7.9.24

Um vaso azul

 


Vaso «Courges» (Abóboras), 1914.
René Lalique.


Daqui.

07.09.1975 – Quem se lembra dos SUV?

 


Os SUV (Soldados Unidos Vencerão) – uma auto-organização política de militares, clandestina, que se definia com «frente unitária anticapitalista e anti-imperialista» – apresentaram-se «embuçados por razões de segurança» numa conferência de imprensa realizada no Porto e transmitida pelo Rádio Clube Português , em 7 de Setembro de 1975.

Organizaram desfiles em várias cidades, mas julgo que nenhum teve a dimensão do de Lisboa, em 25 de Setembro, com apoio de partidos como o MES, a LCI, a UDP e o PRP. Centenas de soldados fardados, acompanhados por representantes das comissões de trabalhadores e de moradores e por uma verdadeira multidão, subiram do Terreiro do Paço até ao Parque Eduardo VII, onde teve lugar um comício. No fim deste, foram desviadas dezenas de autocarros da Carris, que levaram quem quis até ao presídio da Trafaria, de onde, pelas 2:00 da manhã, foram libertados dois militares que se encontravam detidos, precisamente por terem distribuído panfletos de propaganda da manifestação.

Para se perceber um pouco mais do que estava em causa, vale a pena ler o MANIFESTO com que os SUV se apresentaram, precisamente nesse 7 de Setembro.
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Pode não ter novidade nenhuma e ser muito grave na mesma

 


«O argumento de que alguma coisa não tem novidade não é um argumento, nem político, nem legal, é um argumento jornalístico e, mesmo assim, mau e errado. O objectivo do seu uso é minimizar a relevância de um facto, por já ser conhecido há algum tempo. É nesse argumento que o primeiro-ministro e o seu coro partidário e “comunicacional” se baseiam para considerar irrelevantes as acusações do relatório da Inspecção Geral de Finanças sobre como foi feita a anterior privatização da TAP, nas últimas horas do já póstumo governo Passos Coelho, com o papel destacado para personalidades que, com o actual governo PSD/CDS, saíram do limbo onde estavam.

Declaro desde já, por causa das moscas, que não sou contra uma privatização da TAP, depende de como for feita e em que condições para o interesse público, nem me pronuncio sobre a legalidade ou não do que aconteceu, mas apenas sobre o modus operandi político-comunicacional, porque hoje não há uma coisa sem a outra. Pode haver muita relevância política sem que necessariamente haja matéria criminal, sob pena de cairmos no argumento de Pina Moura sobre a “ética republicana” que dava para lavar tudo. Aliás, vimos de anos e anos de “casos” sem matéria criminal, mas significativa penalização política. Este tem sido o pano de fundo da nossa vida pública, para o bem e para o mal.

Vamos aos argumentos. Primeiro, não é verdade que o retomar deste caso, pelo menos estranho, da anterior privatização da TAP não seja “novidade”. A novidade não tem apenas a ver com a factualidade do processo de privatização de 2015 (e mesmo assim há muitos detalhes que são “novos”), mas com a diferença do actual contexto: o ministro das Infra-Estruturas hoje volta de novo a ser o responsável pela privatização da TAP, que está em curso, e a outra responsável à época foi indicada para comissária europeia. Quem conheça o Parlamento Europeu sabe que, neste último caso, com ou sem “novidade”, vai haver duras perguntas. Acresce que não há maneira de evitar que qualquer eventual comprador diminua o preço oferecido com o argumento de que não se sabe que efeitos legais vão ter as acusações da Inspecção-Geral de Finanças, e a que ponto vão fragilizar os negociadores portugueses.

O contexto é, por isso, novo.

Segundo, haver este relatório, com o que lá está escrito, é também novidade per se, porque introduz um conjunto de acusações que vai para além do debate público à volta de 2015, que também não foi muito esclarecedor. No caso da TAP, haver uma privatização pelo menos estranha que suscita a uma entidade pública, a Inspecção-Geral de Finanças, a suspeita de haver crime deveria dar origem a uma polémica, tanto mais que um novo processo de privatização está em curso. Ora, a polémica tem sido muito incipiente, contrastando com as questões de indemnizações que alimentaram a Comissão de Inquérito e que, objectivamente, não têm, nem de perto nem de longe, a gravidade do caso actual.

Terceiro, por que razão não há a mesma indignação, o mesmo surto de acusações, clamor e escândalos? É por não ser “novidade”? Duvido, embora não diminua o papel amortecedor que a ideia de que "não há novidade” tem no jornalismo excitado dos dias de hoje. Penso, no entanto, que há outra razão que reflecte a politização actual do jornalismo, principalmente à direita - o alvo neste caso são, para muitos profissionais da indignação mediática, "os nossos” e não "os deles”. E "os nossos” não se tratam da mesma maneira que "os deles”. E o que é certo é que não haver o orgasmo matinal habitual da Rádio Observador, amplificado o dia todo pelos comentadores da mesma rádio em tudo o que é canal de televisão, tem um efeito. É eficaz a fazer um “caso” ou não. Neste caso, não.

Quarto, há sempre um efeito de neutralização pelo facto de ambos os partidos, PSD e PS, terem uma história de contradições e cumplicidades nestas matérias, e o valor dos ataques é muito diminuído pela lembrança da culpabilidade própria de cada um. O pingue-pongue de culpas tem um efeito devastador no escrutínio político porque o transforma logo à partida numa espécie de espelho - “fazes hoje o que eu fiz ontem” e não saímos disto. O desgaste reputacional dos dois partidos do poder é um factor no quase grau zero da nossa democracia.»


A obra de Macron

 


Libération, 05.09.2024

6.9.24

Sem dúvida

 


Um Governo à maneira

 


A importância de não vender ilusões

 





Três mil e setenta e nove dólares

 


«Se quisermos ver o futuro, temos de viajar para a Ásia. Afastados de países mais prósperos do Sudeste Asiático como a Tailândia ou Singapura e a Malásia ou a Indonésia, ou a oriente a Coreia do Sul e o Japão, a paisagem entristece.

Três mil setenta e nove dólares. O preço de um rim birmanês, vendido a um chinês. Um transplante feito na Índia. Maung Maung foi obrigado a vender a única mercadoria, o corpo. O rim. Preso e torturado, decerto falsamente acusado, pela Junta militar que tomou o poder a seguir ao golpe de 2021 que pôs fim à fugaz democracia de Myanmar, a família foi obrigada a contrair empréstimos para comer. Quando saiu da prisão e das mãos dos carniceiros, Maung descobriu que a mulher tinha contraído dívidas que não podiam pagar. Perdido o emprego, a sombra da fome encharcava o casal e a filha. Ofereceu-se aos traficantes de rins. Uma rede criminosa de tráfico de órgãos dedica-se a explorar o negócio dos transplantes e candidatos não faltam. A rede organiza a viagem para a Índia e a cirurgia. O Facebook facilita o balanço entre a oferta e a procura. Grupos organizados recebem propostas de birmaneses desesperados.

Apesar da ilicitude, a Meta e Zuckerberg não comentam. Se a França deteve o dono do Telegram por atividades ilícitas dentro da rede, a América talvez devesse prestar atenção ao que acontece dentro do Facebook.

No Afeganistão, sem tecnologia, famílias sitiadas pela indigência vendem os filhos pequenos, para uso e abuso dos pedófilos compradores. Dois mil dólares, por aí. Uma prática que sempre existiu no país dos talibãs, atenuada nos anos da ocupação militar americana. Nas zonas rurais onde não chega a lei e muito menos a compaixão, o hábito de manter escravos infantis, chai boys, como servos sexuais ou de entretenimento, é banal. Rapazinhos bonitos são procurados pelos senhores da guerra e traficantes de ópio, uma boa parte da população masculina, visto que as armas são como a papoila, estão em todo o lado. Na retirada de Cabul, os americanos deixaram para trás toneladas de armamento que os talibãs e contrabandistas açambarcaram.

Tal como Myanmar, o Afeganistão é um país relegado para os fundos da consciência ocidental e da compaixão seletiva. Ignorado pelo jornalismo e pelos historiadores contemporâneos.

Nos dois países, o turismo não é salvação. Myanmar recebe turistas chineses, que são na maioria traficantes ou negociantes de armas e drogas, representantes e operários das tríades, sabendo que a China precisa da Junta para exercer sobre o país a predação total. A China usa Myanmar como uma gigantesca fábrica de fentanil, a droga com a qual tem esperança de contribuir para o declínio da civilização ocidental, sobretudo o declínio da sociedade americana. Não é um insucesso, apesar de os cartéis mexicanos se terem juntado à festa. As substâncias químicas são mais fáceis de apurar em laboratórios ambulantes do que a manipulação das velhas drogas baseadas em plantas. São também mais baratas de traficar e produzir e a clientela não esmorece. Nunca a heroína foi tão barata. Para os camponeses afegãos, nada é tão rentável como o cultivo da papoila, mas os preços baixaram.

Myanmar tem recursos naturais cobiçados pela China. Rubis das minas de Mogok, as pedras com a maior qualidade. O vale de Mogok, lendário desde o império britânico, com um legado tão nefasto e cruel como o legado colonial belga no Congo. Não é preciso ler Orwell para a evidência. O império deixou sequelas e mazelas étnicas que ajudam a perceber o fosso entre os muçulmanos Rohingya e a maioria da população budista.

Para os birmaneses Bamar, budistas extremos, os Rohingya eram uma herança dos ingleses, que os importaram de países como o Bangladesh para a escravatura laboral. Apesar dos grupos étnicos vários do país, Shan, Karen, Chin, Mon, etc., a maioria é budista e reage aos “bengalis”, apesar de os “bengalis” estarem há décadas no país. São, agora, apátridas, relegados para as lamas do Cox’s Bazar no Bangladesh. Outra minoria étnica em esquecimento.

Mogok tem rubis que são traficados pelas tríades chinesas e que acabam nas mãos dos joalheiros que servem uma clientela multimilionária. Tal como os rins, os milionários chineses compram tudo, do corno de rinoceronte ao rubi da Birmânia. Os rubis de Mogok são raros, por causa do golpe e da guerrilha regional das etnias contra a ditadura.

O efeito predador da China não se limita a Myanmar, também no Afeganistão exerce uma influência, juntamente com a regressada Rússia, mas é nos países pobres do Sudeste Asiático que a predação é mais visível. No Camboja, que a ditadura comunista e dinástica transformou em “país amigo”, a China constrói centros comerciais e casinos, em lugares onde os chineses gostam de passar os ócios, como Sihanoukville. A antiga praia paradisíaca é agora um faroeste onde reina o vício. Jogo, prostituição, tráficos vários, mais as vantagens logísticas do porto para as iniciativas tipo Belt and Road. A cidade foi assaltada pelos chineses, e alguns locais organizam uma resistência mafiosa, tentando sobreviver. A vingança e o crime são endémicos.

O Camboja tem outro bem precioso, a água, que as barragens chinesas roubam no Mekong corrente acima, 11 barragens sob controlo chinês, transformando terras que eram pântanos em desertos e gerando a catástrofe ambiental e a deslocação forçada das populações. Belt and Road, claro.

O país é também o poiso de call centers ilegais, onde operários do computador se dedicam a espoliar e enganar os ingénuos que querem enriquecer na net, com esquemas que sugam as poupanças de milhares de chineses online. Neste filme de terror, que Pequim sabe que existe e finge ignorar, os centros são operados por escravos tecnológicos recrutados na China para fictícios empregos e que acabam sem ver a luz do dia num armazém sem janelas de uma zona perdida do Camboja. Imaginem um lobo de Wall Street proletário em linha de montagem. Principescamente subornado, o regime autoriza e assiste à devastação humana e da natureza, à destruição das florestas, ao envenenamento dos rios, à esterilidade das terras, à violação dos direitos e modos de vida locais.

O turismo de massas chinês fez de Angkor Vat um circo, pior do que um parque Disney, onde os casamentos chineses acorrem para a fotografia em frente aos templos. Uma nova lei acaba de autorizar a devassa. É uma visão grotesca, instagramável.

E no Laos, bombardeado pelos americanos sem dó nem piedade durante nove anos, carpet bombed, a predação continua. Ainda intocado, e repleto de minas por explodir, o país tem uma beleza natural que estonteia, tal como a Birmânia. A beleza que a destituição e a solidão pouparam ao “progresso”. O Laos é o grande exportador de eletricidade para os países vizinhos, as chuvadas tropicais garantem as cheias do Mekong e das dezenas de afluentes e rios do país. A China quer agora construir acima de Luang Prabang, a cidade sagrada, uma barragem que a destruirá. A UNESCO ameaça retirá-la da lista do património mundial. Se a ameaça e a barragem vingarem, Luang Prabang e as gentes que ali vivem estarão condenadas à morte.

Em todos estes países as Nações Unidas têm uma presença que se caracteriza pela insignificância. A China corrompe a elite tóxica dos partidos comunistas que capturam a liberdade, as populações e os recursos. O Vietname é o país que mais resiste à predação chinesa, tanto da China como de Taiwan, note-se, e que ostenta a maior inteligência política no modo como lida com as potências.

O Mekong é um dos rios mais poluídos do mundo, e as águas da monção arrastam plásticos e detritos da civilização ocidental. Um mar de lixo. As multinacionais da alimentação e da junk food abriram loja para venderem os produtos com aditivos, viciando as crianças em doces e mistelas químicas destinadas a mudar os hábitos alimentares saudáveis de uma população. Crescem a obesidade e a diabetes.

O capitalismo global só mostra a verdadeira face nestes lugares onde não chega a consciência democrática libertadora que serve de desculpa para os desvios.

Escrevo isto depois de mais de um mês na região. Predação, destruição, poluição e exploração servidas pela ganância são a regra nos pobres. A regra do famoso “desenvolvimento”.»


5.9.24

Dantes é que era bom

 

1950

O Artigo 8º da «Postura» da Câmara Municipal de Lisboa é magnífico: 

«Quando não haja monta-cargas adequado ao transporte simultâneo de volumes e pessoas, será facultado o uso do ascensor aos serviçais que se dirijam a qualquer pavimento acima do segundo e desde que se apresentem decentemente vestidos e não transportem volumes que, pelas suas dimensões, peso e natureza, possam danificar a cabine ou impregná-la de cheiros incomodativos.»
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05.09.1972 - O massacre de Munique

 


Há 52 anos, o comando palestiniano «Setembro Negro» tomou como reféns onze membros da delegação israelita aos Jogos Olímpicos que tinham então lugar em Munique. Morreram logo dois desses reféns, mas, depois de uma intervenção de resgate falhada, levada a cabo pelas forças de segurança alemãs, acabaram por morrer mais nove atletas, cinco dos sequestradores, um polícia alemão e um piloto.



Se este foi, de longe, o mais dramáticos dos acontecimentos em Olimpíadas, não foi o único que ficou marcado por interferências políticas ou por protestos:

1896, Atenas (primeiros Jogos Olímpicos da era moderna) – Boicote da Turquia.

1936, Berlim – Os Jogos Olímpicos do nazismo.

1948, Londres – Japão e Alemanha (os dois grandes vencidos da Segunda Guerra Mundial) nem sequer são convidados.

1956, Melbourne – Boicote de Espanha, Holanda e Suíça contra a intervenção soviética em Budapeste e de Líbano e Iraque contra a posição da Austrália sobre o Médio Oriente. A China abandona os Jogos como forma de protesto contra a presença da bandeira de Taiwan.

1968, México – Power Salute

1976, Montréal – Boicote de vários países africanos como protesto contra a presença da Nova Zelândia, por esta ter disputado um desafio de rugby com a África do Sul, alguns meses antes (quando estava impedida de o fazer devido ao apartheid).

1980, Moscovo – Boicote dos Estado Unidos (seguido por 60 países) como protesto contra a intervenção soviética no Afeganistão.

1984, Los Angeles – Países do bloco soviético (excepto Roménia) e Cuba retribuem o boicote de 1980.

1988, Seul – Boicote de Coreia do Norte, Cuba, Etiópia e Nicarágua.

1992, Barcelona – Devido à guerra com a Croácia e a Bósnia-Herzegovina, a Jugoslávia não é autorizada a participar como país, mas os seus cidadãos são admitidos título individual.

(Podem faltar mais casos, evidentemente.) 
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Douce France

 


A esquerda NFP ganhou as eleições com um maior número de deputados? Sim, mas Macron acaba de nomear Michel Barnier, de direita, dos Republicanos que ficaram em quarto lugar nas eleições legislativas… Este não terá uma tarefa fácil na formação de um governo, com a oposição de toda a esquerda e não só.



Ainda a macabra “photo opportunity”

 


«É natural que o Estado se faça representar nos momentos difíceis do país através daqueles que elegemos. A presença do primeiro-ministro no centro de comando das operações faz todo o sentido e ainda mais a presença no funeral das vítimas. Criticou-se, aliás, a ausência de Miguel Albuquerque quando o fogo devorava a Madeira. Andar de bote no meio das buscas é absurdo.

A escolha do tempo e do modo em que os representantes políticos se fazem notar depende de bom-senso e respeito pelos cidadãos. O tempo e o modo que Luís Montenegro escolheu, na última sexta-feira, nas águas do rio Douro, não são apenas desastrados. Revelam o clima de pré-campanha que, desde o dia em que este governo tomou posse, se vive em São Bento.

As forças de busca e salvamento estavam a fazer o seu trabalho e todos os meios disponíveis eram necessários. A presença do primeiro-ministro no local, absolutamente desnecessária, só poderia acontecer na condição de não perturbar os trabalhos.

Não ia, no bote onde seguia o primeiro-ministro, qualquer jornalista. Nem sequer um assessor. Apenas um segurança. Como é evidente pelas imagens, foi ele que tirou a foto que mais tarde foi distribuída à comunicação social. Pelas imagens, percebe-se que é impossível Luís Montenegro não se ter apercebido que estava a ser fotografado. Pela função do “fotógrafo”, é impossível que lhe tivesse tirado uma fotografia sem que tal lhe fosse solicitado. Um agente de elite da PSP foi levado a extrapolar as suas funções, que não são de assessoria de imprensa.

A única razão para Luís Montenegro ter resolvido andar pelas águas do Douro foram esclarecidas pelo próprio, ao fazer-se fotografar no momento e mandar divulgar a fotografia. Na política há encenação e as oportunidades fotográficas fazem parte da comunicação. Os limites são os do bom gosto, da decência e do respeito pelo sofrimento dos outros. E, já agora, da neutralidade das forças de segurança, que não devem ser usadas para fins políticos.

Montenegro ultrapassou largamente todos esses limites. O episódio, já com uma semana (outros assuntos se interpuseram), só tem valor porque diz mais do que o próprio episódio. Revela o estado de espírito que domina a cúpula deste governo e o próprio PSD. Luís Montenegro ainda se vê como candidato a primeiro-ministro, não como líder de um governo em funções. Tudo é campanha. Essa é a parte que, terminado o estado de graça imposto pela comunicação social, iremos perceber crescentemente: por baixo da fina camada de verniz feita da gravitas do poder recente e do silencio autoimposto, Montenegro não é maior do que sempre foi.»


4.9.24

Muito frequente

 


Avé, Marcelo

 





Organizem-se

 


Uns consideram-nos idosos aos 45, outros jovens aos 35. Tarefa pesada para os 36-44, aparentemente os únicos verdadeiramente «adultos».

04.09.1970 - A vitória de Allende

 


Há 54 anos, Salvador Allende ganhou as eleições presidenciais no Chile.

Excertos do discurso  de vitória:



Texto na íntegra AQUI.


Eduardo Galeano em Los Hijos de los días:


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Pinto Luz regressa ao lugar do esquema

 


«Passos Coelho ainda era primeiro-ministro, mas o programa do seu governo tinha sido chumbado há dois dias. Era Costa que se seguia e Passos sabia que o novo governo não só era contra a privatização da TAP, como tinha dito que a reverteria (coisa que, na realidade, não fez nesses primeiros anos). Ainda assim, próximo da meia-noite e de porta fechada, em nome do governo já sem legitimidade política, o então secretário de Estado das Infraestruturas, Miguel Pinto Luz, e a então secretária de Estado do Tesouro, Isabel Castelo Branco, encontraram-se com David Neeleman e Humberto Pedrosa para vender a companhia aérea nacional à 25ª hora, quando o governo lhes fugia das mãos. O modo chegaria para suspeitar que qualquer coisa se estaria a passar. Anos depois, já com o PS no governo, ficámos a saber o que foi.

Muito antes, a TAP pública tinha encomendado doze dos novos A350 à Airbus. Tendo sido das primeiras companhias a fazer a encomenda, teve direito a um preço preferencial. E é aqui que entra o esquema. Para comprar a TAP, Neelman tinha de injetar dinheiro na empresa, já que as regras europeias não permitem que o Estado o faça. E encontrou uma forma de o fazer sem o fazer: usar o valor daquela encomenda a preço abaixo do mercado, num momento em que a procura era bem maior do que a oferta. Para a Airbus, a desistência seria excelente, porque os poderia vender a preço de mercado. Sem ter uma única ação da TAP, Neeleman fez um acordo com a Airbus em que se comprometia a comprar 53 A320, A321 e A330 de última geração, todos com menor alcance do que os A350. Uma compra feita 254 milhões de dólares acima do preço de mercado. E comprometia-se a cancelar a compra dos doze A350. Em troca, a Airbus emprestava a Neeleman 226 milhões, o mesmo valor da multa por cancelamento da compra então acordada. Se esta compra fosse cancelada, a TAP pagaria uma multa do mesmo valor.

Quase todos ficavam a ganhar. A Airbus lucrava 190 milhões por não vender os doze A350 com desconto e garantia a venda de 53 aviões acima do preço de mercado. Neeleman comprava a TAP quase de borla (os dez milhões que custou), não usando um cêntimo para a capitalizar – quando, mais tarde, foi preciso dinheiro, quis pedi-lo ao Estado. E a TAP perdia uma compra a abaixo do preço mercado, dos aviões de longo alcance que precisava, e ficava com aviões acima do preço de mercado, que não precisava. O rombo para a transportadora aérea terá sido de 444 milhões, segundo as contas que foram feitas há uns anos.

O esquema, mesmo que fosse legal, seria ilegítimo e ruinoso para a TAP. E explica a porque é que a secretária de Estado de Maria Luís Albuquerque e Miguel Pinto Luz se prestaram a assinar uma privatização a meia da noite quando eram, na realidade, governantes demissionários. Qual era a pressa? O negócio de capitalizar o cão com o pelo do cão já estava feito.

O relatório da Inspeção Geral de Finanças (IGF), conhecido agora, confirma o que se sabia e confirma que a Parpública e o governo sabiam deste esquema. O custo para a empresa foi incomensuravelmente mais alto do que qualquer indeminização, que fez um ministro cair. É, aliás, interessante perceber como uma indeminização a uma administradora da TAP fez cair um secretário de Estado, primeiro, e um ministro depois, e as ruinosas condições para a privatização da ANA – denunciadas pelo Tribunal de Contas – e o esquema para a TAP pagar a sua própria compra não beliscam os seus protagonistas: uma vai para comissária europeia, outro volta o ministério para tratar... da reprivatização da TAP.

Privatizações há muitas

A minha posição sobre a privatização da TAP é a mesma há muito tempo. A TAP tem de entrar num grupo internacional para ser competitiva. O pior candidato, por ser incompatível com os interesses nacionais, parece ser o grupo da Ibéria – com um hub subaproveitado e o Humberto Delgado a rebentar pelas costuras nas mãos da incúria da ANA, Barajas poderia começar a canibalizar Lisboa. Os outros dois, dependem das condições.

Para isso acontecer e para ser possível haver reforços de capital, que a vontade de concentração leva a que Bruxelas impeça que os Estados façam, a TAP não deve privatizar a maioria do seu capital. Se o fizer, mais vale privatizar tudo. Se é para o Estado não mandar, que não fique com os problemas políticos de uma gestão privada. Não deve privatizar a maioria da empresa pela mesma razão que não a deixou falir, depois da pandemia: porque é uma empresa estratégica para o País. Sem TAP, não há hub em Portugal, sem hub em Portugal o país perde centralidade económica. Sem o Estado controlar a TAP, nenhuma garantia escrita em qualquer contrato garante o hub. Ele depende da gestão operacional de rotas.

O interesse da Lufthansa em comprar 20% da empresa confirma o que sempre se disse e sempre se ignorou: não era condição de entrada num grupo de aviação o controlo privado total ou maioritário da TAP. O interesse dos privados na TAP tem a ver com luta pelas rotas da Europa para o Brasil (de que a TAP tem a maior fatia) e ligações aos EUA. Cada um quer entrar para impedir que o outro ganhe esse domínio. Para impedir que a Ibéria reforce o seu domínio nas ligações à América do Sul, por exemplo. A posição de Pedro Nuno Santos estava certa, a de Fernando Medina errada. O Estado português tem interesse em integrar um grande grupo e ter uma participação privada, na condição de continuar a dominar uma empresa estratégica para a existência do hub e para a nossa economia. Há coisas que deveríamos ter aprendido com a privatização da ANA, aliás.

Tudo isto está sujeito a debate. Uma coisa não está: quem privatizou a TAP à 25ª hora para proteger um negócio ruinoso em que um privado capitalizava a TAP com o dinheiro da TAP não tem credibilidade para voltar a dirigir o mesmo processo. Poderá dizer-se que isto nasceu cabeça de Sérgio Monteiro, antecessor de Pinto Luz. Mas foi Pinto Luz que, sabendo necessariamente do negócio, pôs a sua demissionária assinatura neste esquema.»


3.9.24

Galeano, ainda

 


E quanto à TAP

 



03.09.1940 – Eduardo Galeano

 


Um grande uruguaio que nasceu em Montevidéu e que nos deixou em 2015. Quis ser jogador de futebol, mas acabou escritor com mais de quarenta livros publicados. Andou a fugir de ditaduras, em 1973 foi preso depois do golpe militar no seu país e exilou-se na Argentina. Com outro golpe militar  o de Jorge Videla em 1976 , viu o nome colocado na lista dos «esquadrões da morte», partiu para Espanha e só nove anos mais tarde regressou à cidade que o viu nascer.

Ia assim o mundo em 3 de Setembro de 1940, descrito por Galeano nesta página de Os filhos dos dias, publicado em 2012:



Dois vídeos:




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Muito menos do que humanas

 

Ebrahim Noroozi/AP

«Horia Mosadiq, jornalista e ativista afegã, desfia memórias que hoje parecem devaneios impossíveis. “Em miúda, lembro-me da minha mãe a vestir minissaias e a levar-nos ao cinema.” Esse tempo e as imagens de um Afeganistão que não foi sempre sombrio são o mais óbvio desmentido dos argumentos do regime talibã, que não apenas impôs um total apagamento das mulheres nas mais recentes leis de vício e virtude, como tentou criticar as reações externas.

Zabihullah Mujahid, o principal porta-voz do governo talibã, diz haver “arrogância” e desconhecimento da lei islâmica. Além de não haver direito à “compreensão” da comunidade internacional perante graves atentados a direitos humanos, o que está a ser aplicado não encontra respaldo no islamismo, como o comprova a história do próprio Afeganistão e de outros países islâmicos. Assiste-se a uma supressão total de 14 milhões de mulheres e meninas e a uma afirmação de ódio pela figura feminina.

Nos três anos desde que tomou o poder, o regime já tinha excluído as mulheres de quase toda a vida pública, impedindo a frequência do ensino médio, o emprego remunerado ou o simples ato de ir a um salão de beleza. Estava-lhes igualmente vedado o acesso ao sistema de justiça e foi assumida uma aplicação discricionária de punições, incluindo a normalização do apedrejamento. Agora até a voz é proibida, mesmo em circunstâncias em que seja audível a partir do interior de uma casa.

A reação da comunidade internacional é demasiado tímida, quase limitada à posição das Nações Unidas e aos alertas das associações de defesa dos direitos humanos. O que se passa no Afeganistão é demasiado monstruoso e não é um problema de mulheres. É um ataque a todos os seres humanos. Uma negação do direito a existir. Uma obsessiva intervenção para tornar menos do que humana metade da população do Afeganistão.»


2.9.24

Faltam aqui algumas

 


Montenegro, as tragédias e as águas turvas

 



02.09.1939 - Neruda e a chegada de exilados da Guerra Civil Espanhola ao Chile

 


Na noite de 2 de Setembro de 1939, o Winnipeg chegou a Valparaíso, no Chile, com 2.365 espanhóis, exilados da Guerra Civil Espanhola e que se encontravam refugiados em campos, em França.

Quando desembarcaram, no dia seguinte, nem queriam acreditar no que viam, nem percebiam bem onde estavam: o Chile era uma terra longínqua e estavam a ser recebidos como heróis...

Se Pablo Neruda não foi o único promotor desta iniciativa, foi certamente o principal. No dia 4 de Agosto, quando o barco saíra do porto francês de Trompeloup, tinha escrito o que viria a relatar mais tarde nas suas Memórias: «Que la crítica borre toda mi poesía, si le parece. Pero este poema, que hoy recuerdo, no podrá borrarlo nadie.» Em Memorial de Isla Negra, incluiu o seguinte poema:

Yo los puse en mi barco.
Era de día y Francia
 su vestido de lujo
de cada día tuvo aquella vez,
fue
la misma claridad de vino y aire
su ropaje de diosa forestal.
Mi navío esperaba
con su remoto nombre “Winnipeg”
Pero mis españoles no venían
de Versalles,
del baile plateado,
de las viejas alfombras de amaranto,
de las copas que trinan
con el vino,
no, de allí no venían,
no, de allí no venían.
De más lejos,
de campos de prisiones,
de las arenas negras
del Sahara,
de ásperos escondrijos
donde yacieron
hambrientos y desnudos,
allí a mi barco claro,
al navío en el mar, a la esperanza
acudieron llamados uno a uno
por mí, desde sus cárceles,
desde las fortalezas
de Francia tambaleante
por mi boca llamados
acudieron,
Saavedra, dije, y vino el albañil,
Zúñiga, dije, y allí estaba,
Roces, llamé, y llegó con severa sonrisa,
grité, Alberti! y con manos de cuarzo
acudió la poesía.

Labriegos, carpinteros,
pescadores,
torneros, maquinistas,
alfareros, curtidores:
se iba poblando el barco
que partía a mi patria. Yo sentía en los dedos
las semillas
de España
que rescaté yo mismo y esparcí
sobre el mar, dirigidas
a la paz
de las praderas.
 .
(Mais descrições aqui e aqui.) .
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Montenegro prefere eleições

 

Nuno Veiga

«”O PS tem uma responsabilidade acrescida por ser responsável pelo caos nacional”. Foi desta forma bizarra que o líder parlamentar do PSD convidou os socialistas para o diálogo. É assim há meses: os convites para a negociação são acompanhados pela agressividade típica das campanhas eleitorais, quando os consensos são naturalmente impossíveis. Com o guião revelado logo depois das eleições, só é enganado quem quer: ou o PS se anula, ou vai-se a votos de novo.

O governo avançou com um programa fiscal radical e iníquo que atenta contra a progressividade do nosso sistema e concentra benefícios numa minoria de jovens privilegiados. Minou boas reformas em curso, afastando os quadros que as lideravam. Resumiu a governação à comunicação, apresentando sucessivos e vagos pacotes. Depois de ter lançado um falso alarme sobre a saúde das contas públicas, começou a distribuir dinheiro centrada em setores com mais peso eleitoral, sem que a isso corresponda a um programa político coerente ou uma planificação da despesa (acompanhada por perda de receita) que não se baseie no milagre económico da descida do IRC.

O peso orçamental e a centralidade que o governo dá ao IRS Jovem e IRC para justificar a recuperação da economia que cobrirá a perda de receita e o aumento da despesa obriga a que quem viabilize essas duas medidas viabilize o OE. O PS não pode aceitar ser mero ser retificador de decisões do PSD, Chega e IL. Se o PSD quer o voto do PS, não tem espaço para este caminho. Se tem espaço para este caminho com o voto do Chega e da IL, a eles deve pedir o voto para viabilizar o Orçamento de Estado.

Nada indicia um interesse em negociar ou uma perspetiva de governar a longo prazo. Apenas um cerco ao PS para o responsabilizar por novas eleições e a criação de boas condições para ir a votos. Por isso, a pressão sobre o PS, nestas circunstâncias, só pode ter um de dois objetivos: tirar poder negocial aos socialistas, obrigando-os a aceitar quase integralmente o programa da direita, ou criar o ambiente para o responsabilizar pela crise política. No caso de viabilizar um Orçamento nos seus antípodas, Pedro Nuno Santos transformar-se-ia num novo António José Seguro. No caso de chumbar o Orçamento, os riscos seriam enormes.

Se as pessoas responsabilizassem o PS pela crise e este perdesse as eleições, o PSD reforçaria a sua posição e até poderia conquistar uma maioria com o seu pequeno clone, a IL. E Pedro Nuno Santos seria afastado. Se os eleitores responsabilizassem a AD e o PS vencesse, a sua situação, com uma maioria de direita, seria ainda mais insustentável do que a de Montenegro. Pedro Nuno Santos sabe que o PS precisa de uma cura de oposição para vencer o cansaço dos eleitores, recuperar voto jovem e afirmar a nova liderança. Mas não pode aceitar que esse cálculo torne o PS numa inutilidade política.

A AD sabe que, desde que consiga responsabilizar o PS pela crise, a probabilidade de vencer e se reforçar é alta. Por isso, quanto mais se percepcionar, com uma campanha prévia nesse sentido, que a responsabilidade de um chumbo ou de uma aprovação do Orçamento é do PS, e não do governo, mais o PSD procurará essa crise porque mais essa crise lhe será favorável. A pressão sobre o PS não vem, portanto, de quem busca a estabilidade, mas de quem procura o cenário mais favorável para a direita ir já a votos, com medidas populares frescas e sem ter de lidar com as suas consequências. Repetir 1987, como nos foi explicado vezes sem conta. Quem quer estabilidade pressiona o único partido que ganharia alguma coisa com eleições e tem, por isso, menos interesse a negociar: o PSD.

O governo fala dos deveres de quem se limitou a não aprovar a moção de rejeição ao seu programa (diferente de aprovar um programa), mas nunca assume a responsabilidade de quem aceitou ser indigitado sem ter maioria: a de trabalhar para as condições para governar. A forma como o governo se recusa a dar informação ao PS sobre a receita prevista, exigindo que este assine por baixo a fezada do efeito milagroso da descida do IRC, não é de quem procura um ambiente favorável à negociação. Mesmo no arranque das supostas negociações, o discurso de Montenegro, colado a um vergonhoso oportunismo nas águas do Douro (talvez dedique outro texto a este momento triste), foi de pré-campanha.

A culpa é do Presidente da República Deveria ter sido ele a exigir negociações prévias à indigitação. Marcelo, como Montenegro, apostou na chantagem sobre o PS. E o PS pôs-se a jeito, caindo na armadilha de uma inusitada negociação prévia do OE, que normalmente se faz depois da sua apresentação. Como se vê, não passa de uma armadilha.

Com tudo a seu favor, a começar pelo ambiente mediático, a AD parte para esta suposta negociação impondo condições que são, elas próprias, a negação de uma negociação. Não dá informação que permita fazer propostas e construir consensos. Não aceita que ela belisque os elementos essenciais do seu programa, que obteve 29% dos votos. E exige que a oposição se abstenha de propor alterações de monta na especialidade. Quer uma oposição mais neutralizada do que se houvesse uma maioria absoluta. A ideia de que o PS negoceia previamente um orçamento que está bloqueado a mudanças estruturais e está impedido de fazer alterações na especialidade que incomodem o governo é a evidência de que nada está, realmente, a ser negociado. Está a ser preparada uma humilhação política ou a responsabilização do PS por uma crise.»


1.9.24

01.09.1939 - A invasão da Polónia

 


Na manhã de 1 de Setembro de 1939, a Alemanha invadiu a Polónia e, dois dias depois, a Grã-Bretanha e a França declararam guerra à Alemanha.

Três vídeos muito úteis para aprender ou relembrar:






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Barbara em Setembro

 



O turismo como técnica de monocultivo

 


«“Mudam-se os tempos, mudam-se as cidades. E agora a Baixa está em baixo. Vem perdendo o seu brilho. Vão-se-lhe os dedos e ficam só os anéis: belos monumentos à míngua de olhos que os mirem, estátuas tristes dando o flanco desprotegido aos graffitti e às pombas, testemunhando o esvaziamento populacional, a ausência do torvelinho que fazia das Baixas lugares densos, habitados, envolventes. Enfim, a Baixa está cabisbaixa. (…) E os lugares antes densos da Baixa são agora, a partir do fim do dia, terras-de-ninguém, espaços ocos, entregues ao escoar lento da cidade noturna, despovoada e à mercê de intrusos e inquietações.”

De que cidade está ele a falar?, pergunta quem só conhece o Porto de há uma dúzia de anos para cá. As linhas anteriores pertencem a uma crónica que escrevi neste mesmo jornal em 2003. Intitulei-a “a cabisbaixa”, condensando numa palavra o cenário que então se vivia no centro do Porto. A intensa terciarização dos anos 1980 e 90 tinha tido como consequência o esvaziamento da Baixa.

A terciarização é um processo que ocorre nas cidades globais desde finais dos anos 1970, caracterizado pela perda de peso do setor industrial em favor do setor dos serviços. As cidades passam a ser centros da economia especulativa do solo e do investimento financeiro. Uma das consequências que mais atingem os habitantes é a da pressão do custo da habitação. De novo a crónica de 2003: “A excessiva terciarização é antagónica da função residencial, arrastando o esvaziamento dos espaços públicos a partir do fim da tarde e a degradação do parque habitacional que vai ficando semidevoluto.”

Que se passou daí para cá? Depois da terciarização, veio a turistificação. O turismo trouxe consigo muitas coisas boas. Mas à medida que se transformou em turismo de massas os inconvenientes começaram a surgir. António Alves Ferreira sintetiza-os magistralmente em “O turismo como insulto meritocrático”, capítulo do livro Protejam as Crianças da Meritocracia: uma questão de sobrevivência da humanidade, que acaba de ser publicado pela U. Porto Press.

O antropólogo catalão Miquel Fernández González, em Matar al Chino, analisa as consequências negativas da turistificação no Bairro Chino de Barcelona. O que diz assenta como luva no que está a passar-se no Porto ou em Lisboa e pode resumir-se assim: as cidades globais, para serem competitivas, têm de oferecer aos investidores mundiais as melhores condições para que os fluxos de capital produzam lucros substantivos. Esta competição impulsiona um segundo processo, que envolve as cidades numa corrida sem fim para construírem um espaço ideal, repleto de atrações, o que as torna parecidas a um parque temático. Para isso, utilizam a cultura como vantagem competitiva, apropriando-se de espaços de maneira física e simbólica (pensemos nos centros históricos, ou em locais-romaria como a livraria Lello ou o Majestic).

Com a tematização — alguns chamam-lhe também disneylandização, outros artistização — oculta-se o facto de que estas transformações respondem a poderosos interesses económicos privados, com a intenção de transformar em espaços de consumo os lugares de residência, participação e encontro. O resultado são quarteirões desabitados, cheios de restaurantes, bares, hotéis e lojas de luxo. Terreno propício a uma especulação imobiliária que exige preços exorbitantes para habitar e promove assédio urbanístico sobre os residentes economicamente mais frágeis. O risco, diz-nos Miquel Fernández González, é o da submissão da vida urbana a uma simplicidade representacional inspirada em lugares-comuns que apostam no turismo como técnica de monocultivo.»


Ei-lo