14.10.23

O dilema sobre Gaza e o "crime" de Bibi

 


«Concluída a primeira fase da guerra – enterrar os seus 1300 mortos –, os israelitas defrontam-se agora com o problema maior: o que fazer em Gaza? O Hamas visa provocar uma resposta tão mortífera quanto possível de Israel. E não só: "O Hamas faz tudo para atrair Israel para a ratoeira de uma operação terrestre", escreve Pierre Razoux, especialista francês de estratégia e de questões militares israelitas.

Desta vez, Israel debate-se com um desafio quase insolúvel: os reféns. Este tanto podem funcionar para os terroristas como uma preciosa moeda de troca ou como "escudos humanos". Mas a escala de violência ¬– e barbárie – do Hamas torna improvável qualquer negociação nesta matéria ou o êxito de mediações internacionais.

A par dos bombardeamentos, Israel estabeleceu um cerco hermético à Faixa de Gaza com o objectivo de asfixiar o Hamas. Mas atinge também a população civil e, sobretudo, não permite recuperar os reféns. De resto, o número de reféns e a sua dispersão dificultam a viabilidade de acções de comandos, o que não quer dizer que não sejam ensaiadas.

Os israelitas estão perante dilemas. É grande a pressão da opinião pública. Por outro lado, os militares temem que uma acção "moderada" seja entendida como fraqueza, não só pelo Hamas mas também pelo Hezbollah e pelo Irão, estimulando novos ataques.

Uma ocupação militar em grande escala, num território labiríntico onde o Hamas controla uma infinda rede de túneis, seria uma ratoeira para os militares israelitas que provavelmente sofreriam largas baixas. Como já disse, uma das óbvias razões dos ataques de 7 de Outubro é forçar Israel a exercer um grau de violência tão alto que o enfraqueça diplomaticamente e suscite uma equiparação moral com o Hamas.

Mas a questão política decisiva é outra: permite uma tal operação cortar os laços entre a população e o Hamas, que a governa ditatorialmente e a expõe a riscos perpétuos?

O Hamas tem ainda em mira duas outras frentes: fomentar revoltas em Jerusalém e na Cisjordânia, onde os colonos têm promovido, como protecção militar, verdadeiros progroms contra palestinianos. Outra ambição seria a abertura de uma segunda frente no Norte de Israel, envolvendo o Hezbollah no conflito. De momento não parece provável. Note-se que os EUA enviaram um porta-aviões para a zona de Chipre, a que se seguirá um outro: são uma força de dissuasão contra tentações do Hezbollah.

É cedo para perceber se o alargamento do Governo aos generais Benny Ganz e Gadi Eisenkat, líderes do principal partido de oposição e antigos comandantes supremos das Forças de Defesa de Israel, terá um papel determinante na condução da guerra. Há dúvidas, até porque lá permanecem os "pirómanos" de extrema-direita.

A doutrina Netanyahu

Hoje, Netanyahu fala em "destruir o Hamas". Será o "falcão dos falcões". Mas nem sempre foi assim. Não é possível entender esta guerra sem dissecar a política palestiniana de Bibi: fortalecer deliberadamente o Hamas e debilitar a Autoridade Palestiniana para sabotar qualquer negociação territorial com os palestinianos.

No termo desta guerra, quando tiver de prestar contas, é provável que os israelitas se venham a escandalizar mais como este "crime político" de Netanyahu do que com os casos de corrupção de que é acusado.

Explica o historiador israelita Dmitry Schumsky: "O objectivo dessa doutrina era perpetuar o conflito entre o Hamas em Gaza e a Autoridade Palestiniana (AP) na Cisjordânia. Isto preservaria a paralisia diplomática, afastando para sempre o ‘perigo’ de negociações com os palestinianos sobre a partilha da Palestina em dois Estados, com o argumento de que a AP não representava todos os palestinianos. Esta duvidosa estratégia permitiu transformar o Hamas de grupúsculo terrorista numa organização eficiente e num exército letal."

O general na reserva Gershon Hacochen, colaborador de Bibi, formulou assim a questão em 2019: "Temos de falar verdade. A estratégia de Netanyahu para evitar a opção dois Estados é fazer do Hamas um parceiro próximo. Abertamente, é um inimigo. Secretamente, é um aliado." É nestes termos que o Governo autorizou a passagem para Gaza de grandes financiamentos do Qatar.

Os serviços secretos israelitas estavam aparentemente a dormir. Um dia se saberá até que ponto. É frequente alguns deles dizerem ao primeiro-ministro o que este quer ouvir e o "chefe" também pode ouvir apenas aquilo que lhe interessa.

É fácil acusar os "espiões". Mas a doutrina oficial do Governo era que o Hamas não estava interessado em atacar Israel, e alguns militares pensavam que a sua dissuasão era mais do que suficiente. Tzachi Hanegby, conselheiro para a segurança de Bibi, garantiu, dias antes do 7 de Outubro, que nada havia a temer do lado do Hamas.

Mais grave: os ministros de extrema-direita, Itamar Ben-Gvir (Segurança) e Bezalel Smotrich (Finanças e Territórios), incentivaram acções violentas de colonos contra palestinianos na Cisjordânia. E como estes se poderiam revoltar, o Governo fez lá colocar três quartos dos efectivos militares, para proteger os colonos, base eleitoral da extrema-direita, retirando quase todas as forças do Sul, que vota maioritariamente à esquerda.

Denuncia o politólogo israelita Samy Cohen: "Os cidadãos israelitas que mais beneficiaram da solicitude do Governo foram os colonos da Cisjordânia, clientela privilegiada dos aliados extremistas de Netanyahu. Este deveria responder pela decisão do seu Governo de reforçar maciçamente a segurança das colónias, já ultraprotegidas, sem dar suficiente atenção à população do Sul, deixada com uma protecção irrisória."

A quem devem as vítimas pedir contas?»

Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Púbico, 13.10.2023
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