No Público
de hoje, um longo texto de Kathleen Gomes, que merece ser lido na íntegra. Alguns excertos:
«É melhor pensar duas vezes antes de sair para a rua de vermelho no Brasil. Os testemunhos nas redes sociais tornaram-se rotina: no metro, na avenida, no supermercado há pessoas a serem hostilizadas por estarem vestidas com roupa dessa cor.
Se usar vermelho se tornou tão reactivo como numa praça de touros é porque é a cor do partido do governo, o PT (Partido dos Trabalhadores) e, claro, a prova mais empírica da ameaça comunista no Brasil.
Há três semanas, um menino de nove anos foi intimidado na escola por usar uma T-shirt vermelha.
“Não é a primeira vez que o Brasil passa por uma crise dessas. Nem acho que é o fim da História. Mas se alguém disser que sabe o que está a acontecer, mente”, diz a historiadora Lilia Schwarcz, co-autora do livro Brasil: Uma Biografia.
O que está a acontecer remonta às últimas eleições presidenciais, em Outubro de 2014 (começaram aí as hostilizações a pessoas vestidas de vermelho), que foram extremamente renhidas e divisórias. Dilma Rousseff tem sido uma Presidente contestada e repudiada praticamente desde que foi reeleita, com manifestações sistemáticas e de grande escala. (…)
A sensação de que o Brasil pode explodir a qualquer momento começou há um mês, quando o país acordou com a notícia de que Luiz Inácio Lula da Silva, o Presidente mais popular da democracia brasileira (de 2003 a 2011), estava a ser levado de casa pela polícia para prestar depoimentos por suspeitas de ocultação de património e lavagem de dinheiro no âmbito da Operação Lava Jato. (…)
Um adolescente que gritou “Não vai ter golpe!” teve de ser escoltado pela polícia (de trânsito) na Avenida Paulista, em São Paulo, para não ser linchado por manifestantes contra o governo.
O arcebispo de São Paulo foi agredido no final de uma missa por uma mulher que o acusou de ser um “comunista infiltrado”. (…)
“No Brasil é uma coisa inédita. Antes isso era coisa de time de futebol: o Flamengo brigava com o Fluminense”, diz o escritor paulista Ricardo Lisias, 40 anos. “É difícil lidar com isso, não faz parte da tradição brasileira. A violência aqui ficava agregada às classes baixas, na periferia. Agora é geral. Agora tem briga na Avenida Paulista e o motivo é política.”
Ricardo acredita que uma das causas da polarização é o ressentimento das elites brasileiras por verem os seus privilégios históricos serem postos em causa pelos avanços sociais promovidos nos governos do PT. “Antes o acesso à universidade pública era só da classe alta, que dizia que era assim porque ela é que tinha o mérito. Agora que a classe baixa está a ocupar lugares, fica claro que é uma questão de poder e não de mérito da classe alta. É meio claro que a classe alta está com raiva, ódio. Você imagina: o filho do banqueiro ocupa na universidade a mesma sala que o filho da mulher da limpeza. Eu moro num prédio de elite. Tenho vizinhos que reclamam que o porteiro agora também viaja para a Europa. A elite brasileira perdeu a vergonha de ser conservadora. Antes ela tinha vergonha.” (…)
“Tem uma quantidade imensa de pessoas que não estão acostumadas a ter opinião política, que não estão acostumadas a conviver e a entender que é uma riqueza você ter alguém que pensa diferente de você”, diz Christian Dunker. (…)
Segundo o psicanalista, o que está a acontecer no Brasil hoje é reflexo da “entrada de uma massa” que não estava habituada a falar de política publicamente e que está a dar os seus primeiros passos. Pessoas cuja referência política, até aqui, era “aquela conversa de domingo, em que o tio fica dizendo que bons eram os tempos em que a gente tinha ditadura”. É uma caricatura mas, diz Dunken, “essa conversa caseira, muitas vezes mal informada, saiu para as ruas”. “Porque é o que as pessoas têm para dizer. É como elas até aqui mais ou menos participaram e se envolveram. Quando estão em público reproduzem a conversa de domingo.” (…)
“Esse é também um momento de aprendizagem, de educação política do Brasil. Isso começa com ódio, com coisas que a gente não gosta, mas que é parte do processo. Claro que você tem todo o tipo de coisa demoníaca saindo do baú, mas ao mesmo tempo você tem um processo de transformação não só institucional, mas um novo reposicionamento das pessoas diante de um futuro possível.”
Nada como um psicanalista para descomplicar.»
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