14.10.23

Casas

 


Casa Van Bellinghen Tomberg, Arte Nova, Bruxelas, 1900.
Arquitecto: Ernest Blérot.

Daqui e não só.
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Fala devagar

 

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Guerra: ouvir todas as vozes sobre o passado

 

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O dilema sobre Gaza e o "crime" de Bibi

 


«Concluída a primeira fase da guerra – enterrar os seus 1300 mortos –, os israelitas defrontam-se agora com o problema maior: o que fazer em Gaza? O Hamas visa provocar uma resposta tão mortífera quanto possível de Israel. E não só: "O Hamas faz tudo para atrair Israel para a ratoeira de uma operação terrestre", escreve Pierre Razoux, especialista francês de estratégia e de questões militares israelitas.

Desta vez, Israel debate-se com um desafio quase insolúvel: os reféns. Este tanto podem funcionar para os terroristas como uma preciosa moeda de troca ou como "escudos humanos". Mas a escala de violência ¬– e barbárie – do Hamas torna improvável qualquer negociação nesta matéria ou o êxito de mediações internacionais.

A par dos bombardeamentos, Israel estabeleceu um cerco hermético à Faixa de Gaza com o objectivo de asfixiar o Hamas. Mas atinge também a população civil e, sobretudo, não permite recuperar os reféns. De resto, o número de reféns e a sua dispersão dificultam a viabilidade de acções de comandos, o que não quer dizer que não sejam ensaiadas.

Os israelitas estão perante dilemas. É grande a pressão da opinião pública. Por outro lado, os militares temem que uma acção "moderada" seja entendida como fraqueza, não só pelo Hamas mas também pelo Hezbollah e pelo Irão, estimulando novos ataques.

Uma ocupação militar em grande escala, num território labiríntico onde o Hamas controla uma infinda rede de túneis, seria uma ratoeira para os militares israelitas que provavelmente sofreriam largas baixas. Como já disse, uma das óbvias razões dos ataques de 7 de Outubro é forçar Israel a exercer um grau de violência tão alto que o enfraqueça diplomaticamente e suscite uma equiparação moral com o Hamas.

Mas a questão política decisiva é outra: permite uma tal operação cortar os laços entre a população e o Hamas, que a governa ditatorialmente e a expõe a riscos perpétuos?

O Hamas tem ainda em mira duas outras frentes: fomentar revoltas em Jerusalém e na Cisjordânia, onde os colonos têm promovido, como protecção militar, verdadeiros progroms contra palestinianos. Outra ambição seria a abertura de uma segunda frente no Norte de Israel, envolvendo o Hezbollah no conflito. De momento não parece provável. Note-se que os EUA enviaram um porta-aviões para a zona de Chipre, a que se seguirá um outro: são uma força de dissuasão contra tentações do Hezbollah.

É cedo para perceber se o alargamento do Governo aos generais Benny Ganz e Gadi Eisenkat, líderes do principal partido de oposição e antigos comandantes supremos das Forças de Defesa de Israel, terá um papel determinante na condução da guerra. Há dúvidas, até porque lá permanecem os "pirómanos" de extrema-direita.

A doutrina Netanyahu

Hoje, Netanyahu fala em "destruir o Hamas". Será o "falcão dos falcões". Mas nem sempre foi assim. Não é possível entender esta guerra sem dissecar a política palestiniana de Bibi: fortalecer deliberadamente o Hamas e debilitar a Autoridade Palestiniana para sabotar qualquer negociação territorial com os palestinianos.

No termo desta guerra, quando tiver de prestar contas, é provável que os israelitas se venham a escandalizar mais como este "crime político" de Netanyahu do que com os casos de corrupção de que é acusado.

Explica o historiador israelita Dmitry Schumsky: "O objectivo dessa doutrina era perpetuar o conflito entre o Hamas em Gaza e a Autoridade Palestiniana (AP) na Cisjordânia. Isto preservaria a paralisia diplomática, afastando para sempre o ‘perigo’ de negociações com os palestinianos sobre a partilha da Palestina em dois Estados, com o argumento de que a AP não representava todos os palestinianos. Esta duvidosa estratégia permitiu transformar o Hamas de grupúsculo terrorista numa organização eficiente e num exército letal."

O general na reserva Gershon Hacochen, colaborador de Bibi, formulou assim a questão em 2019: "Temos de falar verdade. A estratégia de Netanyahu para evitar a opção dois Estados é fazer do Hamas um parceiro próximo. Abertamente, é um inimigo. Secretamente, é um aliado." É nestes termos que o Governo autorizou a passagem para Gaza de grandes financiamentos do Qatar.

Os serviços secretos israelitas estavam aparentemente a dormir. Um dia se saberá até que ponto. É frequente alguns deles dizerem ao primeiro-ministro o que este quer ouvir e o "chefe" também pode ouvir apenas aquilo que lhe interessa.

É fácil acusar os "espiões". Mas a doutrina oficial do Governo era que o Hamas não estava interessado em atacar Israel, e alguns militares pensavam que a sua dissuasão era mais do que suficiente. Tzachi Hanegby, conselheiro para a segurança de Bibi, garantiu, dias antes do 7 de Outubro, que nada havia a temer do lado do Hamas.

Mais grave: os ministros de extrema-direita, Itamar Ben-Gvir (Segurança) e Bezalel Smotrich (Finanças e Territórios), incentivaram acções violentas de colonos contra palestinianos na Cisjordânia. E como estes se poderiam revoltar, o Governo fez lá colocar três quartos dos efectivos militares, para proteger os colonos, base eleitoral da extrema-direita, retirando quase todas as forças do Sul, que vota maioritariamente à esquerda.

Denuncia o politólogo israelita Samy Cohen: "Os cidadãos israelitas que mais beneficiaram da solicitude do Governo foram os colonos da Cisjordânia, clientela privilegiada dos aliados extremistas de Netanyahu. Este deveria responder pela decisão do seu Governo de reforçar maciçamente a segurança das colónias, já ultraprotegidas, sem dar suficiente atenção à população do Sul, deixada com uma protecção irrisória."

A quem devem as vítimas pedir contas?»

Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Púbico, 13.10.2023
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13.10.23

Lâmpadas

 


Grande Lâmpada de Mesquita, em vidro moldado esmaltado com ferragens em bronze dourado.Cerca de 1890.
Émile Gallé.

Daqui.
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13.10.1941 – Paul Simon

 


Confesso que continuo com dificuldade em «desgarrar» Simon de Garfunkel que conheceu quando ambos tinham 10 anos e com quem iniciou exibições aos 13.

Bridge Over Troubled Water (1970), o último álbum antes de se separarem, inscreve-se na lista dos mais vendidos de sempre. Voltaram a reunir-se pontualmente, como no célebre Concerto de 1981, no Central Park de Nova Iorque.

Mas Simon continuou sozinho como um dos grandes artistas do século XX, sendo de realçar Graceland (1986), que é talvez o seu álbum com mais sucesso, e Sete Salmos que lançou já em 2023:


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13.10.1921 – Yves Montand

 


Yves Montand, de facto Ivo Livi, nascido italiano e naturalizado francês, cantor e actor, formou um dos pares mais célebres do cinema francês quando se casou com Simone Signoret em 1951.

Pretexto para recordar algumas das suas interpretações, entre muitas.

Paris, Paris:






Porque é tempo delas:




E, inevitavelmente:


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Ainda se celebra o Estado Novo na Faculdade de Direito

 


«Em junho de 2022, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa anunciou orgulhosamente a reabertura de dois espaços museológicos: a Sala-Museu Professor Marcello Caetano e a Sala-Museu Professor Paulo Cunha. Originalmente criada em 2006, a Sala-Museu Marcello Caetano é caracterizada pelo website da Faculdade de Direito como uma pequena área com “livros, manuscritos, objetos de índole pessoal, trajos académicos e condecorações de vários países.” Por outras palavras, é realizada uma homenagem a Marcelo Caetano nesta sala. Homenagem essa que omite um lado fundamental da sua história de vida: o seu papel no Estado Novo.

O mesmo acontece na Sala-Museu Paulo Cunha, “um espaço de arte dedicado à memória deste antigo jurista, advogado, orador e homem público”. O legado que Paulo Cunha deixou enquanto ministro do Estado Novo é convenientemente colocado de lado. Em vésperas da celebração dos 50 anos do final da ditadura, a celebração acrítica que a Faculdade de Direito faz a estes dois “homens fortes” do Estado Novo revela-se não apenas datada, mas também insultuosa para os estudantes universitários que resistiram à ditadura.

Quando questionados sobre as salas-museus, os defensores destas homenagens escudam-se na importância que Marcelo Caetano e Paulo Cunha tiveram na história do Direito português. A sua categoria de juristas de renome é, na opinião dos seus defensores, razão suficiente para prestar estas homenagens através de espaço museológico. O seu legado político é algo totalmente diferente, afirmam. Separam a arte do artista, apesar de esta ser uma separação um pouco complicada – onde começa e acaba a atividade jurídica de cada um destes homens? A sua atividade política não era, também, parte da sua atividade jurídica? Os seus contributos jurídicos não moldaram os seus “contributos” políticos? Será possível separar a arte do artista quando falamos do estudo do Direito e da governação política, duas áreas que caminham de mãos dadas? Não deveremos, pelo contrário, ler os seus contributos para a história do Direito português à luz dos cargos políticos que desempenharam, e vice-versa? Infelizmente, estas salas-museus não adotam esta leitura crítica dos juristas de renome: apenas celebram acriticamente o seu legado, esquecendo-se que os homens não são apenas aquilo que escrevem, mas também o que fazem nas suas vidas.

As visitas ao museu apenas são possíveis por marcação prévia, mas a Faculdade de Direito disponibilizou visitas virtuais onde podemos ver estas homenagens aos governantes do Estado Novo no conforto dos nossos sofás. Ao entrarmos na Sala Marcello Caetano, deparamo-nos com uma cronologia da sua vida. Podemos observar que, enquanto os seus contributos jurídicos são especificados – o tema da sua tese de doutoramento, o seu papel central na fundação de um “novo” Direito Administrativo português, os seus contributos em diferentes conferências internacionais de Direito –, os seus cargos políticos são meramente mencionados. Em Setembro de 1968, é chamado a chefiar o Governo português, lê-se. Foi Presidente do Conselho de Ministros até ao dia 25 de Abril de 1974, lê-se um pouco mais em baixo. Residiu, desde 1974 até à sua morte, em 1980, no Brasil. Final da cronologia.

Ainda se celebra o Estado Novo na Faculdade de Direito Nada é dito sobre a governação de seis anos de Marcelo Caetano, nada é dito sobre o porquê de – misteriosamente! – Caetano ter ido para o Brasil depois do 25 de Abril. Há muito a dizer sobre o que é silenciado nestas linhas, muitas questões por responder. O que terá acontecido no dia 25 de Abril?

Há, assim, omissões que fazem muito barulho. É o caso das omissões da Sala-Museu Professor Marcello Caetano. Omite-se o papel central que Marcelo Caetano teve na ditadura até 1974 – desde o seu apoio, enquanto jovem, à ditadura militar imposta em 1926, aos cargos políticos que ocupou. Entre estes, contam-se o de comissário da Mocidade Portuguesa entre 1940 e 1944, ministro das Colónias entre 1944 e 1947, presidente da Câmara Corporativa entre 1949 e 1955, ministro da Presidência do Conselho de Ministros entre 1955 e 1958 e, claro, Presidente do Conselho no Estado Novo entre 1968 e 1974.

Não se pode falar de Marcelo Caetano sem falar do legado que deixou ao ocupar cada um destes cargos: da manutenção de uma política colonial que oprimiu os povos colonizados e que enviou milhares de homens para uma guerra sem propósito, da censura e perseguição aos opositores políticos pelas mãos da polícia política, do falhanço do “marcelismo” em abrir o regime. O mesmo se poderá dizer das omissões das salas-museus quanto à colaboração de Paulo Cunha com o regime salazarista enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1950 e 1958.

Todas estas omissões se traduzem numa verdadeira celebração acrítica de dois governantes do Estado Novo promovida pela própria Faculdade de Direito, 49 anos depois do fim da ditadura. Infelizmente, ainda se celebra o Estado Novo na Faculdade de Direito. Há, no entanto, alternativas a esta celebração.

Em 1972, Ribeiro Santos – um ativista estudantil e militante antifascista – foi baleado e assassinado pela PIDE num encontro de estudantes contra a repressão no ISEG. Ribeiro Santos era um estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Ao contrário de Marcelo Caetano, que era presidente do conselho no dia do seu assassinato, Ribeiro Santos não tem um museu em sua honra – apenas uma fotografia sua no átrio da faculdade e uma pequena sala da associação dos estudantes com o seu nome. Porque não transformar as atuais salas-museus, locais de homenagem acrítica a figuras do Estado Novo, num museu da resistência estudantil durante a ditadura, relembrando Ribeiro Santos e tantos outros que lutaram pela liberdade? Porque não atribuir a sala a núcleos estudantis que prosseguem outros fins? Os usos possíveis para a sala são infinitos e caberá à comunidade estudantil defini-los. Uma coisa é certa: o fascismo e as suas celebrações não podem ter lugar numa universidade pública.»

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12.10.23

Biscoitos

 


Pote para biscoitos de vidro esmaltado, cerca de 1900.
Théodore Legras,

Daqui.
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12.10.1960 – A sapatada de Nikita

 


Quem tem idade para tal lembra-se certamente deste episódio cujas imagens deram volta ao mundo, quando este era muito mais politicamente respeitador do que hoje: durante uma agitadíssima Assembleia Geral da ONU, Nikita Kruschev tirou um sapato e bateu furiosamente com ele na sua bancada.

O incidente produziu-se num momento de grande tensão na Guerra Fria, cinco meses depois de um avião-espia americano ter sido abatido em território soviético e quando o recentíssimo governo de Fidel Castro se aproximava cada vez mais da URSS.

Continuar a ler e ver um vídeo AQUI.
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SNS: Tento ser optimista, mas…

 


Daqui.
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Onde estará a raiz do mal?

 

@Hugo Pinto


«Em “Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch” nada sucedia de diferente: frio glaciar, fome, noites mal dormidas, jornadas de 12 horas de trabalhos forçados no gulag soviético. Mas não havia espaço para lamentações, pois que a pena pelo descontentamento manifesto não era menos do que a morte. Resistindo fisicamente e em silêncio como um dos condenados políticos, Aleksandr Soljenítsin haveria de escrever mais tarde este livro e, sobretudo e “de coração apertado” pelos que tinham morrido nos campos, os três volumes do “Arquipélago Gulag” — um testemunho literário e factual arrasador sobre o “paraíso na terra.

Totalmente a despropósito, confesso, lembrei-me disto apenas a propósito do título do livro: neste nosso tão cantado “Portugal de Abril”, em cada dia que passa, parece que nada acontece de diferente — e já lá vão 50 anos. Em cada um destes anos e em cada dia destes anos, há sempre portugueses — nas ruas, nas esquinas, nos cafés, nos empregos — a lamentar a sua sorte e a do país. Não sei se são a maioria, mas pela atenção que conseguem atrair e pelas atenções e importância que todos lhes prestam, assim parece — ao ponto de os seus estados de alma se confundirem com o sentimento profundo da nação. Diariamente, os jornais televisivos trazem-nos o retrato de um país cansado, zangado, frustrado nas suas expectativas, sempre revoltado com quem nos governa, desconfiado do próximo, sem horizonte, sem esperança, triste e acabrunhado. Se os dinamarqueses são o povo mais feliz do mundo, os portugueses serão, se não os mais infelizes, pelo menos os mais lamurientos, os mais inconformados com a sua sorte. E, todavia, se, fazendo contas, será fácil deduzir que os dinamarqueses, via UE, já terão contribuído com muitos milhões para minimizar a nossa tristeza, também sou capaz de pensar em muitas outras razões pelas quais eles nos poderão invejar. Talvez, irmos ao fundo das razões do nosso mal-estar endémico, devêssemos começar por enviar alguns dos nossos profissionais do descontentamento à Dinamarca para ver se entendem porque é que eles são tão estupidamente felizes: para por exemplo, aqueles profetas da desgraça que todos os finais de Verão emergem de novo à superfície, esses sim, felizes da vida, para nos anunciar que as escolas não vão abrir, os hospitais não vão atender doentes e os tribunais vão continuar a não funcionar.

Esta semana portuguesa foi um bom exemplo daquilo a que poderemos chamar o estado da nação. Logo a abrir, multiplicou-se o número de hospitais a fecharem valências e serviços devido à recusa dos médicos em fazerem mais do que o limite de horas extraordinárias exigíveis por lei. Os funcionários judiciais, cuja greve suspende há oito meses o direito constitucional à justiça, ouviram nova proposta da ministra, que, ao que parece, não os satisfaz. Os senhores Nogueira e Pestana, também ouviram novas propostas, mas enquanto não lhes derem os 6 anos, 6 meses e 23 dias de promoções congeladas lá atrás, nada feito, pois que a última das suas preocupações é que os alunos tenham aulas e os pais tenham onde deixar os filhos para irem trabalhar. E assistimos a manifestações em várias cidades pelo mais elementar dos direitos: ter uma casa para viver. Como se não bastasse, para baralhar as coisas, o PSD de Montenegro resolveu dar duas cambalhotas em simultâneo: está disposto a ceder aos professores, abrindo uma excepção no tratamento do funcionalismo público, e um lóbi capitaneado pelo “intelectual” Pinto Luz, de Cascais, já não quer esperar pelo parecer dos técnicos e defende a impensável solução do futuro aeroporto de Lisboa em Santarém. Ou seja: quem visse as notícias do dia e lhe acrescentasse o panorama das contas públicas, o nível extremo da carga fiscal, o peso da dívida pública e dos seus juros e as expectativas económicas de uma Europa estrangulada pela guerra na Ucrânia, concluía que o país não tinha saída. E quando o Estado cobra os impostos que cobra e, em troca, nenhum dos seus serviços parece funcionar, seguramente que estamos a ser mal governados. Se grasna como um pato e voa como um pato...

Porém, à noite o primeiro-ministro foi à TVI e, com excepção da questão da habitação, onde reconheceu a “frustração” de ter falhado as promessas e os objectivos, em tudo o resto foi desarmante. Na saúde, acenou com aumentos salariais entre 12% e 30% para os médicos dos cuidados de saúde primários e de 30% para os que aceitarem dedicação plena nos hospitais, acentuando que desde que é primeiro-ministro o orçamento do SNS subiu 56%. Na política de rendimentos, enumerou todos os apoios sociais em vigor e referiu que no último ano as contribuições para a Segurança Social aumentaram 13%, sendo 5% devido a mais inscritos e 8% a aumentos salariais. E rematou: “Desde que sou primeiro-ministro, há oito anos, a inflação acumulada subiu 13% mas o salário mínimo 51% e o salário médio 31%.” Quanto aos professores (e os números são sempre dele), referiu que 98% dos horários de aulas já estão preenchidos; que os quadros pedagógicos passaram de 10 para 63, encurtando as distâncias de deslocação dos professores; que ao fim de três anos na mesma escola estes só mudam se quiserem; e que 8 mil já se vincularam este ano. Só não cede às promoções retroactivas porque teria de o fazer para toda a Função Pública. E também não vai baixar o IRS a não ser para isentar progressivamente os jovens durante cinco anos, mas prometeu baixar a colecta do IRS em 2 mil milhões até final da legislatura.

Depois de ouvir António Costa pela enésima vez nestes oito anos, acabo baralhado. Parece um capitão de navio numa nau à deriva no meio de uma tormenta, em que ele é o único que não está em perdição e parece saber o que faz. Manifestamente, o seu grau de preparação e segurança faz dele o melhor dos membros do Governo. Mas quando se chefia um governo em que pelo menos metade dos ministros não presta e não se vislumbra rasgo nem visão de futuro, isso não faz dele um bom primeiro-ministro. O navio avança aos baldões, retido por uma âncora de arrasto que ninguém solta. Mas há por aí alguém que tenha outro rumo, outra bússola e melhor timoneiro para conduzir esta nau das lamentações?»

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11.10.23

Jarras

 


Jarra, com decoração esmaltada de um par de pássaros num medalhão, início do século XX.
Legras Amboise, série Printania.

Daqui.
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Essa é que é Eça

 

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Roma, 11.10.1962 – Um Concílio

 


O Vaticano II teve início há 61 anos e durou cerca de três. Por vários motivos, e em diversas instâncias, já escrevi sobre esta importantíssima fase da Igreja católica que vivi intensamente.

Quem estiver interessado pode ler este texto que escrevi em 2012.
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O OE são palavras, mais importantes são os actos

 


«Ao nível macroeconómico, o discurso do Governo sobre o Orçamento do Estado (OE) para 2024 faz sentido. A quebra da procura externa poderá ter impactos maiores do que se esperava na actividade económica e no emprego em Portugal. O modo de contrariar essa tendência é aumentar a procura interna, evitando agravar dois outros problemas que o país enfrenta: a inflação e a dívida pública.

É isto que o Governo diz querer fazer: reforçar o consumo das famílias aumentando o rendimento disponível, através da redução da carga fiscal e do crescimento maior que previsto do salário mínimo; reforçar o investimento, através da execução do PRR e do Portugal 2030; evitar as pressões inflacionistas decorrentes da procura, mantendo o crescimento dos salários a níveis modestos; e continuar a reduzir o rácio da dívida pública no PIB, restringindo o aumento da despesa.

A orientação é clara e soa coerente, mas tem vários problemas. Para a maioria dos funcionários públicos e não só, os aumentos não são apenas modestos, são insuficientes para recuperar o poder de compra. A redução nas taxas de IRS para os primeiros cinco escalões é parcialmente cancelada por uma actualização dos limiares que fica aquém dos aumentos salariais previstos. A opção de aumentar rendimentos pela via fiscal deixa de fora as famílias mais pobres (a metade das famílias que estão isentas de IRS). As fortes restrições ao crescimento da despesa ameaçam adiar a resolução de problemas urgentes em vários domínios de governação. As medidas para lidar com o problema da habitação são quase todas de natureza fiscal, deixando de fora, mais uma vez, as pessoas de menores rendimentos.

Não menos importante, o OE é apenas uma declaração de intenções que nos diz pouco sobre o que irá de facto acontecer, principalmente no domínio da despesa. Como mostram os diversos pareceres sobre a Conta Geral do Estado (o documento que relata a execução efectiva das despesas e das receitas públicas), tem-se verificado ao longo dos anos um desvio significativo entre o que o Governo anuncia no momento da aprovação do OE e aquilo que acontece na prática.

Quem julga que este problema irá desaparecer com o fim anunciado das cativações desengane-se. O Ministério das Finanças continuará a dispor de vários instrumentos para limitar os gastos aquém do que está previsto no OE. Várias outras normas em vigor fazem depender da decisão arbitrária do ministro das Finanças a autorização para realizar despesa (e.g., a dotação provisional, as dotações centralizadas no Ministério das Finanças e a reserva orçamental). O Governo dispõe ainda de instrumentos de controlo que a UTAO tem designado por “não convencionais”: um conjunto de normas jurídicas utilizadas de forma recorrente para impedir a despesa em recursos humanos e aquisição de serviços, fazendo depender a autorização da intervenção de vários membros do executivo.

Os mais optimistas vêem aqueles artifícios como necessários para a sustentabilidade das contas públicas. Na prática, traduzem-se na ingerência dos decisores políticos na microgestão das entidades do Estado, introduzindo não só lentidão nos procedimentos administrativos, mas também a necessidade de encontrar formas expeditas (e quase sempre mais custosas) para dar resposta a necessidades urgentes.

Até ver, a proposta de OE e os discursos que a envolvem são pouco mais do que manobras de comunicação política. Este ano, o Governo resolveu focar o discurso nas medidas dirigidas aos jovens, às classes médias e aos reformados. Lá terá a suas razões. Quando saírem os dados sobre a execução de 2024, em Junho de 2025, estaremos todos ocupados com outros fados e ninguém se lembrará de perguntar se o que hoje foi prometido foi de facto executado.»

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10.10.23

Mais vasos

 


Vaso de porcelana Arte Nova, com montagens de bronze dourado. França, cerca de 1910.

Daqui.
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Conselho para o dia de hoje

 

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19.12.1915 – 10.10.1963: Édith Piaf

 


Uns dizem que morreu em 10 de Outubro de 1963, outros que foi no dia seguinte, poucas horas antes do seu grande amigo Jean Cocteau.

Piaf colou-se para sempre à pele da minha geração, como tantos outros cantores sobretudo franceses, quando este país era quase tão sombrio como os vestidos pretos que ela nunca largou. Mas acrescento uma nota pessoal: acabada de regressar de Portugal, onde tinha vivido a primeira parte da Crise Académica de 1962, eu vi-a e ouvi-a, em Lovaina, no mesmo dia (vim a sabê-lo algumas horas mais tarde) em que muitas centenas de estudantes foram presos na Cantina da Cidade Universitária de Lisboa. «L'hymne à l'amour» ficou para sempre associado, em mim, ao Dia do Estudante.

Ver alguns vídeos AQUI.
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Hamas domina a agenda do Médio Oriente

 


«Israel experimenta um momento de dor e humilhação. O ataque do Hamas é um desastre para o exército e para o Governo e para milhares de cidadãos. “Mas a palavra ‘desastre’ é demasiado fraca”, escreve o historiador israelita Ilan Greilsammer. “É uma viragem na história de Israel.” E no Médio Oriente.

Neste momento teríamos vantagem em trocar a palavra “análise” por “adivinhação” ou, até, “especulação”. Depois do ataque do Hamas, faltam as palavras e, ao olhar o Médio Oriente, estamos como os serviços secretos israelitas em Gaza: às escuras. Claro que, apesar disso, há muitas lições a tirar.

A “questão palestiniana” foi nos últimos anos reduzida à quase insignificância. O primeiro efeito do “7 de Outubro de 2023” foi lembrar que ela persiste, mudando de momento o tabuleiro estratégico do Médio Oriente. Os emirados árabes do Golfo e os Estados Unidos conceberam o plano de impulsionar as relações entre Israel e a Arábia Saudita, que o via com prudência mas com bons olhos. É aqui que o problema começa.

Este processo, ainda virtual, reforçaria os chamados Acordos de Abraão e enfraqueceria o Irão e suas filiais, como a Síria, o Hezbollah e o Hamas. Uma das primeiras motivações estratégicas do Hamas foi rebentar este projecto que ameaçava agravar o seu isolamento. Não se sabe se Teerão lhe deu “luz verde”, mas é provável que sim.

Por outro lado, o Hamas soube ler o caos político e o enfraquecimento militar decorrentes da crise aberta por Benjamin Netanyhau, no seu combate contra a Justiça e na sua aliança de governo com os nacionalistas messiânicos e religiosos. São patentes as agressivas manobras do ministro Bazalel Smotrich na Cisjordânia e em Jerusalém, esboçando um projecto de anexação e “limpeza étnica”. Nos últimos tempos, o Hamas tem apelado à revolta na Cisjordânia. E o ataque a Israel foi denominado “Dilúvio de Jerusalém”.

A primeira reacção de Israel será brutal. É provável que tenha de negociar reféns e cadáveres por alto preço. Para isso, será precisa uma trégua. Numa entrevista à Foreign Affairs, o analista americano Martin Indyk mostra-se pessimista: “Porque temo que o Hamas tenha a intenção levar Israel a uma retaliação maciça e provocar uma escalada do conflito: insurreição em Gaza, ataques do Hezbollah, revolta em Jerusalém.”

Yom Kippur

Deve ser bem entendida a analogia e a diferença com o Yom Kippur de 1973. Nessa altura foi uma invasão por dois Estados, o Egipto e a Síria, que surpreendeu os israelitas. Os egípcios conseguiram atravessar o Canal do Suez com os seus tanques, o que os israelitas consideravam impossível e ocuparam o Sinai. Para Israel, foi uma humilhação, compensada pela vitória militar final. Mas os primeiros dias foram celebrados no mundo árabe como uma grande vitória, mostrando que Israel não era invencível e lavando a derrota de 1967 (Guerra dos Seis Dias). E o Egipto celebra-a todos os anos.

O egípcio Anuar al-Sadate não ordenou a operação para destruir Israel, mas para obter uma vitória e negociar uma paz honrosa com Israel: os Acordos de Camp David assinados com Menachem Begin, o líder da direita israelita. A mensagem do Hamas é a de que o statu quo de paz por ajuda humanitária acabou de vez e que o objectivo é mesmo destruir Israel.

Para Netanyhau, “tudo estava sob controlo”. Recusou perceber a crise que lançou em Israel. Houve muitas vozes, sobretudo militares, que alertaram para os riscos. O enfraquecimento de Israel estimulou a audácia do Hamas. Houve avisos dramáticos. No fim de Julho, o general na reserva Eitan Eliyahu, antigo chefe da força aérea, disse emocionado na televisão: “Estamos a correr para o desastre. São 14 horas do Dia do Yom Kippur.” Ou seja, a hora a que começou o ataque de 1973. Não foi ouvido. A tese do Governo era que o Hamas não pretendia atacar mas receber vantagens para o enclave.

O futuro do Médio Oriente depende não só dos cálculos dos políticos mas de factores que eles podem não controlar. O Egipto está a ser solicitado como mediador para obter uma trégua. Mas o Presidente Sissi tem eleições em breve e teme que movimentações pró-palestinianas se apoderem das ruas.

O Hezbollah raramente intervém nas questões palestinianas, age em função dos seus objectivos libaneses, embora forneça armas e logística ao Hamas. A principal incógnita é a reacção activa ou passiva do Irão. Internamente, o Hamas vai reforçar os esforços de unir e hegemonizar todos os movimentos palestinianos.

Uma bomba na sala

Voltando ao projecto de normalização árabo-israelita. “O Hamas lançou uma bomba na sala”, afirma o analista árabe Hussein Ibish, que concorda com a já citada opinião de Indyk: “O objectivo é levar os israelitas a represálias que tornem impossível aos sauditas prosseguir a normalização.”

Declara ao Monde, com alguma prudência, um outro analista da região: “A mensagem é coordenada: sem concessões substanciais, não haverá acordos de normalização e é o Irão, e não os árabes, que é o detentor do dossier palestiniano.”

Com o ataque a Israel, o Hamas passa a controlar a agenda do Médio Oriente, escreve no diário israelita Haaretz o jornalista Zvi Bar’el. “Os trunfos estão agora nas mãos do Hamas e da Jihad Palestiniana e são mais fortes do que nunca, e assim serão as suas exigências a Israel e outros no Médio Oriente.” Basta pensar nos reféns.

No entanto, ainda a procissão vai no adro. Será que os cálculos estratégicos do Hamas se revelarão correctos ou se se terá lançado numa aventura acima das suas forças, que poderá vir a redundar numa também inesperada derrota? Demoraremos a saber. Para já, teremos mais tragédia.»

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9.10.23

Uma bela porta que não existe

 


Algumas pessoas mostraram-me esta lindíssima porta Arte Nova em páginas do Facebook, mas sem indicação de local, data ou arquitecto. Através do Google Images, encontrei muitos exemplares, todos nas mesmas condições.

Até que cheguei a um nome – Thierry Lechanteur – e à realidade: trata-se de uma «construção» que este belga produziu com recurso a Inteligência Artificial (não só a porta mas uma casa completa), que não existe fisicamente em parte alguma e que se tornou viral, sem explicações, nas redes sociais, nomeadamente no Twitter. Isto é o nosso mundo novo, se admirável ou não o futuro o dirá.

Fica aqui uma notícia esclarecedora: “No, this magnificent art-nouveau villa doesn’t exist. It’s the work of a Belgian AI artist”
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09.10.1978 – O dia em que Jacques Brel morreu

 


Adormeceu num 9 de Outubro. Excepto que estava muito longe de ser velho como os velhos que tão bem cantou: «Les vieux ne meurent pas, ils s’endorment un jour et dorment trop longtemps».



Mais:






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Hamas, o monstro do Frankenstein israelita

 


«Não contem comigo para o comércio de cadáveres. Mesmo sabendo do desequilíbrio dos números acumulados de vítimas, cada carnificina condena-se sem compensações adversativas. Assim como se condenarão as que venham de lado oposto, que já começaram. Quem entra no jogo macabro da desforra está tão doente como as duas nações, mas sem a desculpa das dores de décadas de guerra.

Para além da condenação, sem outro sentimento que não seja o nojo do que vejo, o único debate que me interessa é de que lado está a solução. Ali, a paz já não pode ser justa. Mas, sabendo-o, tenho de partir do pressuposto que determina a minha posição sobre a guerra da Ucrânia, com o realismo de saber que só se pode desejar uma paz imperfeita: há um ocupante e um ocupado. E é sempre do ocupante que depende a solução.

Não sou defensor da causa palestiniana por achar que eles representam os “meus valores”. Esse é um ponto de vista civilizacional essencialmente racista: que os direitos de cada um dependem da sua proximidade à minha mundividência. De qualquer das formas, já poucos valores que prestem restam nas duas nações forjadas por quase um século de dor e ódio. Sou-o porque defendo o direito de qualquer povo ocupado à sua nação. Quanto ao mais, fui a Israel várias vezes e adoraria lá voltar em paz. A paz que permitisse não ser, como disse a Amnistia Internacional, um regime em que, na prática, vigora o apartheid. E lamento que o extraordinário sonho de tantos sionistas progressistas de dar uma casa segura ao mais martirizado e perseguido dos povos se tenha transformado no seu exato oposto. Assim como gostaria de voltar à Cisjordânia sem assistir ao espetáculo da programada humilhação quotidiana, onde qualquer ideia de segurança nunca fez qualquer sentido.

Tenho ouvido, por estes dias, que Israel tem direito a defender-se. É uma verdade aplicável a qualquer nação soberana. Mas basta olhar para evolução do mapa do território nos últimos 75 anos para perceber a quem foi retirado esse direito.

As revoltantes imagens de horror a que temos assistido – e aquelas a que seremos poupados em Gaza – só são possíveis através da absoluta desumanização do outro. Uma desumanização que nasce do ódio mútuo que os muros apenas ajudaram a crescer. Ela é corresponde a uma dinâmica imparável, mesmo que nos deixe perplexos. Que sociedade se espera criar quando se cercam e isolam do mundo 2,2 milhões de pessoas com 65km de aço galvanizado de seis metros de altura (e impedindo o acesso ao mar), num território sem água do tamanho do concelho de Tomar, impedido entradas e saídas e boicotando de forma metódica a sua economia? Uma sociedade pacífica, livre, moderada e respeitadora de direitos humanos? Quem alguma vez esteve em Gaza, e eu estive duas vezes, percebe que aquele gueto só pode ser uma fábrica de violência.

Não foi a Palestina que atacou Israel. Foi o Hamas. E é importante perceber de onde vem o Hamas. Lançou-se na primeira intifada, mas tem uma história anterior. As actividades da Irmandade Muçulmana, banida do Egipto, foram diligentemente permitidas por Israel em Gaza, quando tinha absoluto controlo do território. A administração militar viu com bons olhos trabalho de “caridade” do Xeque Yassin, que se viria a tornar no Hamas, com um empurrão de Israel. Era interessante crescer um grupo religioso radical que fizesse frente à liderança laica e unificadora da OLP. Dividir para reinar.

O papel de Israel no nascimento do Hamas está mais do que documentado. O general Yitzhak Segev, governador militar em Gaza no início dos anos 1980, confirmou que ajudou a financiar o movimento islâmico como um “contrapeso” aos secularistas de esquerda da OLP, com orçamento dado pelo governo israelita. “O Hamas, para meu grande pesar, é uma criação de Israel”, disse, em 2009, Avner Cohen, um ex-funcionário de assuntos religiosos israelita que trabalhou em Gaza mais de duas décadas.

É provável que os políticos que então o fizeram já se tenham arrependido. Mas não os que hoje têm o poder. Deixaram claro há muito tempo que a única paz que aceitam é a que reduza os palestinianos a escravos ou refugiados distantes. Para isso, o Hamas é o único interlocutor útil. Por isso, quiseram fragilizar qualquer liderança com quem fosse possível dialogar. Como escreveu Clara Ferreira Alves, no melhor texto sobre a nova situação na imprensa portuguesa, "o país mais forte encarregou-se de destruir, prender e assassinar as prováveis lideranças palestinianas".

O segundo passo para a fragilização do poder político palestiniano, fundamental para compreender as cenas dantescas deste fim de semana, foi a divisão do território, alimentando o total isolamento e radicalização de Gaza, que Israel só desocupou para encerrar hermeticamente e ver definhar, transformando numa prisão que o Hamas mantém em estado de terror; e a transformação da inviável Cisjordânia num arquipélago de “bantustões”. Dividido, ninguém tem poder para liderar os palestinianos. Para a resistência e para a paz.

O Hamas quer impedir a existência do Estado israelita. Israel conseguiu matar qualquer sonho palestiniano que leve à existência de um Estado palestiniano viável. O Hamas quer extinguir o Estado israelita e nunca o conseguirá. O poder político israelita quer extinguir qualquer possibilidade de existência de um Estado palestiniano e já o conseguiu. O Hamas é causa e consequência desse objetivo planeado: fragilizar qualquer liderança palestiniana para não ter de negociar.

Tenho lido que o Hamas cometeu um erro porque este ataque deu força a um Netanyahu muito fragilizado pelos escândalos internos. Ainda que o dramatismo do momento una os israelitas e faça esquecer a forte contestação ao primeiro-ministro, duvido que o clamoroso falhanço de segurança, num dia tão especial, lhe venha a ser perdoado. Nada ficou melhor para Israel. O ataque a Gaza lida com a dificuldade dos reféns, a frente norte lidará com o Hezbollah e os palestinianos da Cisjordânica, diariamente humilhados, podem sentir-se vingados e engrossar o apoio ao grupo radical. Mas se este fosse “apenas” mais um momento de terror que se resolveria com uma feroz reação punitiva, não menos terrível e arbitrária, para multiplicar por muitos as vítimas palestinianas, como seria um erro, do ponto de vista amoral do Hamas, este ataque?

Hamas e Netanyahu são aliados naturais. O Hamas é necessário às forças israelitas mais radicais, que apoiam colonatos e a expulsão de palestinianos. Netanyahu é necessário ao Hamas, que vive do desespero para a sua política de terror e medo. Ambos enterraram bem fundo a já longínqua memória de Arafat e Rabin.

O problema é que o monstro que Israel alimentou pode crescer ainda mais. Como explicou a Clara, talvez os palestinianos estejam tão cansados de ser vítimas como os judeus estavam quando procuraram um lar seguro. E quando esse sentimento toma um povo todos os limites morais podem ser ultrapassados. Como Israel tem mostrado, aliás. Depois de décadas a destruir as lideranças moderadas para levar a Palestina a um beco sem saída, estão os dois juntos. O ocupado mais maltratado do que o ocupante, como sempre. Mas juntos na mesma viela.»

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Palavras para quê...

 

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8.10.23

Perfumes

 


Frasco de perfume pintado em esmaltes coloridos com um louva-a-deus e crisântemos, cerca de 1890.
Émile Gallé.

Daqui.
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José Craveirinha

 

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A falta atacante de Marcelo e Costa

 


«Imagine o leitor que, lá por 1998, dois países do Sudeste asiático – a Tailândia e a Malásia, por exemplo – tinham ganho a competição para organizarem o campeonato do mundo de futebol. Imagine que ambos decidiam incluir na sua candidatura conjunta um terceiro país, a Indonésia. Imagine, enfim, que a então potência ocupante de Timor-Leste projetava a construção de um grande estádio de futebol em Dili, anunciando que ali se realizaria um dos jogos desse mundial.

É legítimo perguntar: se António Costa fosse então primeiro-ministro de Portugal e Marcelo Rebelo de Sousa fosse o Presidente da República desse momento, que reação a esse plano lhes exigiria a sociedade portuguesa? A resposta é evidente: que fossem coerentes com o que fizeram o Presidente Jorge Sampaio e o primeiro-ministro António Guterres e repudiassem firmemente, em nome de um país que então se mobilizava totalmente contra a ocupação de Timor, uma tal manobra de branqueamento futebolístico da violação mais grosseira do direito internacional. Que ambos dessem voz a nada menos que a autodeterminação daquele povo irmão. O que se exigiria a Marcelo Rebelo de Sousa e a António Costa seria, portanto, que não fossem em futebóis e não se distraíssem, nem a si mesmos nem a nós, do que verdadeiramente estava em causa.

Tudo isto é ficção, sim. Mas não é só porque essa candidatura nunca existiu. É ficção por algo muito mais sério que isso: porque, menos de um quarto de século depois desse imaginado 1998, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa tecem hinos e louvores à organização – essa sim, verdadeira – de um campeonato do mundo de futebol que envolve um Estado (Marrocos) que ocupa ilegalmente o território do Sara Ocidental, no qual anuncia que vai construir um grande estádio para a realização de um dos jogos da competição. O Presidente da República lavou a história com o discurso tradicional da direita e falou de “uma candidatura europeia, africana e sul-americana, ligando países que têm uma História em comum". E António Costa não a lavou menos, esquecendo tudo o que um socialista devia lembrar e escondendo a gravidade desta iniciativa atrás de uma assética “parceria com Espanha e Marrocos” e insistindo no estafado autocomprazimento de que “temos capacidade e provas dadas na organização de grandes eventos".

Pois sabe o que era um grande, mas mesmo grande, evento, senhor primeiro-ministro? Era o seu Governo não dar primazia nem aos negócios do futebol nem ao cinismo da realpolitik e conferir efetiva prioridade a uma política externa centrada na defesa sem cedências do direito internacional e da autodeterminação de todos (todos!) os povos, e não apenas daqueles que o vento dominante diz para defender. Sabe qual era a história comum que devia lembrar, senhor Presidente da República? Era a história que nos fez grandes quando fomos coerentes com a ligação umbilical entre a nossa revolução democrática e as lutas pela autodeterminação das ex-colónias portuguesas e fizemos do seu sucesso pilar do sucesso da nossa democracia.

Da FIFA que organizou o mais vergonhoso dos mundiais (o do Qatar), hoje provadamente envolvido numa teia de corrupção de que o Parlamento Europeu foi apenas um dos focos, não se esperaria nada em favor de critérios de decência e de legitimidade. Mas nenhum de nós é nacional de um Estado chamado FIFA. É enquanto cidadãos de uma democracia que inteligentemente vê no direito internacional uma salvaguarda contra os grandes poderes fácticos deste mundo que temos obrigação de não seguir Marcelo e Costa na sua desmemória tão conveniente e na sua complacência ativa com o poder do ocupante agora tornado parceiro. O Mundial que vem aí – e que os desavindos Marcelo e Costa se unem para elogiar – é um vexame para o país que se irmanou com a resistência timorense contra uma ocupação que os “realistas” de então (e eram tantos…) ditavam que devíamos deixar seguir. E é uma vergonha para quem apregoa, dia sim, dia sim, que não podemos ceder um milímetro aos ocupantes ilegais de territórios de outros povos.

Escrevo este texto quando estou, em Nova Iorque, a participar nos trabalhos da Comissão Especial de Políticas e Descolonização das Nações Unidas sobre a questão do Sara Ocidental. Junto-me aos tantos, de tantos países, que aqui vieram exigir que se cumpra o direito à autodeterminação do Sara Ocidental. Se a força não nos desviou desse princípio, não vão ser os negócios do futebol que o farão. Isso fica para outros.»

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