«O governo só garante mais casas no nome do seu programa: “Construir Portugal”. O que sobra, nas trinta medidas apresentadas na semana passada, são algumas boas intenções que esbarrão com a realidade. E uma fé infinita que os promotores privados resolverão uma crise de preços que resulta de uma falha do mercado. Falha de mercado que a direita não pode entender sem abalar as suas convicções ideológicas mais profundas.
Com o fim de quase todos os impedimentos legais ao crescimento do Alojamento Local, assistiremos, no curto e médio prazo, à saída de mais casas do mercado habitacional para o turismo do que aquelas que poderão vir a entrar com as propostas do governo. Pelo meio, a desregulação do mercado de arrendamento e das medidas travão à especulação desprotegem ainda mais os inquilinos, deixando-os indefesos perante o galopante aumento de preços. O tabuleiro tomba para o lado dos proprietários e Montenegro chama-lhe “o regresso da confiança”. A única coisa que regressa é um quadro de desregulação quase sem paralelo na Europa.
A apresentação da semana passada foi genérica e superficial, o que é natural, ao fim de um mês de governo. Não há balas de prata. Mas há caminhos. E, ao revogar medidas do último governo que, ao fim de um ano, começavam a ter impacto positivo na diminuição de casas no Alojamento Local e no crescimento de 81% (!) da oferta de arrendamento, repete-se o velho hábito de legislar sem avaliar.
IVA A 6%, EM MELHOR
Há coisas boas. A grande promessa da AD e a principal reivindicação dos construtores – a descida cega do IVA da construção para 6% – passa a ser “em função dos preços”. Não fazia sentido dar um benefício fiscal a empreendimentos de luxo.
O preço de construção subiu 40%, face aos valores de 2015, em toda a União Europeia. É por isso que construir mais casas não garante, por si só, uma redução do seu preço. São poucos os promotores que veem vantagem nos segmentos “normais”, quando os estrangeiros, querepresentam 41% do volume das vendas, em Lisboa, adquirem casas quase ao dobro do preço dos nacionais. Uma descida do IVA que facilite a construção para a classe média face à de luxo pode trazer construtores para segmentos mais baixos.
O problema é que a medida deixou de ter calendarização. De acordo com as contas da AD, a isenção de IMT para os jovens até aos 35 anos e a descida do IVA representam 500 milhões de euros. É muito dinheiro e, ganhas as eleições, o governo tratou de desgraduar as promessas.
25 MIL NOVAS CASAS E QUARTÉIS RECONVERTIDOS?
Questionado pelos jornalistas sobre as estimativas de custos das medidas, Pinto Luz respondeu que ainda estão a ver com o Ministério das Finanças. Por isso, aconselha-se cautela na crença no propósito do governo apoiar, com dinheiro de fundos europeus ou do Orçamento de Estado, as 25 mil casas apresentadas pelas autarquias para lá das que têm financiamento assegurado pelo PRR. Se acreditarmos que sim, o financiamento destes projetos camarários é a única medida que atuaria sobre a habitação pública, que é a solução em que se trabalha em todo o lado – Paris está a investir milhares de milhões de euros; Helsínquia, onde governa a família política do PSD,é detentora de 70% dos solos da cidade e tem mais de 60 mil casas públicas, e em Viena ou Amesterdão a oferta pública anda nos 40% do parque habitacional.
Pinto Luz anunciou apoios para o regresso à construção cooperativa, mas, nas últimas décadas, o modelo quase morreu e hoje pouco ou nada resta. Recriar o espírito cooperativo demoraria ainda mais tempo que a construção pública. E a celeridade das medidas será o problema deste governo, como foi do anterior.
É simpático anunciar a reconversão de grandes imóveis públicos para habitação. Pedro Nuno Santos e Marina Gonçalves também o fizeram. Nenhum conseguiu. Pinto Luz deverá ser mais um. Montenegro diz que os imóveis que o Estado não usa podem vir a ser aproveitados pelas autarquias ou promotores privados. O problema é que os principais imóveis públicos já estão nas mãos de fundos como a Estamo e Fundiestamo, que têm regras de rentabilidade mínima, para proteger o erário público, que dificilmente são compatíveis com o voluntarismo que cada novo governo apresenta.
Boa sorte às autarquias que baterem à porta do governo pedindo para reconverter um dos quartéis desativados. O exército irá exigir, como tem exigido, ser ressarcido financeiramente. Foi neste capítulo que o governo anterior mais se atrasou, porque é mais fácil falar em reconverter antigos hospitais e quartéis em casas do que o fazer. O novo governo rapidamente o perceberá.
O REGRESSO DA “LEI CRISTAS” E DO AL DESCONTROLADO
O preço das rendas em Portugal aumentou 68%, face a 2015, e um valor muito superior a esse em grandes cidades como Lisboa ou Porto. É neste contexto que o novo governo anunciou o fim do travão ao aumento do preço dos novos contratos de arrendamento. É quando as classes médias não conseguem pagar uma casa que o governo permite o regresso à lei da selva que nos trouxe preços de Paris ou Londres com salários portugueses.
A medida “chavista”, como foi apelidada há um ano, é seguida por 13 dos 27 países da União, mais países tão comunistas como o Reino Unido, Islândia, Noruega e Suíça. Os argumentos usados para defender cada medida contam. Dizer que se quer corrigir as supostas “distorções introduzidas ao Regime de Arrendamento Urbano nos últimos 8 anos”, para “flexibilizar” e “dar confiança ao mercado”, é ignorar o que aconteceu ao mercado nestes meses. Precisamente o contrário do enunciado por Montenegro e dos interesses imobiliários que encheram o espaço comunicacional para criticar essa medida.
O mesmo jargão, neste caso a garantia de “perenidade e previsibilidade ao mercado”, é usado para defender a revisão do “conceito de custos controlados e renda acessível”. Usar a defesa dos interesses do mercado para anunciar a revisão do valor das rendas da habitação pública, ora aí está um dos temas menos reparados e comentados, mas que certamente só tem um intuito: subir o valor das rendas cobradas, aproximando-as dos valores de mercado.
O que diminui a oferta habitacional, como sabemos até pelo caminho seguido por todas as grandes cidades europeias e norte-americanas, é retirar os escassos mecanismos de limitação do AL. Ao propor que uma licença atribuída seja eterna, e possa ser revendida, Montenegro perpetua o que vivemos no centro de Lisboa e do Porto. Não é preciso diabolizar esta atividade económica. Ela serviu para reabilitar as cidades e garantir um rendimento complementar a alguns segmentos da classe média. Mas o que é uma escolha racional para uma pessoa, ou investidor, quando seguida por largos milhares pode ter efeitos devastadores. E foi seu efeito nos preços do mercado da habitação que obrigou a travar a fundo. Agora, quer-se acelerar. Fora destas medidas, o governo tem, como cereja em cima do bolo, o regresso dos vistos gold no seu programa.
GARANTIAS BANCÁRIAS
Restam as garantias bancárias do Estado para defender os jovens, que viram o acesso ao crédito dificultado pelas medidas mais restritivas impostas pelo Banco de Portugal depois da crise financeira de 2008. Empréstimos sem risco, no principal segmento de negócio da nossa banca, é o sonho de qualquer instituição financeira. E é para esse sonho que serão desviados recursos bancários que seriam necessários para a capitalização das empresas. Entre emprestar com risco a uma empresa produtiva e sem risco de malparado para jovens que queiram comprar casa, a escolha será simples.
Por fim, há, no vago pacote de intenções do governo para a habitação, questões ainda menos concretizadas, como os apoios fiscais à construção por privados para arrendamento acessível, tentado pela Câmara de Lisboa há sete anos e do qual, até agora, não resultou uma casa. É um modelo com provas dadas em muitos países, mas é preciso conhecer mais do que umas linhas num powerpoint.
A construção de habitação acessível em terrenos rústicos pode ser positiva se for em solos adjacentes a perímetros urbanos consolidados. Mas também nada conhecemos e existem limites à expansão dos perímetros urbanos. O diabo está em detalhes como a valorização milionária destes terrenos.
Até agora, o que o governo apresentou nada tem a ver com a reforma do anterior governo. Concorde-se ou não, havia propostas pensadas, refletidas e vertidas em documentos legislativos. Pode vir a ser esse o caminho, mas o que existe são 14 slides com 30 intenções vagas. O que se retira é uma pulsão para liberalizar o alojamento turístico, desregular o arrendamento e aumento das rendas, acreditando que mais construção privada, por si só, resolve a crise da habitação. A direita portuguesa, ao contrário da europeia, ainda não percebeu que a crise da habitação é a crise dos preços. Mais casas ajuda, mas nada resolve por si.»
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