4.3.23

A Igreja portuguesa continua a não saber lidar com os abusos

 


«O relatório final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa foi apresentado há quase três semanas. Os bispos sabiam, há bastante mais tempo do que isso, que o relatório não iria ser lisonjeiro para a Igreja. Não, a excepção portuguesa, pela qual alguns ansiavam, não existe. Não, os abusos de menores não são “um fenómeno fundamentalmente anglo-saxónico”, como chegou a afirmar D. Manuel Linda. São um fenómeno americano, europeu, africano, asiático, absolutamente transversal à Igreja, e potenciado por uma cultura de encobrimento que não só permitiu a continuação dos crimes, como promoveu a sua multiplicação, ao empurrar padres pedófilos de umas paróquias para as outras. Com a cumplicidade de bispos, cardeais e até de papas.

Este é o maior escândalo da Igreja desde a Inquisição. Deve ser assumido enquanto tal. Mas não foi o que aconteceu esta sexta-feira, em Fátima. Aquilo que vimos foi de novo uma Igreja cautelosa, muito possivelmente dividida, incapaz de tomar medidas vigorosas, e, sobretudo, em claríssimo modo de contenção de danos. Passaram três semanas da terrível conferência de imprensa na Gulbenkian sobre os abusos, e a única coisa que os bispos conseguiram acordar de concreto foi a construção de um memorial às vítimas durante a Jornada Mundial da Juventude. Já se sabe: a Igreja é excelente em memoriais, vigílias e orações. Mas não é disso que as vítimas estão à espera. Tudo o resto foram promessas vagas: “acompanhamento espiritual, psicológico e psiquiátrico” (não foi explicado como, nem por quem); “tolerância zero” para com “todos os abusadores”; o envio da lista com o nome dos alegados pedófilos para as dioceses respectivas, para terem “o devido seguimento por parte dos bispos”.

Ao fim de três semanas de reflexão e suposto debate, isto é uma mão cheia de nada – ainda que D. José Ornelas tenha preferido chamar-lhe “uma mão cheia de compromissos”. Olhemos para as suas respostas às três questões mais sensíveis sobre este tema. Indemnizações das vítimas? Nem pensar: o responsável é quem comete o crime, e a Igreja nada tem a ver com isso – como se a cumplicidade no encobrimento fosse irrelevante, ou como se a diocese de Boston não tivesse ido à falência nos Estados Unidos por causa das indemnizações que teve de pagar às vítimas. Afastamento dos padres abusadores? É preciso analisar com cuidado, porque a única coisa que a comissão disponibilizou (ouvimos nós 20 vezes) foi uma lista de nomes, sem quaisquer elementos adicionais, o que vai dificultar a investigação. E quanto à ideia de afastar os bispos que encobriram casos? Silêncio absoluto e pontapé para o pinhal.

D. José Ornelas desculpou-se, claro: “foi uma reunião forçosamente limitada no tempo”; “tivemos a manhã ocupada a reunir com a comissão”; são apenas “linhas de orientação”; há “pontos concretos que têm de ser negociados”. Mas foi curto. Foi muito curto. D. José Ornelas adoptou sempre um modo defensivo; recusou que a Igreja fosse “atracção para pedófilos”; e esforçou-se para alargar o problema da pedofilia à sociedade, uma técnica habitual para evitar que a Igreja fique isolada debaixo dos holofotes.

Mas basta ouvir o Papa Francisco falar sobre o tema – não tem nada a ver com isto. Após a conferência de imprensa, Lisete Fradique, do movimento Nós Somos Igreja, disse na SIC Notícias: “Senti falta de compaixão”. Somos dois. Muito calculismo; muito pouca empatia.»

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