31.5.25

A canção do nosso futuro?

 




In the town where I was born
Lived a man who sailed the sea
And he told us of his life
In the land of submarines.


Compreender o discurso político, um valor em si

 


«Apercebi-me, através de publicações circuladas nas redes sociais, dos resultados eleitorais recentes na freguesia de Rabo de Peixe, concelho da Ribeira Grande, na ilha de São Miguel. O grande vencedor foi o Chega, que ali obteve mais de 38% dos votos. Mesmo sabendo-se que votaram apenas 1999 eleitores, com uma abstenção superior a 74% e havendo 3% de votos brancos e nulos. Portanto, em Rabo de Peixe, votaram no Chega 769 pessoas (601 na AD, 329 no PS).

Estive pela primeira vez em Rabo de Peixe talvez há 20 anos e recordo ainda os diversos cartazes de organizações internacionais que ali desenvolviam a sua atividade de cooperação ou financiavam projetos, num cenário que é habitual em África e nalguns espaços da América Latina e do Sudeste Asiático, mas que creio que seria único à época em Portugal, vinte anos depois da adesão à União Europeia. A pobreza era, de facto, evidente, densa, marcada.

Em Rabo de Peixe, 60% dos residentes têm uma escolaridade até ao 4.º ano. E um terço da população de Rabo de Peixe recebe Rendimento Social de Inserção. As transferências sociais têm vários efeitos, como é sabido. Um deles em Portugal é fazer descer a taxa de risco de pobreza dos 40% para os 16% (2023), ou seja, colocar-nos, nesse tema, entre o Luxemburgo e Malta, no contexto da União Europeia, e não, por exemplo, entre a Roménia e a Lituânia. Outro é permitirem a narrativa do Chega sobre redistribuição e subvenções sociais, epigrafando os “subsidiodependentes” como exemplos de abuso cívico e de fraqueza pessoal, o que torna a sua expressão eleitoral em Rabo de Peixe aparentemente contraditória.»

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O PS e a crise da esquerda

 


«O desastre eleitoral da esquerda tem como epicentro o PS, mas vai muito mais longe do que o PS. Por razões de oportunidade política e do efeito de rebanho na comunicação social, os argumentos explicativos da AD, desenvolvidos na campanha eleitoral – a culpa foi de Pedro Nuno Santos e da sua liderança “radical”, que derrubou o Governo e colocou o PS como súbdito da “geringonça” –, tornaram-se um discurso único que acabou também por infectar o PS. Na verdade, nada disto é um argumento sério, nem Pedro Nuno Santos é um “radical”, a palavra mais abastardada destas eleições, nem o PS derrubou o Governo, que se suicidou em público, nem o PS tem uma qualquer nostalgia da “geringonça”, tem é nostalgia do Costa da maioria absoluta, que tinha um discurso nas eleições em que a ganhou claramente anti-“geringonça”.

O domínio da comunicação social pela direita fez com que este tipo de “explicações” se tornasse dominante, sem muitas vezes a percepção de que estavam a reproduzir como análise aquilo que era o argumentário da AD. Não é novidade, já aconteceu antes esta submissão a um argumentário que se torna dogmático, perdendo a origem e a marca inicial, para se tornar uma explicação útil. Uma das razões do actual sucesso da direita na comunicação social vem de ter um comentário muito mais agressivo e grupal à direita, face ao “outro” lado, muito mais mole, ou ele próprio mais próximo do argumentário de direita por razões de fracção ou luta interna. Com o eficaz lobby do Observador de um lado e do outro António José Seguro, o que é que se esperava?

A ecologia comunicacional, sendo relevante pelo seu efeito potenciador, não é a razão principal da crise da esquerda, que está presente nos resultados do PS, mas também na quase desaparição do Bloco e na sobrevivência desesperada do PCP.

Na verdade, há factores comuns na crise da democracia na Europa e nos EUA e a crise nacional, mas, no caso português, há também factores endógenos a explicá-la. Do mesmo modo que a ascensão do Chega tem a ver com o crescimento da extrema-direita noutras democracias, esta ascensão tem também de ser interpretada junto com a crise da esquerda, como um processo que tem factores comuns. Esses factores têm a ver com a crise interior dos mecanismos da democracia, a erosão das mediações na sociedade, seja da família, seja da escola, seja de sindicatos e partidos, seja mesmo das igrejas institucionais. Essa erosão dissolve mecanismos institucionais de autoridade que funcionavam com a democracia, para mediar o conflito e dar uma maior qualidade à expressão de interesses e ideias num quadro menos antagonista, individualista e solitário, e ignorante agressivamente. As redes sociais, o deslumbramento tecnológico, a crise do silêncio e do tempo lento, a moldagem dos indivíduos numa aceleração da vida, com a dissolução do conflito social no ressentimento, são hoje característicos da ecologia social que se vive nas democracias ocidentais. Ou seja, o “admirável mundo novo” em que estamos a viver e cada vez mais a entrar é hostil às democracias não por fora, mas por dentro, e por isso a ascensão de políticas de força, com homens fortes, com domínio do pathos, e a liquidação do logos e do ethos, implantadas numa vida percebida como reality show, são factores de mudança particularmente destrutivos da “paz” democrática. Não é apenas social, é educativo no sentido lato e cultural. É uma Weltanschauung, pedindo desculpa por este termo alemão que tem o mérito de ser mais rigoroso.

Ou seja, é tudo mais grave do que se pensa, vai mais fundo do que se imagina, e processos como o Chega (cujo crescimento vem também do bloqueio do crescimento da AD) e a crise da esquerda são epifenómenos. Se formos para a “juventude”, que, como se sabe, em Portugal vai até aos 35 anos infantilizados, vemos em perfeita plenitude os efeitos de uma socialização feita à margem de todas as mediações, seja da escola, seja da família, resultando no antagonismo e radicalização, na ignorância agressiva.

A esquerda há muito tempo que não percebe o que se passa à sua volta, envolveu-se em guerras culturais que perdeu e maximizaram a radicalização, perdeu identidade, subordinou-se às ideias dominantes à direita no PS, castrou-se no PCP no apoio a guerras injustas, e diminuiu-se no Bloco face a sectores radicais urbanos, o que, uma vez passada a novidade e a complacência da comunicação social, o deixou na situação de o “rei vai nu”.

Os resultados eleitorais podem oscilar para um lado ou para o outro, mas o Chega está para ficar e bloquear a governação, o PS a caminhar para ser capturado como pajem da AD, o PCP a tornar-se uma antiguidade de culto, e o Bloco a ser o partido de “todes”. Por baixo de tudo, há um Deus ex machina que move os cordelinhos, que sabe bem de mais como manipular um mundo de fragilidades, de solidão, de ignorância, convencido de que é “moderno”. Há gente que ajuda ao que está acontecer, há gente que sabe o que está a acontecer, há gente que ganha com o que está a acontecer, por isso pode e deve ser combatida em nome da democracia.»


30.5.25

30 de Maio, o dia em que acabou o «Maio de 68»

 



Há 57 anos o general de Gaulle pôs fim a um mês verdadeiramente alucinante que a França viveu em 1968. Numa alocução difundida pela rádio, que ficou célebre, dissolveu a Assembleia Nacional e anunciou a realização de eleições antecipadas: contra o perigo do «comunismo totalitário», «La Réplubique n'abdiquera pas!»



Nessa mesma noite, uma gigantesca manifestação de apoio (500.000 pessoas?) invadiu os Campos Elíseos e marcou o desejo de «regresso à ordem», que os resultados das eleições, que tiveram lugar em 23 e 30 de Junho, confirmaram com uma vitória esmagadora da direita.

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Montenegro escolhe o PS e Gouveia e Melo parece imbatível

 


«Enquanto escrevo esta newsletter, não sou sobrevoada por seres humanos altamente civilizados (desculpem o ‘pastiche’ de um dos mais magníficos ensaios de George Orwell, O Leão e o Unicórnio: o socialismo e o génio inglês) mas Luís Montenegro acabou de ser indigitado primeiro-ministro, Gouveia e Melo anunciou a sua candidatura a Presidente da República e André Ventura foi "nomeado" líder da oposição.

Comecemos por Gouveia e Melo. Ao assistir ao seu discurso, lembrei-me de Cavaco Silva. Não do Cavaco Silva dos últimos dias da Presidência, não do Cavaco Silva que é a personagem mais odiada pela esquerda (mais do que Passos Coelho), mas do Cavaco Silva vencedor, que conseguiu duas maiorias absolutas e depois dois mandatos como Presidente da República.

Se as sondagens já davam vantagem a Gouveia e Melo, este discurso de arranque é suficientemente poderoso, naquilo que apela ao imaginário nacional, para arrastar os eleitores, incluindo os eleitores do Chega que elegeram agora 60 deputados e também os que votaram PS e PSD. Pode captar eleitores do Chega, mas distancia-se do partido quando afirma que "a democracia está em perigo".»

Ana Sá Lopes
Newsletter do Público, 29.05.2025

Está a ir tudo muito depressa

 


E termina «Linhas Vermelhas», onde Catarina Martins debatia com Cecília Meireles à 2ªf (e certamente também a versão da 4ªf com Miguel Prata Roque e Miguel Morgado).

Isto vai ser rápido

 


«Celebrávamos o 40º aniversário do 25 de Abril quando fui questionado por uma jornalista francesa, que queria saber por que não tínhamos extrema-direita. Tinham-lhe falado da memória da ditadura e da baixa taxa de imigração. Neguei-lhe a primeira, valorizei a segunda, mas disse que estava enganada: que podia ouvir a extrema-direita nos cafés e nos programas da manhã. Só não tinha sido ativada por um partido. Como seria possível ela não existir no último país da Europa Ocidental a descolonizar e num dos últimos a chegar à democracia? Nos últimos seis anos fizemos o caminho que outros levaram décadas a percorrer. E a extrema-direita pode chegar ao poder ou ficar em primeiro com a mesma velocidade extraordinária. Porque nos faltam os instrumentos que, noutros países, retardaram a sua progressão ou atenuaram o seu impacto.

Faltam-nos resistências institucionais. Temos uma comunicação social com pouca autorregulação, autonomia e capacidade financeira. Portugal tem das mais baixas taxas de leitura de jornais da Europa e dos menores apoios públicos à imprensa. A esmagadora maio¬ria informa-se pelas televisões generalistas e pelas redes sociais. Parte das instituições do Estado, marcadas pelo desinvestimento ou pela doença do corporativismo, já foram tomadas pelo populismo dominante, com destaque para a justiça, onde o Ministério Público tem sido o foco do caos. É impossível compreender o ambiente que levou o Chega a saltar de um para 60 deputados em apenas seis anos sem olhar para o clima criado por uma casta pouco sofisticada mas muito poderosa. Não é contra o PS ou contra o PSD, é contra “os políticos”. E temos uma sociedade civil estruturalmente anémica. A começar pelo sindicalismo, que o poder político fez tudo para fragilizar, com contributo de partidos que não o deixam respirar. Portugal tem das taxas de sindicalização mais baixas da Europa, tendo sido a segunda que mais caiu nas últimas quatro décadas em toda a OCDE.

Faltam-nos resistências culturais. Segundo o “European Social Survey”, 62% dos portugueses tinham no início da década crenças racistas: achavam que havia grupos étnicos ou raciais mais inteligentes ou mais trabalhadores ou que havia culturas mais civilizadas. Nunca fizemos, graças a mitos lusotropicalistas que alimentaram a ideia da colonização bondosa, este debate a sério. E foi neste pântano de silêncio que, quando a imigração explodiu, também tardiamente, nos vimos ao espelho. Segundo o Eurobarómetro, já temos mais autoconsciência do racismo — 61% aceitam que há discriminação em relação à cor da pele. Bastaria olhar para a elite política, económica e social e ver a pouca quantidade de não brancos para isso ser evidente. Mas, como somos ótimos a adiar debates, porque dividem, não são prioridade ou não interessam às “pessoas normais”, as fronteiras políticas são porosas e basta um pequeno aperto para até os socialistas começarem a repetir o vox populi sobre minorias e imigrantes. Não há linhas vermelhas, como na Alemanha. Porque, enquanto os alemães falam do seu passado, nós só o celebramos: demos novos mundos ao mundo e o resto não se pode recordar porque isso é “reescrever” a história.

Faltam-nos resistências políticas. Com uma situação económica ainda favorável, Montenegro passou um ano a distribuir o excedente e subiu três pontos quando o seu maior competidor afundou. O voto socialista saltou por cima da AD porque o primeiro-ministro não inspira confiança. Ébrios com o champanhe, a festa na São Caetano, à Lapa, é a da primeira classe do “Titanic”: não percebem que serão os seguintes. No PS acredita-se que a tradição ainda é o que era e que se se fizer de morto será premiado pela alternância, ignorando que há outra alternativa. Neste cenário, Ventura é o mais mobilizador dos três líderes. Carneiro até podia libertar votos à esquerda, mas BE e PCP ficaram em mínimos históricos e o Livre não chega, pela sua natureza, orgânica e liderança, ao voto popular de protesto. Não temos uma France Insoumise ou Die Linke, capaz de disputar o descontentamento à extrema-direita. Quando as coisas correrem mal, esse voto só terá um destino possível.

A extrema-direita chegou mais tarde, cresceu mais depressa e tem todas as condições para manter a trajetória acelerada. Aberta a comporta, o caudal não encontrará, por razões estruturais e circunstanciais, a resistência institucional, cultural e política que permitiu outros países retardarem o desastre. O terreno está todo aberto. Basta um escândalo judicial e uma crise económica e o poder será de Ventura. Quem julga que teremos quatro anos de paz ainda não percebeu o que está a acontecer.»


Gouveia e Melo

 


«Messias da Iglo»
Segundo Vieira Resurrected no Facebook.

29.5.25

O novo caudilho e os génios do PS

 

«Confirma-se o que se antecipava. No sistema político-partidário português haverá um antes e um depois do 18 de maio de 2024. Não se trata apenas de ter terminado o bipartidarismo e passarmos a um cenário tripartido. Desde esta quarta-feira, com a contagem dos votos da emigração, o Chega, um partido da direita radical populista (a designação dos cientistas políticos) ou de extrema-direita (a definição das pessoas comuns), passa a ser o principal partido de Oposição, algo nunca visto na democracia portuguesa e que, na verdade, ninguém previa.

Recordemos que, há seis anos, valia uns escassos 68 mil votos (1,3%) e que o único deputado era André Ventura. Hoje são um milhão e quatrocentos mil os que votam num caudilho que afirma na televisão, com ar compungido, que corre o risco de ser assassinado por ciganos e que, quando sofreu o célebre refluxo esofágico, julgava ter sido envenenado. São tantos quantos os que confiaram o seu voto ao PS, um dos partidos fundadores da nossa democracia liberal, o de Mário Soares, de Jorge Sampaio ou António Guterres.»

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José Luís Carneiro

 


Esta luminária afirmou hoje isto. Como se todos os partidos não tivessem perdido votos para eleição de mais deputados. (Resultados totais: o PS teve mais 4313 votos do que o Chega…)

O PS que se cuide ao eleger este futuro(?) SG ou o trambolhão será maior ainda.


Esta é a noite densa de chacais

 


O voto na emigração e a realidade mediada – uma hipótese

 


«Comecemos por esclarecer a perplexidade de muitos: como é que emigrantes votam num partido que faz campanha agressiva contra a imigração? O espanto resulta de uma ingenuidade bondosa: a maioria vota a pensar nos seus interesses, não com base num sentimento de justiça ou reciprocidade. Os imigrantes não se identificam com os outros imigrantes, mas com o seu próprio problema. Depois arranjam critérios para se excluírem do "problema" geral: são europeus e cristãos, chegaram há mais tempo, integraram-se, trabalham. Ao contrário dos outros, claro.

A falta de empatia com quem vive o mesmo drama que viveram é natural: os imigrantes são os que se sentem mais ameaçados pela concorrência de outros imigrantes. São os que lhe estão mais próximos na escada social de um país. É, por isso, muito comum votarem em partidos que aparentemente os combatem.

No caso dos resultados dos círculos da emigração, que deram uma vitória ao Chega nos dois círculos (com empate em número de deputados com a AD), o voto é, no entanto, para o parlamento do país de origem.

Fui, há um ano, a convite do maior sindicato suíço, falar com emigrantes (portugueses e não só) sobre o 25 de Abril (a conversa foi a 26), poucos dias depois das eleições que revelaram o Chega como maior partido português no círculo da Europa. A Suíça foi determinante para esse resultado. Tudo o que me explicaram foi por interpostas pessoas, porque estes sindicalizados não eram eleitores do Chega. E não ficaram claras as razões do resultado especialmente impressionante naquele país. Da influência de um empregador a queixas muito específicas, tudo me chegou ao ouvido. Apesar de esperar estudos mais aprofundados, nada me pareceu verosímil para uma tendência que parecia transversal na emigração portuguesa, na Europa e fora dela.

Se é verdade que o voto da emigração mais recente pode ser determinado pela situação no país (precisaria de saber o seu peso relativo no voto), cuja leitura pode ser mais severa por parte dos que se viram obrigados a partir, isso não acontece com as comunidades instaladas, que, mantendo uma relação com a realidade portuguesa, não sofrem boa parte dos problemas que temos dado como justificação para o crescimento do Chega.

Os emigrantes na Suíça ou no Brasil não vivem a falta de habitação, não têm contacto com o crescimento da imigração e não se confrontam com os efeitos da pressão sobre serviços públicos em território nacional.

Tirando a parte que emigrou há menos tempo, nada disto os afeta diretamente. E, no entanto, o seu voto de protesto foi ainda mais significativo do que no território nacional. O contacto mediado com esta realidade parece ter, portanto, ainda mais impacto do que o direto.

Só que esse contacto há de ser ainda menos mediado pela comunicação social do que no país. Apesar de muitos verem televisões nacionais ou consultarem sites de notícias, arrisco-me a dizer que a utilização das redes como forma preferencial de informação será ainda mais intensa. E a distância pode tornar essa experiência ainda mais imersiva do que a de quem, apesar de tudo, tem contacto direto e permanente com o que se passa no país. Quando houve tumultos em Lisboa, os meus vizinhos alentejanos perguntavam-me se não tinha receio de ir à cidade, imaginando toda a capital em chamas. Os mitos que se espalham, entre os emigrantes, sobre os benefícios dos imigrantes que chegam a Portugal, têm um efeito ainda mais poderoso junto de quem teve de partir.

Não estou a diminuir as dezenas de razões que ouvi na Suíça, há um ano, de quem conhece a realidade da emigração. Estou a sublinhar, como hipótese plausível, que a forma como nos informamos, debatemos e nos organizamos é determinante para o voto. Que não basta perguntar de que se queixam as pessoas. Precisamos de saber como lhes surge a realidade. Não é por acaso que o crescimento da extrema-direita tem coincidido com a preponderância desta forma de nos informarmos.

Soa mal dar esta explicação, porque todos se esforçam para procurar uma forma de identificação empática com este voto, tentando recuperá-lo para a democracia. Mas, assumindo que há muitas razões para chegarmos a este ponto, seria bom não ignorarmos, para ficarmos bem no retrato, um dos fatores mais distintivos deste tempo. Para não continuarmos a bater em portas erradas. E para não continuarmos a adiar a regulação das redes sociais, pressionados pelos mesmos que, chegados ao poder, esmagam a liberdade de expressão dos outros.»


Líder da oposição?

 

Não existe. Ventura não passou a ser líder de TODA a oposição que tem muitos partidos. É apenas líder do partido da oposição com mais deputados, o que é totalmente diferente.

28.5.25

Chá ou café?

 


Serviço de chá e café 'Brown Sherman', de prata e esmalte cloisonné com marfim. Museu de Belas Artes, Houston, cerca de 1900-1902.
Sanju Saku.

Daqui.

Os construtores do caos

 


«Não foi um acaso arbitrário ou aleatório que deu ao partido Chega o lugar de segunda força política do nosso sistema institucional. Como não foi nenhum lançar de dados que pôs a chefiar a pátria de Lincoln e de Roosevelt um desbocado promotor imobiliário de extrema-direita, que tem por objetivo destruir os princípios de liberdade e de equilíbrio de poderes instituídos nos Estados Unidos, que estão cada vez mais perto de serem a “República imperial” que neles via Raymond Aron, mas mais semelhantes ao Império de Nero ou de Calígula, do que do Império de Júlio César e de Marco Aurélio. Não é por acaso que se movem as montanhas e caem os céus. O mundo está no caos; alguma coisa vai nascer.

Não foi o bater de asas de uma borboleta na China: foi uma consequência de muitos atos de todos nós, de muitas decisões tidas como sábias, de uma cada vez maior indiferença aos outros, de um individualismo egoísta a justificar-se com uma mal entendida liberdade. Quanto tempo passou desde o axioma da sra. Thatcher “There is not such a thing as a society”? Quanto tempo desde que Milton Friedman decretou que “a única responsabilidade social de uma empresa é dar lucros”? Quanto tempo correu desde que definitivamente tudo o que não fosse concebido para dar lucro perdeu qualquer razão de ser?

Quanto tempo passou desde que se decretou que a única salvação para a nossa economia era empobrecermos? Quanto tempo se passou desde que foi dito em público que os maiores de 70 anos não deveriam ter assistência médica prestada com dinheiros públicos?»

Na íntegra AQUI.

28.05.1926 – Um dia decisivo

 


Recordo a data quase todos os anos, não só para preservar a memória, mas porque ela deixou marcas – talvez mais visíveis hoje do que há alguns anos.

Em 1926, um dia terrível e decisivo na nossa História, marcou o fim da 1ª República e esteve na origem do Estado Novo. Todos os anos havia comemorações, mas duas ficaram na memória.

Foi num outro 28 de Maio, mais concretamente em 1936, no 10º aniversário da «Revolução Nacional», que Salazar proferiu um discurso que viria a ficar tristemente célebre: «Não discutimos a pátria...»





Ainda num outro aniversário – no 40º, em 1966 – o chefe do governo, então com 77 anos, viajou pela primeira vez de avião até ao Porto (entre os outros passageiros, acompanhado pela governanta) para assistir às celebrações que tiveram lugar em Braga.

Fez então um discurso que ficou célebre sobretudo pela expectativa que criou e que deixou o país suspenso - lembro-me como se fosse hoje!. Vale a pena ver a partir do minuto 30:44:

«Neste lindo dia de Maio, na velha cidade de Braga (…), ao celebrar-se o 40º ano do 28 de Maio (…), eis um belo momento para pôr ponto nos trinta e oito anos que levo feitos de amargurado Governo.» Depois de uma interrupção provocada por muitos gritos de protesto da assistência, continuou: «Só não me permito a mim próprio nem o gesto nem o propósito, porque, no estado de desvairo em que se encontra o mundo, tal acto seria tido como seguro sinal de alteração da política seguida em defesa da integridade pátria e arriscar-se-ia a prejudicar a situação definitivamente conquistada além-mar pelos muito milhares de heróis anónimos que ali se batem. É então mais que justo que os recordemos e saudemos daqui».





E ficou – até que uma cadeira cumpriu a sua missão histórica.
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Nem tudo cabe no centro

 


«Nos fins do costismo, o Partido Socialista governou pelo centro. Não por convicção ideológica, mas por cálculo político. António Costa percebeu em 2019 que, num país atravessado por memórias de austeridade e fadiga institucional, o centro era o espaço de menor atrito e maior retorno. A esquerda à sua esquerda fragmentava-se em disputas de pureza. A esquerda à sua esquerda fragmentava-se em micro-identidades e conflitos simbólicos. E o PS ocupava o intervalo para o gerir. O centro, naquele momento, bastava.

Mas o centro não é uma posição. É uma tensão. Vive do equilíbrio entre forças que se opõem. Quando uma dessas forças colapsa ou outra cresce sem contenção, o centro desfaz-se. De espaço de compromisso, transforma-se em zona de erosão. E quem ali se instala por demasiado tempo acaba por ficar sem estrutura. Fica a meio de tudo, exposto a todos.

Luís Montenegro seguiu-lhe o guião. Herdou um centro já gasto por anos de tecnocracia e contenção. E num Parlamento fragmentado, preferiu proteger-se do que romper. Prometeu estabilidade. Prometeu responsabilidade. Prometeu, no fundo, o direito ao sossego. Mas o problema de herdar o centro em tempo de radicalização é este: o centro já não tem muros. É campo aberto. E o vento sopra de fora.

O primeiro ano da AD foi um exercício de contenção formal. Evitou alianças diretas com o Chega, geriu escândalos, cumpriu dossiês deixados pelo governo anterior. E isso, num contexto europeu de degradação democrática, já não é pouco. Mas agora, com a revisão constitucional à vista, o ensaio acabou. A AD terá, inevitavelmente, de dizer ao que vem.

Montenegro diz querer discutir com todos. Reforçou-o várias vezes, em tom quase litúrgico. Todos. Todos. Todos. O eco é claro, talvez até ensaiado. Remete para Francisco, o Papa que fala de inclusão com autoridade moral. Mas também é Francisco quem diz que a prisão perpétua é uma pena de morte disfarçada. Um fim sem voz. Um cancelamento do humano.

As frases são bonitas. Mas trazem escolhas. Quando os direitos estão em causa, não se pode estar de todos os lados. Há lados a que se pertence. E lados que se recusam.

No fundo, a questão não é jurídica. É política. A quem responde o centro, quando pressionado? A quem cede quando já não há equilíbrio?

Karl Polanyi escreveu, em 1944, que o fascismo não nasceu de um excesso de autoritarismo, mas da ausência de proteção. Quando o sistema falha, quando os pobres aumentam, quando a classe média sufoca, as pessoas procuram amparo. Se o Estado não responde, surgem os discursos que prometem pertença — mesmo que o façam à custa da exclusão.

O Chega nasceu aí. No lugar do que faltava. Não oferece políticas públicas. Oferece pertença. Um "nós" contra os outros. E a sua função política pauta-se por deslocar o eixo do possível. Redefinir o centro não como espaço de compromisso, mas como zona de assimilação. Ventura não precisa de estar no Governo para ser eficaz. Basta-lhe estar no campo de força que redefine o debate. E basta-lhe que os outros aceitem discutir nos seus termos para vencer sem maioria.

O centro, se não impõe limites, deixa de ser centro. Passa a ser zona de assimilação. Ventura sabe disso. Montenegro terá de decidir se também sabe.

A AD arrisca ser engolida não por coligação, mas por contágio. Se aceitar discutir medidas iliberais como se fossem legítimas, legitima a ideia de que tudo está em aberto. Mesmo o que não devia estar. Mesmo o que deveria ser cláusula de civilização.

Mark Lilla chamou a isso o extremo-centro. Um espaço onde os partidos moderados, com medo de perder relevância, começam a parecer-se com aquilo que dizem combater. A técnica cede ao instinto. A prudência transforma-se em pânico com verniz. E a política, nesse estado, deixa de ser horizonte. Passa a ser reflexo.

A AD diz que quer proteger a Constituição. Mas protegê-la não é conservá-la em vitrina. É reconhecer os limites que a fundam. Não basta manter as formas. É preciso afirmar o conteúdo. E o conteúdo de uma Constituição vive dos princípios que não se renegociam.

O Chega não quer governar. Quer escrever, deixar inscrita, no texto, a sua visão do mundo. Mesmo que depois desapareça, quer permanecer na forma como o Estado se organiza e pune. Quer tornar perpétuo o que devia ser passageiro. O ressentimento. A raiva. A urgência de castigo.

A AD pode seguir esse caminho. Ou pode, ao menos por um instante, fazer outra pergunta. Não o que é possível negociar. Mas o que deve, à partida, ficar fora da mesa.

Porque a democracia não se mede apenas pelo que aceita. Mede-se também pelas fronteiras que impõe. E nem sempre ceder é evidente. Às vezes, cede-se apenas por começar a perguntar se vale a pena resistir. Há fronteiras que não se ultrapassam — nem em nome da estabilidade.

Nem em nome de “todos”.»


27.5.25

Mariana Vieira da Silva e o PS

 



Isto é gozar com quem é imigrante

 

«Os níveis de percepção de que a imigração está descontrolada, de que os ciganos são uns malfeitores e de que a corrupção aumentou e é uma prática comum entre as instituições públicas entranharam-se até ao tutano e talvez ajudem a explicar, entre outros factores, como é que um partido passou de um para 58 deputados no espaço de seis anos. O costume. Como diria Laurie Anderson, a linguagem é um vírus e este expande-se mais rapidamente do que o sarampo.

A atitude do Governo da AD só tem contribuído para inflamar este discurso anti-imigração, quando se intromete de forma inadequada nas operações policiais na Rua do Benformoso, em Lisboa, ou quando comunica sobre o tema e o faz sempre numa perspectiva negativa. O ministro da Presidência, António Leitão Amaro, parece ter uma especial predilecção em falar no crescente número de indeferimentos de pedidos de autorização de residência em Portugal — que são cerca de 30 mil —, que darão origem a notificações de abandono voluntário, como se estivesse a falar da erradicação de um perigo. Não é assim que o PSD se vai apropriar de um eleitorado que tem preferido votar Chega.

O PSD pode esvaziar o tema da imigração se for lesto e competente a regularizar a situação de quem deve ser regularizado, se se empenhar na integração humana e sincera de quem foi autorizado a permanecer, a notificar quem não tem condições para o ser, a combater as redes de tráfico de pessoas. No fundo, o tema da imigração pode deixar de gerar a percepção que gera se o futuro Governo o abordar como prioridade política e administrativa. Se estiver mais interessado nos ganhos sociais do que no campeonato das percepções.»


Alexandra Lucas Coelho sobre Gaza

 


Resgatar a esperança

 


«"Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária."

Este é o primeiro artigo da Constituição da República Portuguesa. Não foi escrito por acaso, nem é fruto de entusiasmos revolucionários. É um compromisso sobre o tipo de sociedade que queremos construir. É também a base necessária para começar a resgatar a esperança.

Uma parte crescente da população portuguesa sente-se esquecida, maltratada e impotente. Quando é assim, a democracia fica em risco. Nas últimas eleições legislativas, mais de um 1,3 milhões de pessoas votaram num partido que faz da agressividade, da falsificação e da exploração do ressentimento a sua principal arma política. Para travar essa deriva, é preciso compreender o que está a acontecer e agir em conformidade.

O primeiro passo para resgatar a esperança é desmontar as falsidades que alimentam o ressentimento. Para isso, importa começar pelo princípio: as últimas cinco décadas de democracia trouxeram conquistas extraordinárias. Quem afirma o contrário ou está desinformado ou quer enganar.

Em 1974, mais de metade da população portuguesa era analfabeta ou tinha apenas a instrução primária. Hoje, mais de 90% dos jovens completam o ensino secundário e Portugal conta com mais de meio milhão de diplomados do ensino superior. A mortalidade infantil era de 38‰, hoje é de 3‰. Em 1974, a esperança média de vida após os 65 anos era de 13 anos; hoje, em média, quem atinge aquela idade pode esperar viver mais duas décadas. O risco de pobreza entre os idosos caiu de 35% para 20% só nos últimos 20 anos. Com todas as suas insuficiências, os sistemas públicos de educação, saúde e protecção social apoiaram transformações notáveis em todos estes sectores.

O acesso a água canalizada e saneamento básico universalizou-se. A rede de estradas e auto-estradas, de comunicações e de equipamentos culturais retirou do isolamento milhares de localidades em todo o país. A ciência portuguesa é hoje reconhecida internacionalmente, com centros de investigação de excelência e uma produção científica que passou de pouco mais de 300 artigos por ano em 1981 para cerca 30 mil na actualidade. Estes progressos não se deram por acaso. Devem-se à democracia, ao investimento público, à luta de muitos e à solidariedade nacional.

Mas recuperar a confiança perdida não passa apenas por reconhecer tudo o que a democracia e os valores da Constituição alcançaram. Passa por reconhecer o que não está a funcionar.

O problema da habitação atingiu proporções dramáticas. O preço médio do metro quadrado de habitação duplicou em menos de uma década, muito acima da evolução dos salários. Jovens e famílias inteiras são expulsos dos centros urbanos ou condenados a rendas incomportáveis. Perante o envelhecimento da população e sujeito a uma suborçamentação crónica, o Serviço Nacional de Saúde enfrenta dificuldades estruturais: listas de espera persistentes, falta de profissionais e uma crescente procura que não é acompanhada por recursos. O interior do país continua a perder população e serviços, acentuando desigualdades territoriais. Nas periferias das grandes cidades acumulam-se problemas de mobilidade, de acesso a serviços e de exclusão social. Os baixos salários persistem, apesar do aumento do salário mínimo. Ignorar estas realidades é tão irresponsável como negar os avanços das últimas décadas.

O terceiro passo para resgatar a esperança é afirmar com clareza que a resposta às fragilidades do país não pode passar por cortar direitos sociais, desproteger quem trabalha ou virar os mais desfavorecidos uns contra os outros.

O que precisamos é de mudar o modelo de desenvolvimento. É insustentável continuar a estimular sectores de actividade assentes em grandes volumes de mão-de-obra desqualificada, precária e mal paga, como temos feito nos últimos anos. Não podemos aceitar que existam empresas em Portugal a operar sob condições que vigoram em economias subdesenvolvidos. Seja nacional ou estrangeiro, quem vive do seu trabalho deve gozar dos mesmos direitos (condições laborais, salários, protecção social) e cumprir os mesmos deveres (pagamento de impostos e descontos para a segurança social). Num mundo onde as migrações internacionais são um fenómeno central (Portugal não é excepção, nem caso extremo), não precisamos apenas de gerir melhor as entradas: precisamos de mais e melhores políticas de integração, que evitem guetos e divisões artificiais entre pessoas.

É necessário travar a especulação imobiliária, alargar a oferta de habitação pública e cooperativa, impor limites ao alojamento local e ao uso especulativo de edifícios. Acima de tudo, precisamos de voltar a investir nos serviços públicos. A confiança das pessoas constrói-se com escolas de qualidade, centros de saúde acessíveis, transportes fiáveis, creches suficientes, espaços públicos seguros e políticas de proximidade.

Resgatar a esperança significa, por isso, valorizar o que fomos capazes de fazer, assumir o que precisa de ser corrigido e apresentar soluções concretas, justas e mobilizadoras. Não é tarefa para messias ou para um ciclo eleitoral. É um esforço colectivo, que exige escuta, humildade e persistência.

Quem hoje se deixa seduzir por promessas extremistas fá-lo, muitas vezes, não por convicção, mas por desespero. O nosso dever é mostrar que há outro caminho. Um caminho que não desiste das pessoas. Que não escolhe bodes expiatórios. Que não promete atalhos fáceis, mas constrói o futuro com base na verdade, na solidariedade e na dignidade.»


26.5.25

Doces?


 

Caixa de doces, cerca de 1900.
Émile Gallé.


Daqui.

Catarina Martins

 


Excerto de entrevista CNN, 24.05.2025

A divisão de cargos no aparelho de Estado que se segue

 

«Ao longo dos anos, PS e PSD sempre dividiram entre si, com mais ou menos dificuldade, os cargos de topo disponíveis em certos organismos do Estado que têm de ser eleitos no Parlamento por maioria de dois terços. São os chamados órgãos externos: Tribunal Constitucional, Conselho Económico Social, conselhos superiores de Defesa Nacional, de Informações e de Segurança Interna, Conselho Superior da Magistratura e do Ministério Público, Entidade Reguladora para a Comunicação Social, só para dar alguns exemplos (podiam ser muitos outros).

Como até aqui os dois partidos sempre foram maioritários, as nomeações eram essencialmente divididas entre ambos. O sistema funcionava através de acordos (usava-se muito a ideia do acordo de cavalheiros) que garantiam a aprovação dos candidatos propostos. Nem sempre foi fácil e muitas vezes foi preciso repetir as votações. (…)

Esta descontinuidade não se compara com o que está prestes a acontecer agora. Ainda não sabemos em que condições será eleito o futuro Presidente do Parlamento nem que cedências será preciso fazer. O que sabemos é simples: acordos tripartidos para a escolha de representantes para órgãos externos relevantes são uma excepção e nunca houve um cenário com dois segundos partidos em empate técnico. Que peso caberá ao Chega e ao PS nesta equação em que o Bloco Central não basta?»


Uma vitória das mulheres iranianas

 


A revisão constitucional e a atração pelo abismo

 


«Se a direita conseguir dois terços, até poderá fazer a primeira revisão constitucional sem o PS. Não na parte política, onde o acordo do Chega seria escandaloso, mas no papel do Estado Social. E isso pode corresponder a um autêntico abalo constitucional. Nestas eleições, está mais em jogo do que parece”.

Foi assim que acabei o meu texto a dois dias das eleições. Bastaram três para o que se dizia serem fantasmas aparecerem. Da forma pouco clara a que este tempo, dominado por caciques locais alcandorados à liderança nacional, nos habituou. A Iniciativa Liberal avança, o Chega aplaude, o governo promete o estilo “todos ao molho e fé em Deus”.

Ao abrir o processo constituinte para prova de vida quando os resultados a mantiveram inútil, a Iniciativa Liberal faz um enorme favor ao Chega: enquanto a extrema-direita vai faturando, vamos passar um ano a discutir a prisão perpétua e a castração química.

A conversa da Iniciativa Liberal começou com um fetiche: o preâmbulo onde se fala de “socialismo”. Um absurdo. Os preâmbulos não são letra da Constituição. Mas o melhor é lerem o que está em causa: “A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno”. Ou seja, é uma afirmação dos constituintes que só poderia ser alterada pelos próprios. Não é possível mudar o que “a Assembleia Constituinte afirma”, por outros que não ela. O valor é meramente histórico, vinculando apenas os seus signatários.

Simbolismos à parte, há coisas sérias. E o mais sério é a única parte em que é certo haver convergência à direita: o Estado Social. Trata-se de ressuscitar o espírito da famosa revisão constitucional que Passos Coelho foi obrigado a meter na gaveta. Quando nos dizem que falar da privatização do Serviço Nacional de Saúde e da Segurança Social é agitar fantasmas, estão a ser sonsos. Nunca ninguém, nem mesmo a IL, escreverá “privatização”, preto no branco. Isso faz-se por fases, retirando, como gostam de dizer, o Estado do caminho.

Uma das funções da IL e do aparato de propaganda que lhe é próximo (+Liberdade e Observador, dois projetos dependentes do mecenato ideológico) é desequilibrar o debate político para, entre muitas outras coisas, libertar para os privados os dois melhores nacos do Estado: Segurança Social, que hoje tem uns apetitosos 40 mil milhões no seu Fundo da Estabilização, e Serviço Nacional de Saúde. São dois setores fundamentais para o sistema financeiro improdutivo, que procura negócios protegidos da concorrência externa, que garantam acesso a capital ou que tenham uma procura inelástica.

Não estamos a falar de pequenos acertos, mas da estrutura do Estado Social, uma das traves-mestras do nosso regime. Seria, depois de 1982, a mais profunda mudança do regime constitucional. E a primeira revisão a dispensar PS ou PSD. Existindo os dois terços, não está, como é evidente, em causa a legitimidade formal desta revisão. Talvez esteja em causa a legitimidade política, porque a AD nunca falou, na campanha, de nada tão radical. Mas o meu ponto é outro.

Como disse Fernando Negrão, que apelou para que o PSD matasse imediatamente o assunto, e reforçou Carlos Coelho, esta revisão, feita à margem do PS e com um partido de extrema-direita, abriria mais uma fratura política num dos momentos mais sensíveis da nossa democracia constitucional.

Imagine-se a situação inversa, se essa possibilidade tivesse alguma vez existido. Que acusações iradas de irresponsabilidade e frentismo radical seriam feitas ao PS? Independentemente da legitimidade formal, mudar elementos estruturantes da Constituição (como é a natureza do nosso Estado Social) sem o Partido Socialista só pode ser visto como um corte de regime e deve ser tratado como tal em todas as suas consequências.

As afirmações de vários dirigentes do PSD só nos podem deixar mais alarmados. Não queriam este processo, mas, a existir, será medida a medida. Fazer uma revisão mais do que cirúrgica, medida a medida, é ainda pior do que a fazer negociada à direita. É retirar toda a coerência ao nosso regime. E torna, como toda esta forma sortida de procurar apoios e chantagear a oposição, o “não é não” num mero formalismo. Na realidade, se há revisão constitucional com o Chega, o “não é não” é igual para o Chega e para o PS.

Seja qual for o modelo, qualquer revisão que, em temas estruturantes, exclua o PS é incoerente com o apelo para que ele garanta a governabilidade. Se a AD conta com o Chega para um processo tão importante como uma revisão constitucional, só pode depender do Chega para o resto.

Dirão: no estado em que o Partido Socialista se encontra, pouco ou nada pode fazer, porque desaparece nas eleições seguintes. Isto é meia verdade. Falta a outra: à próxima crise já não é o PS que é comido pelo Chega. É a AD. O PS alimentou o monstro que o devorou. A AD continua a fazer o mesmo, não percebendo que é a próxima. Haverá um momento em que estará tão refém da necessidade de estabilidade como o PS. Seria bom que não dinamitasse as pontes de que vai precisar. É nos momentos de maior soberba que se comentem os erros mais trágicos.»


25.5.25

Tudo redondo

 


Vasos redondos com motivos florais, final do século XIX/início do século XX.
Designer: François-Théodore Legras, Mont Joye, França.

Daqui.

José Mário Branco

 


Seriam 83.

Dia de África

 



“Estou farto!”

 


«A SIC fez um vox populi em Sintra para perceber como o Chega venceu o segundo concelho mais populoso do país. A resposta de quase todos os inquiridos foi: “Estou farto!” Depois desfiavam queixas que, tirando a imigração e a habitação, são de sempre e poderiam levar ao voto em qualquer outro partido. Sabemos que este é o tempo da deceção. Nunca se prometeu tanto para esperar tão pouco. E nunca os instrumentos de revolta foram tão atomizados. As pessoas têm a sensação justificada de não ter poder na mudança. Por isso usei, há uns meses, a imagem de abanar uma árvore que se sabe que não cairá. Ainda assim, foi mais gente às urnas só para votar num partido que sabem (as pessoas não são parvas) ser ausente de proposta.

Da desigualdade à precariedade e assustadora rapidez de tudo, há muitas razões para explicar um fenómeno global que acelerou depois de uma crise financeira paga pelos de baixo e cresceu com a pandemia. E há, claro, o contexto nacional, em que o debate doméstico se tem concentrado e onde destaco a substituição da saudável polarização programática pelo confronto de personalidades, que só poderia favorecer o rei do espetáculo. Mas, no crescimento da extrema-direita, na consolidação de três blocos políticos e na derrocada do centro-esquerda, apenas chegámos com atraso a uma Europa onde só seis países (em 27) têm a direita abaixo dos 50%.

É verdade que a imigração teve nestas eleições, como em muitas na Europa, um peso extraordinário. Ao lhe dar centralidade política, o Governo contribuiu para a sua centralidade eleitoral, mas é muito mais do que isso. Esta é a transformação demográfica mais significativa desde a vinda dos “retornados”, culturalmente mais próximos e em menor número. Por isso temos de o discutir. Só que o debate está armadilhado. Independentemente do falhanço do SEF, da AIMA ou da manifestação de interesses, a circulação aumentou exponencialmente em todo o mundo e políticas mais ou menos restritivas não têm conseguido controlar mais do que a taxa de regularização. Os imigrantes entram na mesma. A não ser, claro, que aceitemos viver num Estado policial. A esquerda varia entre o discurso dos direitos humanos, moralmente correto mas politicamente inútil, e o utilitarista, que, apesar de ser indiscutível que a economia colapsava sem imigrantes, se confunde com a lógica neoliberal. O debate necessário, sobre o reforço da coesão social para conseguir enfrentar um fenómeno imparável, é demasiado complexo e pouco mobilizador. Usando uma frase citada por Paul Mason em “How to Stop Fascism”: “A extrema-direita fala com as entranhas, a esquerda com o Excel.” O imigrante ou o cigano são reconhecíveis enquanto o patrão já não está na fábrica, está numa offshore e não tem rosto. E o rico que o Bloco quer taxar é invisível, parece-se com alguém próximo que não é assim tão rico ou podíamos ser nós se o “sistema” deixasse.

Parece a conversa da “culpa é do TikTok” e até ajuda a desculpabilizar uma comunicação so¬cial que passou dois dias atrás de um político com azia e talento para o drama, mas não devemos desprezar o poder imersivo das redes sociais. Há uns dias, um vizinho e amigo que vive parte do tempo numa zona com muita imigração do subcontinente indiano falava-me da “invasão”. Quis saber do que se queixava. Teve problemas com algum? Nunca. São concorrência no seu emprego, baseado na agricultura assalariada e em biscates? Sobra trabalho para falta de mão de obra. A dada altura da conversa falou-me de casas e direitos que recebiam e faltavam aos portugueses socorrendo-se de um vídeo que viu. Alguém que vive ao lado de imigrantes foi mais impactado pelas redes do que pela experiência pessoal, que se fica por ter assistido a alguns conflitos. Estou a dizer que não há problemas? Há e a tendência será para haver mais, porque a circulação vai aumentar. Aquele vídeo teria um impacto menor numa zona sem imigrantes. O que as redes determinam é o estado de espírito com que as pessoas olham para problemas reais. Uma pessoa que fez campanha disse-me que passou dias a desmentir, nos mercados, falsos recibos da Segurança Social que lhe mostravam no telemóvel. A produção de desinformação tem uma escala que a democracia nunca conheceu.

Isto não serve para ignorar as razões para o desconforto do “estou farto” que se expressa no voto. Serve para sabermos dos limites da eficácia das nossas respostas. O crescimento da extrema-direita não vem das redes. A dificuldade em combater as doenças de que ela é sintoma sim. Há uma solução? O regresso à política de proximidade, local, de contacto físico e empático. Mas essa revolução, que acredito que acontecerá, ainda vem longe.»