4.9.24

Pinto Luz regressa ao lugar do esquema

 


«Passos Coelho ainda era primeiro-ministro, mas o programa do seu governo tinha sido chumbado há dois dias. Era Costa que se seguia e Passos sabia que o novo governo não só era contra a privatização da TAP, como tinha dito que a reverteria (coisa que, na realidade, não fez nesses primeiros anos). Ainda assim, próximo da meia-noite e de porta fechada, em nome do governo já sem legitimidade política, o então secretário de Estado das Infraestruturas, Miguel Pinto Luz, e a então secretária de Estado do Tesouro, Isabel Castelo Branco, encontraram-se com David Neeleman e Humberto Pedrosa para vender a companhia aérea nacional à 25ª hora, quando o governo lhes fugia das mãos. O modo chegaria para suspeitar que qualquer coisa se estaria a passar. Anos depois, já com o PS no governo, ficámos a saber o que foi.

Muito antes, a TAP pública tinha encomendado doze dos novos A350 à Airbus. Tendo sido das primeiras companhias a fazer a encomenda, teve direito a um preço preferencial. E é aqui que entra o esquema. Para comprar a TAP, Neelman tinha de injetar dinheiro na empresa, já que as regras europeias não permitem que o Estado o faça. E encontrou uma forma de o fazer sem o fazer: usar o valor daquela encomenda a preço abaixo do mercado, num momento em que a procura era bem maior do que a oferta. Para a Airbus, a desistência seria excelente, porque os poderia vender a preço de mercado. Sem ter uma única ação da TAP, Neeleman fez um acordo com a Airbus em que se comprometia a comprar 53 A320, A321 e A330 de última geração, todos com menor alcance do que os A350. Uma compra feita 254 milhões de dólares acima do preço de mercado. E comprometia-se a cancelar a compra dos doze A350. Em troca, a Airbus emprestava a Neeleman 226 milhões, o mesmo valor da multa por cancelamento da compra então acordada. Se esta compra fosse cancelada, a TAP pagaria uma multa do mesmo valor.

Quase todos ficavam a ganhar. A Airbus lucrava 190 milhões por não vender os doze A350 com desconto e garantia a venda de 53 aviões acima do preço de mercado. Neeleman comprava a TAP quase de borla (os dez milhões que custou), não usando um cêntimo para a capitalizar – quando, mais tarde, foi preciso dinheiro, quis pedi-lo ao Estado. E a TAP perdia uma compra a abaixo do preço mercado, dos aviões de longo alcance que precisava, e ficava com aviões acima do preço de mercado, que não precisava. O rombo para a transportadora aérea terá sido de 444 milhões, segundo as contas que foram feitas há uns anos.

O esquema, mesmo que fosse legal, seria ilegítimo e ruinoso para a TAP. E explica a porque é que a secretária de Estado de Maria Luís Albuquerque e Miguel Pinto Luz se prestaram a assinar uma privatização a meia da noite quando eram, na realidade, governantes demissionários. Qual era a pressa? O negócio de capitalizar o cão com o pelo do cão já estava feito.

O relatório da Inspeção Geral de Finanças (IGF), conhecido agora, confirma o que se sabia e confirma que a Parpública e o governo sabiam deste esquema. O custo para a empresa foi incomensuravelmente mais alto do que qualquer indeminização, que fez um ministro cair. É, aliás, interessante perceber como uma indeminização a uma administradora da TAP fez cair um secretário de Estado, primeiro, e um ministro depois, e as ruinosas condições para a privatização da ANA – denunciadas pelo Tribunal de Contas – e o esquema para a TAP pagar a sua própria compra não beliscam os seus protagonistas: uma vai para comissária europeia, outro volta o ministério para tratar... da reprivatização da TAP.

Privatizações há muitas

A minha posição sobre a privatização da TAP é a mesma há muito tempo. A TAP tem de entrar num grupo internacional para ser competitiva. O pior candidato, por ser incompatível com os interesses nacionais, parece ser o grupo da Ibéria – com um hub subaproveitado e o Humberto Delgado a rebentar pelas costuras nas mãos da incúria da ANA, Barajas poderia começar a canibalizar Lisboa. Os outros dois, dependem das condições.

Para isso acontecer e para ser possível haver reforços de capital, que a vontade de concentração leva a que Bruxelas impeça que os Estados façam, a TAP não deve privatizar a maioria do seu capital. Se o fizer, mais vale privatizar tudo. Se é para o Estado não mandar, que não fique com os problemas políticos de uma gestão privada. Não deve privatizar a maioria da empresa pela mesma razão que não a deixou falir, depois da pandemia: porque é uma empresa estratégica para o País. Sem TAP, não há hub em Portugal, sem hub em Portugal o país perde centralidade económica. Sem o Estado controlar a TAP, nenhuma garantia escrita em qualquer contrato garante o hub. Ele depende da gestão operacional de rotas.

O interesse da Lufthansa em comprar 20% da empresa confirma o que sempre se disse e sempre se ignorou: não era condição de entrada num grupo de aviação o controlo privado total ou maioritário da TAP. O interesse dos privados na TAP tem a ver com luta pelas rotas da Europa para o Brasil (de que a TAP tem a maior fatia) e ligações aos EUA. Cada um quer entrar para impedir que o outro ganhe esse domínio. Para impedir que a Ibéria reforce o seu domínio nas ligações à América do Sul, por exemplo. A posição de Pedro Nuno Santos estava certa, a de Fernando Medina errada. O Estado português tem interesse em integrar um grande grupo e ter uma participação privada, na condição de continuar a dominar uma empresa estratégica para a existência do hub e para a nossa economia. Há coisas que deveríamos ter aprendido com a privatização da ANA, aliás.

Tudo isto está sujeito a debate. Uma coisa não está: quem privatizou a TAP à 25ª hora para proteger um negócio ruinoso em que um privado capitalizava a TAP com o dinheiro da TAP não tem credibilidade para voltar a dirigir o mesmo processo. Poderá dizer-se que isto nasceu cabeça de Sérgio Monteiro, antecessor de Pinto Luz. Mas foi Pinto Luz que, sabendo necessariamente do negócio, pôs a sua demissionária assinatura neste esquema.»


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