«Não contem comigo para o comércio de cadáveres. Mesmo sabendo do desequilíbrio dos números acumulados de vítimas, cada carnificina condena-se sem compensações adversativas. Assim como se condenarão as que venham de lado oposto, que já começaram. Quem entra no jogo macabro da desforra está tão doente como as duas nações, mas sem a desculpa das dores de décadas de guerra.
Para além da condenação, sem outro sentimento que não seja o nojo do que vejo, o único debate que me interessa é de que lado está a solução. Ali, a paz já não pode ser justa. Mas, sabendo-o, tenho de partir do pressuposto que determina a minha posição sobre a guerra da Ucrânia, com o realismo de saber que só se pode desejar uma paz imperfeita: há um ocupante e um ocupado. E é sempre do ocupante que depende a solução.
Não sou defensor da causa palestiniana por achar que eles representam os “meus valores”. Esse é um ponto de vista civilizacional essencialmente racista: que os direitos de cada um dependem da sua proximidade à minha mundividência. De qualquer das formas, já poucos valores que prestem restam nas duas nações forjadas por quase um século de dor e ódio. Sou-o porque defendo o direito de qualquer povo ocupado à sua nação. Quanto ao mais, fui a Israel várias vezes e adoraria lá voltar em paz. A paz que permitisse não ser, como disse a Amnistia Internacional, um regime em que, na prática, vigora o apartheid. E lamento que o extraordinário sonho de tantos sionistas progressistas de dar uma casa segura ao mais martirizado e perseguido dos povos se tenha transformado no seu exato oposto. Assim como gostaria de voltar à Cisjordânia sem assistir ao espetáculo da programada humilhação quotidiana, onde qualquer ideia de segurança nunca fez qualquer sentido.
Tenho ouvido, por estes dias, que Israel tem direito a defender-se. É uma verdade aplicável a qualquer nação soberana. Mas basta olhar para evolução do mapa do território nos últimos 75 anos para perceber a quem foi retirado esse direito.
As revoltantes imagens de horror a que temos assistido – e aquelas a que seremos poupados em Gaza – só são possíveis através da absoluta desumanização do outro. Uma desumanização que nasce do ódio mútuo que os muros apenas ajudaram a crescer. Ela é corresponde a uma dinâmica imparável, mesmo que nos deixe perplexos. Que sociedade se espera criar quando se cercam e isolam do mundo 2,2 milhões de pessoas com 65km de aço galvanizado de seis metros de altura (e impedindo o acesso ao mar), num território sem água do tamanho do concelho de Tomar, impedido entradas e saídas e boicotando de forma metódica a sua economia? Uma sociedade pacífica, livre, moderada e respeitadora de direitos humanos? Quem alguma vez esteve em Gaza, e eu estive duas vezes, percebe que aquele gueto só pode ser uma fábrica de violência.
Não foi a Palestina que atacou Israel. Foi o Hamas. E é importante perceber de onde vem o Hamas. Lançou-se na primeira intifada, mas tem uma história anterior. As actividades da Irmandade Muçulmana, banida do Egipto, foram diligentemente permitidas por Israel em Gaza, quando tinha absoluto controlo do território. A administração militar viu com bons olhos trabalho de “caridade” do Xeque Yassin, que se viria a tornar no Hamas, com um empurrão de Israel. Era interessante crescer um grupo religioso radical que fizesse frente à liderança laica e unificadora da OLP. Dividir para reinar.
O papel de Israel no nascimento do Hamas está mais do que documentado. O general Yitzhak Segev, governador militar em Gaza no início dos anos 1980, confirmou que ajudou a financiar o movimento islâmico como um “contrapeso” aos secularistas de esquerda da OLP, com orçamento dado pelo governo israelita. “O Hamas, para meu grande pesar, é uma criação de Israel”, disse, em 2009, Avner Cohen, um ex-funcionário de assuntos religiosos israelita que trabalhou em Gaza mais de duas décadas.
É provável que os políticos que então o fizeram já se tenham arrependido. Mas não os que hoje têm o poder. Deixaram claro há muito tempo que a única paz que aceitam é a que reduza os palestinianos a escravos ou refugiados distantes. Para isso, o Hamas é o único interlocutor útil. Por isso, quiseram fragilizar qualquer liderança com quem fosse possível dialogar. Como escreveu Clara Ferreira Alves, no melhor texto sobre a nova situação na imprensa portuguesa, "o país mais forte encarregou-se de destruir, prender e assassinar as prováveis lideranças palestinianas".
O segundo passo para a fragilização do poder político palestiniano, fundamental para compreender as cenas dantescas deste fim de semana, foi a divisão do território, alimentando o total isolamento e radicalização de Gaza, que Israel só desocupou para encerrar hermeticamente e ver definhar, transformando numa prisão que o Hamas mantém em estado de terror; e a transformação da inviável Cisjordânia num arquipélago de “bantustões”. Dividido, ninguém tem poder para liderar os palestinianos. Para a resistência e para a paz.
O Hamas quer impedir a existência do Estado israelita. Israel conseguiu matar qualquer sonho palestiniano que leve à existência de um Estado palestiniano viável. O Hamas quer extinguir o Estado israelita e nunca o conseguirá. O poder político israelita quer extinguir qualquer possibilidade de existência de um Estado palestiniano e já o conseguiu. O Hamas é causa e consequência desse objetivo planeado: fragilizar qualquer liderança palestiniana para não ter de negociar.
Tenho lido que o Hamas cometeu um erro porque este ataque deu força a um Netanyahu muito fragilizado pelos escândalos internos. Ainda que o dramatismo do momento una os israelitas e faça esquecer a forte contestação ao primeiro-ministro, duvido que o clamoroso falhanço de segurança, num dia tão especial, lhe venha a ser perdoado. Nada ficou melhor para Israel. O ataque a Gaza lida com a dificuldade dos reféns, a frente norte lidará com o Hezbollah e os palestinianos da Cisjordânica, diariamente humilhados, podem sentir-se vingados e engrossar o apoio ao grupo radical. Mas se este fosse “apenas” mais um momento de terror que se resolveria com uma feroz reação punitiva, não menos terrível e arbitrária, para multiplicar por muitos as vítimas palestinianas, como seria um erro, do ponto de vista amoral do Hamas, este ataque?
Hamas e Netanyahu são aliados naturais. O Hamas é necessário às forças israelitas mais radicais, que apoiam colonatos e a expulsão de palestinianos. Netanyahu é necessário ao Hamas, que vive do desespero para a sua política de terror e medo. Ambos enterraram bem fundo a já longínqua memória de Arafat e Rabin.
O problema é que o monstro que Israel alimentou pode crescer ainda mais. Como explicou a Clara, talvez os palestinianos estejam tão cansados de ser vítimas como os judeus estavam quando procuraram um lar seguro. E quando esse sentimento toma um povo todos os limites morais podem ser ultrapassados. Como Israel tem mostrado, aliás. Depois de décadas a destruir as lideranças moderadas para levar a Palestina a um beco sem saída, estão os dois juntos. O ocupado mais maltratado do que o ocupante, como sempre. Mas juntos na mesma viela.»
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