«O desastre eleitoral da esquerda tem como epicentro o PS, mas vai muito mais longe do que o PS. Por razões de oportunidade política e do efeito de rebanho na comunicação social, os argumentos explicativos da AD, desenvolvidos na campanha eleitoral – a culpa foi de Pedro Nuno Santos e da sua liderança “radical”, que derrubou o Governo e colocou o PS como súbdito da “geringonça” –, tornaram-se um discurso único que acabou também por infectar o PS. Na verdade, nada disto é um argumento sério, nem Pedro Nuno Santos é um “radical”, a palavra mais abastardada destas eleições, nem o PS derrubou o Governo, que se suicidou em público, nem o PS tem uma qualquer nostalgia da “geringonça”, tem é nostalgia do Costa da maioria absoluta, que tinha um discurso nas eleições em que a ganhou claramente anti-“geringonça”.
O domínio da comunicação social pela direita fez com que este tipo de “explicações” se tornasse dominante, sem muitas vezes a percepção de que estavam a reproduzir como análise aquilo que era o argumentário da AD. Não é novidade, já aconteceu antes esta submissão a um argumentário que se torna dogmático, perdendo a origem e a marca inicial, para se tornar uma explicação útil. Uma das razões do actual sucesso da direita na comunicação social vem de ter um comentário muito mais agressivo e grupal à direita, face ao “outro” lado, muito mais mole, ou ele próprio mais próximo do argumentário de direita por razões de fracção ou luta interna. Com o eficaz lobby do Observador de um lado e do outro António José Seguro, o que é que se esperava?
A ecologia comunicacional, sendo relevante pelo seu efeito potenciador, não é a razão principal da crise da esquerda, que está presente nos resultados do PS, mas também na quase desaparição do Bloco e na sobrevivência desesperada do PCP.
Na verdade, há factores comuns na crise da democracia na Europa e nos EUA e a crise nacional, mas, no caso português, há também factores endógenos a explicá-la. Do mesmo modo que a ascensão do Chega tem a ver com o crescimento da extrema-direita noutras democracias, esta ascensão tem também de ser interpretada junto com a crise da esquerda, como um processo que tem factores comuns. Esses factores têm a ver com a crise interior dos mecanismos da democracia, a erosão das mediações na sociedade, seja da família, seja da escola, seja de sindicatos e partidos, seja mesmo das igrejas institucionais. Essa erosão dissolve mecanismos institucionais de autoridade que funcionavam com a democracia, para mediar o conflito e dar uma maior qualidade à expressão de interesses e ideias num quadro menos antagonista, individualista e solitário, e ignorante agressivamente. As redes sociais, o deslumbramento tecnológico, a crise do silêncio e do tempo lento, a moldagem dos indivíduos numa aceleração da vida, com a dissolução do conflito social no ressentimento, são hoje característicos da ecologia social que se vive nas democracias ocidentais. Ou seja, o “admirável mundo novo” em que estamos a viver e cada vez mais a entrar é hostil às democracias não por fora, mas por dentro, e por isso a ascensão de políticas de força, com homens fortes, com domínio do pathos, e a liquidação do logos e do ethos, implantadas numa vida percebida como reality show, são factores de mudança particularmente destrutivos da “paz” democrática. Não é apenas social, é educativo no sentido lato e cultural. É uma Weltanschauung, pedindo desculpa por este termo alemão que tem o mérito de ser mais rigoroso.
Ou seja, é tudo mais grave do que se pensa, vai mais fundo do que se imagina, e processos como o Chega (cujo crescimento vem também do bloqueio do crescimento da AD) e a crise da esquerda são epifenómenos. Se formos para a “juventude”, que, como se sabe, em Portugal vai até aos 35 anos infantilizados, vemos em perfeita plenitude os efeitos de uma socialização feita à margem de todas as mediações, seja da escola, seja da família, resultando no antagonismo e radicalização, na ignorância agressiva.
A esquerda há muito tempo que não percebe o que se passa à sua volta, envolveu-se em guerras culturais que perdeu e maximizaram a radicalização, perdeu identidade, subordinou-se às ideias dominantes à direita no PS, castrou-se no PCP no apoio a guerras injustas, e diminuiu-se no Bloco face a sectores radicais urbanos, o que, uma vez passada a novidade e a complacência da comunicação social, o deixou na situação de o “rei vai nu”.
Os resultados eleitorais podem oscilar para um lado ou para o outro, mas o Chega está para ficar e bloquear a governação, o PS a caminhar para ser capturado como pajem da AD, o PCP a tornar-se uma antiguidade de culto, e o Bloco a ser o partido de “todes”. Por baixo de tudo, há um Deus ex machina que move os cordelinhos, que sabe bem de mais como manipular um mundo de fragilidades, de solidão, de ignorância, convencido de que é “moderno”. Há gente que ajuda ao que está acontecer, há gente que sabe o que está a acontecer, há gente que ganha com o que está a acontecer, por isso pode e deve ser combatida em nome da democracia.»
0 comments:
Enviar um comentário