cansados de carregar a casa às costas, de terra em terra, deixando aqui e acolá um pedaço de alma, resistindo como podem às pressões diárias no exercício da sua função.

Os professores saíram à rua, porque estão revoltados com os cortes salariais a que foram sujeitos durante uma década, com o congelamento das carreiras profissionais, com a aplicação de quotas que limitam a sua progressão no quinto e sétimo escalões.

Os professores saíram à rua, porque consideram o atual sistema de avaliação docente uma tremenda injustiça, já que os penaliza gravemente.

Os professores saíram à rua, porque gostariam de ter mais tempo para preparar as aulas, mas estão obrigados a cumprir múltiplas tarefas administrativas, impostas pela máquina burocrática. As expectativas de alguém poder enveredar pela nobre profissão do ensino são tão baixas que o próprio governo já ponderou a hipótese de requisitar técnicos de outras áreas para suprir a falta de docentes na escola pública.

Perante este cenário, poder-se-ia pensar que Godot sofre de autismo, já que não responde às reclamações e protestos dos professores. Mas isso não é verdade. De vez em quando, Godot decide enviar o Rapaz e, com a sua arte de Aladino, lança umas quantas medidas para verificar se o sistema continua a operar segundo a sua vontade. O professor, como bom serviçal que é, ouve, cala e trabalha arduamente, durante o dia, à noite e até aos fins de semana, se for necessário. Só quem anda lá é que sabe. O calvário tem sido longo, já não há paciência.

No entanto, os professores não desistem. Continuam à espera de Godot. Porém, Godot continua sentado na cadeira do poder onde tudo pode acontecer, mas nada acontece, porque ele não quer resolver efetivamente os problemas da escola pública. Poder-se-ia pensar que os professores estão unicamente preocupados com a recuperação do tempo de serviço para obter melhores remunerações. E mesmo que isso fosse verdade, estavam no seu direito. Mas o problema ultrapassa a questão salarial.

Acima de tudo, os professores estão preocupados com o estado de degradação a que chegou a escola pública: precariedade laboral, envelhecimento da classe docente, excesso de burocracia, aumento de casos de indisciplina na escola, falta de recursos humanos.

Se a escola pública foi criada para garantir a todos os alunos as mesmas condições e oportunidades, independentemente da sua situação económica e familiar, a mesma escola deveria garantir de igual modo a todos os docentes as mesmas condições de trabalho. Não é aceitável que um professor contratado, com vinte anos de serviço, não tenha ainda obtido a vinculação na carreira docente, estando sujeito à mobilidade constante, com uma remuneração salarial que fica aquém do que realmente deveria auferir, suportando despesas pessoais de deslocação e alojamento. Não é admissível que um assistente operacional com trinta anos de serviço continue a receber o ordenado mínimo tal como um candidato à entrada na carreira profissional. Chama-se a isto servidão laboral.

Pozzo estica a corda que está presa ao pescoço de Lucky. De vez em quando aplica o chicote. A noite é escura e imensa. Os professores continuam à espera, mas Godot não vem para resolver os seus problemas. E enquanto ele não vem, o hábito tudo silencia. E é esta contínua espera, fazendo sacrifícios e suportando mortificações, que tem exasperado os professores ao longo dos anos.

O Rapaz sabe o que a casa gasta, mas cumpre piamente a ordem de Godot. Por isso, em jeito de provocação, vai dizendo aos representantes dos professores: "O senhor Godot disse-me para vos dizer que ele não virá esta noite, mas seguramente amanhã." E os professores esperam que amanheça, que se faça luz e acabe de vez a noite escura e imensa. E quando o Rapaz regressa para estabelecer um novo entendimento entre Godot e os professores, o resultado é este: ou é porque a proposta de Godot não é verdadeira e os professores a rejeitam por não se reverem nela; ou é porque o Godot está mais interessado nos dividendos da sua encenação do que propriamente nas preocupações dos professores; ou é porque os professores não acreditam em Godot, porque já se sentiram enganados várias vezes.

E então o que se há de fazer para resolver este problema? O Padre António Vieira afirma o seguinte: se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e exemplo, então o melhor é lançá-lo fora, para que seja pisado por todos. O mesmo é dizer que, se a proposta de Godot for insípida e pobre, o melhor será descartá-la para que seja desprezada pelos professores. E porquê? Porque os professores não são estúpidos, e ainda que sejam por vezes ingénuos, sabem quando a verdade do artifício na mesa de negociações os não convence, quando a proposta não passa de uma receita mal feita, com ingredientes nefastos para a sua saúde profissional.

Mas os professores estão de sobreaviso. Por isso, hoje estão determinados a lutar para ver a luz do sol, não o sol-posto de Godot, mas a Aurora que lhes poderá devolver alguma justiça para voltarem a sentir a mesma alegria que sentiram no início das suas carreiras. É com esse espírito renovado que vão para a rua lutar por uma causa nobre a fim de recuperar alguma dignidade e respeito para o pouco tempo que lhes resta até se reformarem, e já não falta muito.

Os professores estão cansados e velhos. Olham para a árvore esquelética (educação) com apreensão, já que não veem folhas a nascer. Veremos se vamos ter professores suficientes para ensinar os nossos alunos na próxima década. Por este andar, prevejo que Godot terá em mãos um sério problema para resolver. Mas como ele já resolveu outros tantos de maior gravidade no passado, fico descansado. Quem inventou uma geringonça, pode inventar o mundo.

Apetecia-me terminar este desabafo com a tirada “E vivam os professores!”, mas prefiro reeditar o título da obra escrita por Samuel Beckett com uma ligeira alteração – Professores à espera de Godot. Tal como Vladimir e Estragon, também os professores estão à espera de Godot. No fundo, estamos todos no mesmo palco desesperadamente à espera de um milagre, afundados na noite infinita, porque "Ninguém sabe que coisa quer. / Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o que é bem", como dizia o poeta da Mensagem. O mais importante é não perder a esperança. E enquanto os professores não conseguem descalçar esta bota, vão criando a ilusão de fazer qualquer coisa nem que para isso seja necessário ir para a rua e gritar aos céus – Basta! E se Godot não voltar, voltamos amanhã, dizem os professores. E depois de amanhã. Talvez. E assim por diante. Ou seja. Até que ele venha

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