«É fascinante que um festival de péssima música tenha saído do esquecimento em que, para lá de alguns países mais a leste, vivia. E mais intrigante que tenha sido apropriado pela comunidade LGBT, ao ponto da única bandeira autorizada no recinto, para além da das dos países concorrentes, ser a do arco-íris, numa improvável aliança com nacionalismo cançonetista.
Seja como for, ganhou relevância para não poder deixar de ser, como são todos os acontecimentos em que estão envolvidas representações oficiais dos países (ainda mais de televisões estatais), um momento político. E é especialmente difícil insistir no seu caráter “apolítico” quando se deixa participar um Estado que está a provocar uma das maiores catástrofes humanitárias deste século depois de ter suspendido a Rússia – e bem, porque ao contrário do bloqueio a músicos e artistas, esta suspensão é a uma delegação da televisão estatal. A incoerência da European Broadcasting Union (EBU) reproduz a hipocrisia europeia em relação aos dois conflitos e não podia ser mais política, no pior sentido da palavra.
Quem fecha a porta à política num acontecimento artístico destas dimensões sabe que ela entrará pela janela. E que só pode impedir que ela tome conta da casa se impuser limites à liberdade de expressão. Sem liberdade, a arte é eunuca. Ou é propaganda, como a primeira versão da canção israelita. Mostrando que tudo o que se passou no sábado foi, como inventivamente seria, político, Israel empenhou-se, lançando uma campanha nas redes sociais para transformar a Eurovisão num momento de legitimação internacional. Era o que a Rússia faria, se lá tivesse estado, em 2022.
Com as suas decisões contraditórias, a EBU transformou este festival no mais político de sempre. Isso não seria necessariamente mau, para quem vive bem com a liberdade e o pluralismo, mesmo quando perturbam o comércio. Houve manifestações em Malmo, a canção israelita foi vaiada e os apoiantes do genocídio de Gaza mobilizaram-se para dar um sinal público de solidariedade ao governo de Netanyahu. Como a mobilização para concentrar o voto num concorrente funciona muito mais do que para não votar nele (nesse caso, dispersam-se os votos por outros, como aconteceu na votação de Salazar para maior português de sempre), Israel conseguiu uma boa votação. Ainda assim, falhou o objetivo de vencer no televoto, tendo ficado atrás da Croácia. Em sentido inverso, os sindicatos da televisão pública da Flandres cortaram a transmissão durante a atuação de Israel. Ninguém estava a pensar nas músicas, obviamente.
A incoerência da EBU e a necessidade de impedir que a operação de branqueamento do que se passa em Gaza fosse contestada e estragasse o espetáculo levou, como era de esperar, à censura. Começou na imposição de que Israel alterasse a letra da sua canção, com referências ao conflito, para que a operação de propaganda oficial na justificação do genocídio não fosse tão óbvia. <
br>
Continuou na interdição de bandeiras da Palestina no recinto, com a segurança a retirar pessoas que a exibissem. A concorrente irlandesa terá revelado, num TikTok que apagou, que a produção a obrigou a alterar a maquilhagem porque, no rosto, tinha uma mensagem de apoio à Palestina em que pedia o cessar-fogo.
Prosseguiu com os canais oficiais da Eurovisão a usarem, nas suas redes, fotos e vídeo da participação portuguesa na semifinal (no site oficial e YouTube, o vídeo da atuação só foi publicado depois do televoto ter terminado), para omitir a frase final de Iolanda – "a paz prevalecerá " – e o facto da cantora ter símbolos culturais da Palestina pintados nas unhas.
O desejo deixado por Iolanda é consensual, mas foi, e bem, entendido por todos como uma posição política. Os símbolos que usou eram microscópios, mas foram notados por todos. A forma como Iolanda se manifestou é a que os artistas usam, em ditaduras, para contornar a censura. E a reação automática de tentar esconder aquele momento – assim como se abafaram as vaias na transmissão televisiva com aplausos pré-gravados (usados pela primeira vez em 2014, para silenciarem os apupos à Rússia) – é a habitual em ditaduras. Com o fracasso também habitual, em tempo de redes sociais. A única diferença, que não é pequena, é que a concorrente não arriscava a prisão, só a desqualificação. Apesar de tudo, parecendo que se passava na Rússia, aquele espetáculo aconteceu na Suécia, uma democracia consolidada e moderna.
Tudo isto parece apenas entretenimento, mas não é. Para além da mensagem deixada pelos organizadores da Eurovisão, ao suspenderem a Rússia e permitirem a participação de Israel, a falsa afirmação de que a Eurovisão é apolítica degenerou, para impedir a contestação do que se passa em Gaza, num conjunto de imposições censórias ao público e aos concorrentes que não podem ser toleradas por televisões públicas de democracias. E deve levar a um debate sério das condições em que estas empresas de Estados aceitam participar em momentos culturais em que a liberdade de criação e expressão não são escrupulosamente respeitados.»
.
0 comments:
Enviar um comentário