21.6.25
Solstício em Bergen
O bom gosto chegou há muito tempo a Bergen e instalou-se para sempre. Tudo é realmente admirável – quase mágico, como alguém me dizia há alguns dias, antes de eu própria o poder constatar, já lá vão uns catorze anos, em noite de solstício.
As casas, o verde, a água, a luz, as cores do mercado, nada destoa, tudo parece ter sido «inventado» para se completar, nesta cidade de 280.000 habitantes, onde 15h30 é hora de deixar empregos e regressar a casa («pega-se»» às 8) e que se diz feliz por não ser demasiado fria quando comparada com outras, nem tanto assim por ter fama de ser a mais chuvosa da Europa (já contou com 85 dias consecutivos com água a cair dos céus…).
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O outro wokismo: o da reacção
«A chamada "ideologia woke", cujo conteúdo e, principalmente, fronteiras são difíceis de definir, foi um dos lados da guerra cultural que uma parte da esquerda e de um certo radicalismo de “causas fracturantes” perdeu. O alcance e o significado dessa derrota tiveram enormes consequências políticas em todas as democracias e são uma das chaves para explicar o ascenso da direita radical. Em todos os lados, a começar pelos EUA e a acabar em Portugal, o wokismo fragilizou a componente social do combate político a favor de radicalismos culturais e intelectuais sem base de sustentação na sociedade a não ser em certos meios de elite. A expressão pejorativa do “radical chic” traduz bem o público do wokismo, que, partindo de lutas justas pela igualdade plena entre homens e mulheres, pelo fim da discriminação dos homossexuais e lésbicas e contra o racismo – tudo coisas mais que necessárias na sociedade portuguesa –, lhe deu uma componente censória, de policiamento da linguagem, de superioridade moral de formas de vida, e de agressividade intelectual. O resultado foi isolar e enfraquecer tudo o que havia de justo nos combates pela igualdade e contra a discriminação, e abrir caminho para uma reacção que rapidamente ganhou terreno assente em forças mais poderosas, que a menorização das lutas sociais pela moda do radical chic facilitou. A ideia de que era possível mobilizar alguém por uma sopa de letras LGBTQIA+ é absurda e o resultado é que o todos derrotou o “todes”.
Mas não há apenas um wokismo, há outro, reaccionário, de direita radical, assente numa mescla entre a “tradição”, o machismo, o conservadorismo dos costumes, a ideologia da “família natural”, o anti-intelectualismo, a ignorância agressiva e um conjunto de ideias sobre o catolicismo integrista, raça, história e sobre aquilo a que chamam “portugalidade” sem nenhuma sustentação histórica. Na verdade, aqui a classificação mais frágil é a do catolicismo, porque este wokismo é muito pouco católico, embora também em matéria de costumes a prática não acompanha a retórica.
O wokismo chamemos-lhe “revolucionário” fortaleceu o wokismo “reaccionário”. O termo “revolucionário” não é grande coisa para designar o primeiro wokismo, o termo “reaccionário” é melhor para o segundo wokismo. Não tem sentido designar um como de esquerda e o outro como de direita, porque há muita gente de esquerda bastante reaccionária em matérias de costumes, de visão do mundo e de praticamente todos os sinais do wokismo de direita. Uma coisa é certa, a ascensão de formas de expressão públicas não moderadas, que se estão a substituir ao trabalho jornalístico como fonte de “notícias”, as chamadas "redes sociais", é o terreno para o crescimento e a divulgação do wokismo reaccionário. A sua ecologia natural é a de um mundo dominado pelo pathos, sem logos, e toda a evolução do contínuo político-mediático, reduzindo a autonomia do político e favorecendo o banho das emoções que alimenta um país do Big Brother. Dos dois, o dos reality shows e o de Orwell, porque há gente muito capaz, serviços de informação, grupos políticos disfarçados de hackers, agências de comunicação, que sabem muito bem como este mundo é fácil de manipular, seja para votar em Trump, seja para atacar o restaurante da competição.
Uma das componentes do wokismo reaccionário é o machismo, com o seu cortejo de bravado masculino, a sua violência doméstica, a sua relação com a ideologia da “família natural” com o seu “chefe de família”, a quem se permite tudo no plano sexual que é crime e escândalo nas mulheres, e a sua identificação com os forcados a fazerem peito diante de um touro imaginário. O machismo comunica com tudo, com a superioridade do “homem branco”, a inferiorização das mulheres em casa e no trabalho, a sua “natural” domesticidade. Andei anos a chamar a atenção, sem sucesso, para um dos retrocessos civilizacionais dos anos do Governo de Passos-Portas-troika, o despedimento prioritário das mulheres nas zonas têxteis e do calçado, em que se sai operária e se regressa doméstica. O machismo do homem branco é também um elemento que comunica com a demonização do “outro”, em particular se o “outro” tem outra cor e outra religião.
Para outra altura fica a questão da “portugalidade” no wokismo reaccionário, o “patriotismo” fictício que manipula a nossa história com as ideias que fizeram a “identidade nacional” no período do Estado Novo, escondendo n'Os Lusíadas as palavras sábias do Velho do Restelo a favor de uma interpretação da bazófia nacional que tem como modelo o futebol com a bandeira dos pagodes em vez dos castelos.
Algumas componentes do wokismo reaccionário têm a força de um país com mais maus costumes do que se pensa. O sucesso do wokismo reaccionário vem de factores estruturais que estão muito para lá das modas culturais que alimentam o outro wokismo. Para lhe tirar força não basta travar qualquer guerra cultural, há que mudar Portugal.
Veja-se lá o que é preciso: mudar Portugal. Estamos bem arranjados.»
20.6.25
Fim dos brandos costumes
«Como povo, não estávamos imunes. Apenas dormentes, silenciosos e no armário, prestes a entrar no jogo de ajustes que os recalcamentos convocam já tarde, depois das horas macias em que fermentou o ódio que julgávamos impossível. A estupidez venceu, para já, o confronto. Perante a desinformação, o populismo fez o seu trabalho para cultivar o medo e o ressentimento e, nos últimos anos, Portugal tem escrito páginas inteiras sobre azedume e vinagre, depois de décadas em que se silenciou pela falta de boleia prestada aos pequenos demagogos.
Culpar o povo quando as elites não fizeram o seu trabalho, desprezando boa parte dos anseios de reconhecimento das pessoas nos seus representantes, baixando a expectativa ao ponto de ser indiferente a mentira ou a verosimilhança, é absurdo. As redes sociais ajudaram a criar o pântano, sobretudo a partir do momento em que o poder de quem as detém está ao serviço dos piores escroques. Mas factos são factos e os episódios sucedem-se, agora que não são só os muitos heróis virtuais do teclado a odiar do sofá e o sentimento de impunidade cresce nas ruas.»
Continuar a ler AQUI.
Sondagem presidenciais
27,3% - Gouveia e Melo (menos 8,3 pontos)
18,5% - Marques Mendes (mais 4,6 pontos)
11,0% - António J. Seguro (mais 3,3 pontos)
08,4% - A. Ventura (menos 4 pontos)
Notícia AQUI.
Um programa clarificador
«Um programa eleitoral é o que um partido faria se governasse sem condicionalismos políticos. Quando não tem maioria, a diferença entre o desejo e o possível nota-se logo no programa de governo. Foi o que aconteceu com a ‘geringonça’, onde Costa acabou por apresentar um programa de governo mais à esquerda do que queria. Porque dependia do BE e do PCP. Olhando para a nova composição do Parlamento, Montenegro acrescentou medidas. Não me refiro às 80 que foi pescar aos programas dos outros, um exercício mediático sonso, mas às novidades que tornaram o programa consistentemente mais à direita, numa extensão inédita. É normal. Se o país virou à direita, o Governo vira com ele. Mas tem de ser coerente: se vira à direita, fala com a direita. O que não faz sentido é fazer as mudanças estruturais com o Chega e a IL e ter os Orçamentos aprovados pelo PS.
Quanto ao Chega, o PSD anda atrás do prejuízo. Ventura fala de reagrupamento familiar e o Governo limita o reagrupamento familiar. Fala de nacionalidade, muda a Lei da Nacionalidade. É a extrema-direita que determina os termos em que se debate a imigração. Mas a agenda do Chega não é o centro desta guinada. É o reforço do que foram as curtas experiências governativas do PSD neste século. O seu “reformismo” sofre dos pecados que aponta à esquerda: vive de dogmas ideológicos que escondem o serviço que presta a clientelas. A receita é plana e sem variações no tempo ou na conjuntura. Um fetiche pelas leis laborais num país que sofreu de uma precariedade endémica, a que agora acrescenta mudanças à lei da greve, continuando a retirar força aos sindicados. E a fé de que se baixar IRC e reduzir a progressividade do IRS teremos uma explosão económica. Como já foi explicado, os grandes ganhadores são, em Portugal, o sector financeiro, o retalho alimentar e o imobiliário (de luxo). E são as grandes empresas, muitas delas em regime de oligopólio. Não competem com o exterior, não exportam, não inovam e não qualificam.
Na saúde (e provavelmente na Segurança Social), onde três ou quatro grupos partilham um mercado inelástico, repete-se o padrão. Tudo é simplificado com uma ideia eficaz: ao doente tanto dá se é tratado pelo público ou pelo privado. Acontece que o público e o privado são concorrenciais. Competem por um bem escasso: os médicos. Quando o Governo cria USF geridas por privados, vai buscar os médicos de família ao público. O mesmo com os cirurgiões. Como? Dando ao privado, quer nas USF, quer nas listas de espera para cirurgias, a possibilidade de escolher os doentes rentáveis. Com essa rentabilidade ganha músculo para ir esvaziando o SNS dos melhores médicos, privatizando-o aos bocados. O que o PS foi fazendo por falta de estratégia o PSD faz de forma declarada. Trata-se, e não apenas na saúde, de uma desnatação do Estado. Uma desnatação trágica, tendo em conta a relevância económica do Estado num país periférico como o nosso.
A degradação do SNS, assim como a degradação da escola pública, corresponde ao fim da aliança entre a classe média e os mais pobres, que sustenta o Estado social. A classe média deixa de querer usar os serviços públicos e, por isso, de os querer pagar por via dos impostos. E a extrema-direita cumpre o seu papel histórico, direcionando a revolta contra os de baixo, “subsidio¬dependentes”. Como nos EUA, a classe média passa, na ilusão de que o “mérito” a levará até lá, a identificar-se com os mais ricos e a votar em quem a defenda dos pobres, deixando de partilhar com eles as escolas e os hospitais, transformados em guetos degradados. Deixando de se preocupar com eles.
Há um ano instituiu-se que este Governo era mais centrista porque distribuiu dinheiro a funcionários do Estado. A ideia resulta de uma caricatura da esquerda, de que a própria tem responsabilidade. Este é o Governo mais à direita da nossa história democrática. Não pelas convicções de Montenegro, que nem sei se as tem, mas porque o equilíbrio político assim o determina. Assim como Costa não era o mais à esquerda e fez, porque tinha de fazer, a ‘geringonça’. E é por isso que o PS não pode, na situação difícil em que se encontra, ser o garante incondicional da estabilidade, com o risco de contribuir para um desequilíbrio perigoso, de que será vítima. No próximo Orçamento, o pior que pode acontecer é Montenegro viver com os duodécimos do seu OE anterior. Até é possível que o próximo Presidente acabe com a ideia absurda de que os chumbos de Orçamentos correspondem a dissoluções. Talvez seja bom o PS aproveitar esse momento para obrigar o Governo a abandonar a estratégia “pisca-pisca”, travando a sua própria irrelevância enquanto oposição. Fazer de morto não vai funcionar.»
19.6.25
19.06.1944 – Chico Buarque da Holanda
Chico chega hoje aos 81. Vi-o pela primeira vez em 1966, em Lisboa, em «Morte e Vida Severina», estreada no Brasil pouco antes, com poema de João Cabral de Melo Neto e música do Chico. É difícil imaginar que este tinha então apenas 22 anos!
Chegaria hoje aos 88 e partiu demasiado cedo. Estive com ele dezenas ou centenas de vezes, mas não consigo recordá-lo a não ser a rir às gargalhadas ou a não ser capaz de parar uma intervenção prevista para cinco minutos e que já durava há mais de meia hora. Um ser maravilhoso.
A insegurança que vem de dentro
«Os últimos dias terão sido de profundo desencanto para os cruzados radicais que encontram na imigração a origem de todos os problemas de segurança do país, que não são assim tão grandes, em boa verdade, quando comparados com o que acontece noutras latitudes. De ações a intenções, vê-se e ouve-se um pouco de tudo, do fecho de fronteiras ao estilhaçar de direitos, da perseguição de minorias ao endurecimento do discurso xenófobo. A retórica dos saudosistas de um Portugal fechado e amordaçado, no entanto, conheceu um valente revés quando foram conhecidas as preocupações dos especialistas do Conselho Europeu. Passaram por Portugal e, pasme-se, ficaram muito preocupados com o discurso de ódio que visa, sobretudo, migrantes, pessoas ciganas, LGBT e negras. O relatório também indica aquilo que todos sabíamos, mas muitos procuram ignorar ou esconder: o discurso radical é incentivado por partidos como o Chega, o promotor maior da deriva securitária. Pelo que se viu esta semana, a preocupação de André Ventura devia ser redirecionada, porque a Polícia Judiciária desmantelou um grupo de extrema-direita que se preparava para atacar o Parlamento e discutiu uma invasão ao Palácio de Belém, residência oficial do presidente da República. Não, não eram imigrantes. São portugueses, tão ignorantes quanto violentos, que se julgam puros, criminosos bem armados e obcecados por uma mudança de regime, provavelmente porque não tiveram a má sorte de conhecer na pele as agruras do fascismo. É necessário recuar décadas para encontrar tamanha ameaça às instituições democráticas no nosso país. E, ironia sem ponta de piada, não veio de fora, nasceu cá dentro, onde deve finar rapidamente, se os tribunais fizerem bem o seu trabalho.»
18.6.25
Maria Bethânia
Chega hoje aos 79 com uma carreira iniciada em 1963, quando o seu irmão Caetano Veloso a convidou a participar na peça «Boca de Ouro». Foi nessa época que, tal como Caetano, conheceu Gilberto Gil e Gal Costa, e com eles entrou em «Nós, Por Exemplo» (Agosto de 1964).
Depois… continuou até hoje.
«Noturno» ao vivo (2021), versão completa:
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Play for peace? As a Team? Impossível
«Se quisermos ter uma fotografia do desastroso estado do mundo, basta-nos prestar alguma atenção ao primeiro dia da cimeira do G7, no Canadá, que pretendia reunir, como sempre, as sete principais potências do mundo desenvolvido e democrático. Alguns jornais anunciaram prudentemente que talvez devêssemos falar com mais exactidão de um G6+1. Sabemos quem é este "mais um". O Presidente da maior potência mundial. De quem ainda depende, em boa medida, a "chuva e o bom tempo" na ordem internacional, num momento em que esta "ordem" está a transformar-se rapidamente em "desordem".
Na agenda inicial preparada pelo primeiro-ministro canadiano, Mark Carney, para o G7 estava certamente a guerra na Ucrânia, a situação humanamente dramática em Gaza ou a incerteza internacional lançada pelas "belas" tarifas de Donald Trump. Não estava uma guerra em grande escala entre Israel e o Irão, que saltou para o topo da lista de prioridades da cimeira. O Presidente americano chegou, fez-se fotografar com os outros líderes presentes, recebeu das mãos de António Costa uma camisola de Cristiano Ronaldo, assinada pelo próprio, onde estava impresso o desejo dos seus pares: "Play for peace. As a Team". Sem pontos de interrogação. Nos dias anteriores à reunião do G7, os analistas publicaram longas análises medindo a capacidade dos vários líderes presentes para "lisonjear" o homem mais poderoso do mundo, a arma que lhes resta para o convencer a fazer o que se espera do seu país. O Presidente do Conselho Europeu tentou a sua sorte.
A agenda dos representantes da União Europeia e dos seus três maiores Estados membros era abrir caminho às negociações com os Estados Unidos sobre as taxas aduaneiras impostas arbitrariamente por Donald Trump às importações e convencê-lo a endurecer as sanções à Rússia, incluindo um tecto ao preço de compra do petróleo (30 dólares), a principal fonte de receitas para a guerra de agressão que leva a cabo contra a Ucrânia. Com mais ou menos ênfase, era esta também a agenda do Japão e do Canadá. A guerra entre Israel e o Irão acrescentou uma dose de enorme urgência. Os líderes presentes sabiam e sabem que só Donald Trump estaria em condições de impor aos contendores uma saída que impedisse uma guerra generalizada no Médio Oriente, com consequências pesadas, nomeadamente para a Europa. Da mesma maneira que só ele dispõe da força suficiente para alterar a favor da Ucrânia o destino de uma guerra europeia em larga escala, a primeira desde o fim da II Guerra. Ontem, o seu abandono precipitado da cimeira evitou o encontro, confirmado pela Casa Branca, com o seu homólogo ucraniano. Volodymyr Zelensky, como sempre, insistiria no apoio militar que começa a escassear. Na semana passada, Washington desviou para Israel uma larga remessa de mísseis destinados à Ucrânia. Trump não estava interessado em falar com ele.
G6+1?
As poucas horas que Trump esteve na reunião do G7 chegaram e sobraram para entender que não existe uma base comum entre as democracias mais ricas do mundo e o líder do país mais poderoso do mundo. Como alguns analistas anteciparam, foi um "G6+1". Aliás, logo à chegada, o Presidente americano tratou de desferir mais uma diatribe contra os seus pares, acusando-os de ter posto fim ao G8 quando "expulsaram" a Rússia. "Putin sentiu-se insultado. Foi um grande erro de Obama", disse. Se não o tivessem feito, "não teria havido guerra". Mais uma vez, não acertou nos factos. Bill Clinton convidou a Rússia do Presidente Boris Ieltsin a juntar-se ao G7 porque a orientação de Moscovo parecia ser em direcção ao Ocidente e à democracia. O G8 acabou em 2014, pela razão simples de que a Rússia de Putin decidiu anexar a Ucrânia pela força e invadir o Donbass. Donald Trump tem outra ideia da Rússia. Aproveitou o encontro de ontem para tornar claríssimo que não tenciona endurecer as sanções a Moscovo, pelo contrário, deu a entender que seria bom levantá-las. Tem adiado constantemente a aprovação no Congresso americano de um pacote duríssimo de sanções, preparado por mais de 70 congressistas, incluindo muitos republicanos.
Nas escassas horas em que esteve na cimeira, ainda assinou uma ordem executiva finalizando o acordo sobre tarifas negociado com o Reino Unido, não sem dar uma justificação que nenhum líder de nenhuma potência democrática jamais daria: "O Reino Unido está muito bem protegido [de futuras taxas aduaneiras]. Sabem porquê? Porque gosto muito dele." Desta vez, absteve-se de reivindicar o Canadá como 51º estado norte-americano.
O que fará Trump no Médio Oriente?
Inicialmente, sobre a questão mais urgente, o Presidente americano, que deu como razão para regressar a Washington um dia mais cedo a guerra entre Israel e o Irão, não estava disponível para assinar uma declaração conjunta apelando a ambas as partes para travar o conflito. Mark Carney já tinha abdicado de uma declaração conjunta da cimeira, para evitar o escândalo que manchou a última reunião do G7 a que o Canadá presidiu, em 2018. Nessa altura, Trump assinou a declaração conjunta, mas já a bordo do Air Force One, anunciou que retirava a assinatura. Estava furioso por não ter convencido os seus pares a aceitar o regresso da Rússia de Putin. Desta vez, acabou por assinar a declaração sobre o conflito no Médio Oriente, mas a sua recusa inicial quer dizer que ainda não decidiu o que vai fazer. A declaração apela ao fim da escalada de guerra, reconhece o direito de Israel de se defender e reafirma a sua oposição contrária a um Irão nuclear. Mais uma vez, como na Ucrânia, só os Estados Unidos estão em condições de ditar a evolução dos acontecimentos. Já a bordo do Air Force One, Trump disse aos jornalistas que queria "um fim efectivo da guerra e não uma trégua", anunciando que Israel iria intensificar os bombardeamentos. Na sua rede social Truth Social, garantiu que não estava a tentar falar com Teerão "de forma nenhuma". "Não estou muito virado para negociar". Tinha dito aos seus parceiros do G7 que estavam em curso discussões para um cessar-fogo.
Donald Trump tem um amigo na Europa – Vladimir Putin. Não tem aliados. Tem vários amigos no Médio Oriente e nem sequer sabemos se Benjamin Netanyahu é o maior. Pode ser o príncipe herdeiro saudita ou o emir do Qatar. A primeira visita oficial do seu segundo mandato foi à Arábia Saudita e às monarquias do Golfo e não a Telavive. O que fará em relação à guerra entre Israel e o Irão é ainda uma incógnita.
Parada militar?
Entretanto, internamente, a parada militar que mandou organizar em Washington para celebrar, ao mesmo tempo, o seu 79º aniversário e os 250 anos do exército americano, criado ainda antes da independência, saldou-se num fracasso. As tropas desfilaram bastante a contragosto e sem grande brio. Não há essa tradição na América. Quando, ainda no seu primeiro mandato, esteve em Paris ao lado de Emmanuel Macron para assistir à parada militar do Dia da Bastilha nos Campos Elíseos, disse que queria uma igual para ele. Mas, no sábado, em Washington, as bancadas para o "povo" estavam vazias. O desfile chegou a ter momentos caricatos. No mesmo sábado, as grandes manifestações de repúdio à perseguição aos imigrantes ilegais e aos acontecimentos recentes em Los Angeles, com o recurso à Guarda Nacional e aos militares, encheram as praças das cidades americanas, incluindo nos estados vermelhos, sob o lema "No Kings". "Na América, não temos reis". Pacíficas. De Houston e Dallas a Nova Iorque e Chicago. As maiores e mais generalizadas de que há memória.
Trump já confessou várias vezes a sua admiração pelos ditadores que se fazem obedecer — Putin, Xi, Kim Jong-un. Sonha ser obedecido na América. Terá bastante mais dificuldade.»
Teresa de Sousa
Newsletter do Público, 17.06.2025
17.6.25
Gramofones
Um raro gramofone Arte Nova, Mcord Stewart Museum Montreal, Canada. Cerca de 1905.
Edison Phonograph.
Daqui.
Jean-Louis Trintignant
Tinha 91 anos e morreu em 17 de Juno de 2022. Ficam no baú da nossa memória «Un homme et une femme», «Ma Nuit Chez Maud», «Z» e tantos outros filmes.
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Portugal, versão mal traduzida
«Há nacionalismos que assentam em mitos. Discutíveis, muitas vezes perigosos, mas internamente coerentes. Outros não: colam-se com fita adesiva, peças soltas de ideologias alheias, instruções mal traduzidas. Um nacionalismo de parafusos de sobra.
O da nova direita radical portuguesa é disso exemplo. Não resulta de uma evolução interna, histórica ou cultural. É importado, adaptado, mal-amanhado. Defende pouco mais do que uma pose. Uma representação do que julga ser a portugalidade, baseada num imaginário estanque e, sobretudo, em negação do passado, da complexidade, da pluralidade.
Na semana que passou tivemos mais uma amostra. A deputada do Chega Madalena Cordeiro escreveu nas redes sociais:
“Hoje celebramos o Santo António!
Celebramos todos os Antónios. Não os Abduls.
Celebramos o cheiro a sardinha. Não a caril.
Celebramos como só se pode celebrar: à portuguesa!”
Não é um tweet isolado. É um compêndio. Reduz o pertencimento à etnia, a celebração à exclusão, a tradição ao paladar. E sobretudo revela o que há de mais sintomático neste discurso: a obsessão com a fronteira entre o que é “nosso” e o que não é, entre quem pertence e quem não devia estar cá.
Poucos dias antes, durante uma cerimónia de homenagem aos ex-combatentes, o imã Sheikh David Munir subiu ao púlpito ao lado do capelão militar. Juntos, prestaram uma homenagem religiosa aos mortos. Alguém na assistência gritou-lhe: “Vergonha, vai para a tua terra.”
É um reflexo mais revelador do que parece. Não apenas pelo insulto, mas pelo pressuposto: que Portugal é propriedade de uns e concessão para os outros. Que há quem tenha mais direito ao luto, à fé, à memória.
O Almirante Gouveia e Melo respondeu com a sobriedade que o momento exigia: “Cale-se, o senhor é que nos envergonha.” E mais tarde recordou o essencial: entre os que combateram por Portugal, havia crentes de todas as religiões. O que se homenageava ali era um país real, não um ideal filtrado por preconceito.
Portugal, com todas as suas contradições, nunca foi um país etnicamente puro (não por princípio, por circunstância). Não o foi na expansão, nem no império, nem na colonização. E o mais irónico é que nem o regime que Ventura por vezes elogia escapou a essa evidência. O salazarismo, ao mesmo tempo que reprimia, censurava e colonizava, construiu uma narrativa multirracial — artificial, cínica, útil à propaganda imperial —, porque percebia que a pureza étnica era um mito impraticável.
Ventura nem essa complexidade instrumental reconhece. Escolhe antes o conforto da fantasia alheia. Recusa o passado tal como foi e, sem conseguir encontrar o país que idealiza, importa outro (ou pelo menos a retórica de outro). O seu discurso copia, quase literalmente, o vocabulário da nova direita americana. Fala de “substituição demográfica”, “identidade cultural ameaçada”, “valores ocidentais em risco”, como se Portugal fosse uma tradução literal da ansiedade identitária de outros.
Mas Portugal não é isso. E nunca foi. Foi uma construção longa, contraditória, marcada tanto por encontros como por imposições, tanto por trocas como por conquistas. Não foi puro, nem homogéneo, nem fechado. E também nunca teve o luxo de o ser. O que Ventura propõe é o contrário da sua própria mitologia: um país encapsulado, em que a pertença se mede à distância de qualquer diferença. Seja ela um nome, um cheiro ou uma oração.
Por isso o gesto de Gouveia e Melo importa. Não por ser excecional, mas por ser necessário separar a realidade do delírio. Destrinçar o que o país de o que alguns gostariam que tivesse sido.
Não se trata de idealizar Portugal. Trata-se apenas de o reconhecer. Sem folclore importado, sem fantasias reconfortantes. Só com memória, e alguma lucidez.»
16.6.25
David Mourão-Ferreira morreu há 29 anos
David Mourão-Ferreira morreu em 16 de Junho de 1996. Um dos nossos grandes poetas do século XX, ficcionista também, acidentalmente político como Secretário de Estado da Cultura, de 1976 a Janeiro de 1978 e em 1979, autor de alguns poemas imortalizados pelo fado na voz de Amália Rodrigues.
Dois poemas ditos pelo próprio, um cantado por Amália:
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Um programa para a IL e para o Chega às cavalitas do PS
«Os políticos fazem campanhas em poesia e governam em prosa”, disse Mario Cuomo, ex-governador do Estado de Nova Iorque. Depois de andar, antes das eleições, em programas de entretenimento da tarde, Luís Montenegro dá finalmente a conhecer o seu verdadeiro programa de Governo. E ele representa a radicalização ideológica do PSD. Na imigração, nos apoios sociais aos mais desfavorecidos, na legislação laboral, no futuro do SNS.
Esta é a primeira leitura política de um documento que revela um plano enfiado na gaveta durante a campanha: Montenegro olhou para a composição do Parlamento e, para lá dos contos de embalar sobre o papel estrutural do PS, vai aproveitar o peso esmagador da direita para fazer o que nunca foi feito. Com os socialistas presos pelos colarinhos de uma suposta “moderação”, sente que pode ir até onde nunca foi.
Sobre o que mudou em relação ao programa eleitoral, o Vítor Matos já fez a comparação, nas páginas do Expresso. Flexibilização da legislação laboral; mudança da lei da greve; revisão da Lei de Bases da Saúde; 2% do PIB para a Defesa já em 2025, e não 2029. Há todo um mundo novo escondido até 18 de maio. Não é preciso ser especialmente atento para perceber que as áreas em que o Governo agora promete agir, e sobre as quais esteve calado na campanha, são onde sente ter o apoio das bancadas à sua direita.
Luis Montenegro conta com o PS para aprovar os orçamentos e com as bancadas à sua direita para mudar estruturalmente o país. Onde conta, e conta muito no programa mais ideológico de que há memória, o Governo espera ter o apoio do Chega e da IL. É por isso que todas as novidades do programa são em matérias que Montenegro sabe que o PS não pode apoiar. Metade delas, de resto, são para reverter medidas dos governos de António Costa. A reversão da laboralização das plataformas digitais ou a revisão da Lei de Bases da Saúde são apenas dois casos explícitos.
No tom e nas medidas, também temos largas cedências ao Chega. Não apenas nas anunciadas restrições ao reagrupamento familiar dos imigrantes (ao mesmo tempo que estuda a revitalização dos vistos gold), mas também na alteração dos mecanismos de apoio social aos mais vulneráveis. Quanto às primeiras, já aqui escrevi sobre o cinismo dos que, passando o tempo a dizer que não são contra a imigração desde que haja condições para integrar, abrem guerra ao mais poderoso instrumento de integração. Quanto à segunda, o governo quer que o Rendimento Social de Inserção passe a exigir “obrigações de solidariedade” – trabalho não remunerado. Estamos a falar de uma prestação que, em média, não passa dos 324 euros.
Esta conversa não começou com o Chega. A diferença é que, na campanha de 2009, quando Paulo Portas fazia as mesmas propostas e usava os mesmos termos num frente a frente com Manuela Ferreira Leite, a líder do PSD recusava-se a aceitar as suas premissas. Não o fazia com base em argumentos ideológicos ou na avaliação positiva que estas políticas públicas têm tido na diminuição do abandono escolar e na taxa de pobreza. Fazia-o em nome da dignidade humana e da decência. Por onde anda essa direita?
Mas o alvo não são apenas mais pobres e vulneráveis. Na Saúde, a palavra de ordem é “complementaridade entre público, social e privado”, sendo que, para cada problema identificado, a solução passa sempre pelo “reforço de parcerias que ampliam a capacidade de resposta”. É para esta nova visão do SNS, reforçando ainda mais a sua dependência da iniciativa privada que acaba por financiar, que o Governo quer mudar a Lei de Bases. O resultado dessas parcerias, como no modelo C das Unidades de Saúde Familiar (as que podem ser geridas por privados), é bastante simples: a versão preliminar do seu regulamento, avançada ainda pelo primeiro governo de Montenegro, permite a estas unidades públicas geridas por privados escolher os utentes que pretendem. Enquanto vão buscar os médicos de família às USF públicas. O privado terá o dinheiro do público para continuar a sua expansão, e investimento pesado na área hospitalar, com o público a assumir os tratamentos dispendiosos e que os privados não querem assumir.
A alteração à lei da greve, para a limitar e condicionar ao “equilíbrio de interesses sociais”, é um modelo exemplar do cinismo na política. Ao longo dos últimos anos, com o PS no poder, o PSD apoiou ativamente os dois protestos que esticaram para lá de todos os limites o conceito de greve: a greve “cirúrgica” dos enfermeiros, liderada pela bastonária do PSD, e as greves “self-service” dos professores, convocada pelo STOP. No primeiro caso, a greve foi considerada ilegal pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República. Com o PS no poder, não havia qualquer preocupação com a defesa dos tais “interesses sociais” numa greve selvagem e ilegal, como a dos enfermeiros, que levou ao cancelamento de milhares de cirurgias.
O Governo avança nas áreas onde a direita nunca sentiu força para agir porque sabe ter o apoio do Chega e da IL no que é mais ideológico, das áreas sociais e dos direitos laborais. No que importa, portanto. A questão é saber que papel aceita ter o PS. Carlos César sinalizou que o partido terá de “ser mais oposição do que já prevíamos.”José Luís Carneiro criticou a diferença entre o que foi apresentado na campanha e o que agora surge. O pior que pode acontecer ao Partido Socialista é ser o pronto-socorro do Governo, quando este não se conseguir entender com os seus parceiros preferenciais para a mudança estrutural do país, aprovando os orçamentos e o que o Chega cheirar ser impopular.
Perante este programa, a esquerda tem de se recompor do estado de depressão em que ficou depois de 18 de maio, ignorar os conselhos da direita para que vá para um retiro de reflexão enquanto ela fica de mãos livres e começar a preparar a reação a esta guinada sem paralelo.
Porque, se essa viragem para a direita levar o PS no “lugar do morto”, quem se arrisca a falecer politicamente é mesmo o PS. Um programa eleitoral não é apenas um conjunto de medidas. É uma visão do país suportada por um discurso. O que este documento nos diz, ao olhar para as novidades que nos foram escondidas durante a campanha, é que o discurso político vai endurecer e suportar-se num sem-número de falsidades sobre os imigrantes, os beneficiários de apoios sociais e os direitos dos trabalhadores. Não é apenas discurso. Molda perceções e cria maiorias sociológicas.
Se o PS se resigna a ser ajudante da governação, esta deriva para a direita não vai ficar por aqui. E a sua decadência eleitoral também não.»
15.6.25
Orcs e goblins odeiam nos caminhos de Portugal
«Hordas de orcs e goblins... de quê? Quem não tiver lido Tolkien poderá ver as extraordinárias adaptações ao cinema de “O Senhor dos Anéis” e de “O Hobbit”, por Peter Jackson, para conhecer essas asquerosas criaturas ao serviço do mal. Ora, há em Portugal hordas de orcs e goblins (são grupelhos, na verdade) dedicadas a agredir e a aterrorizar pessoas que tentam viver em paz num mundo que lhes pareça benévolo: imigrantes, voluntários apoiando pessoas sem-abrigo, atores que chegam ao seu local de trabalho...
De onde vem esta podridão?
Há uma resposta, dada em 2016 pelo atual presidente dos EUA, quando estava em vias de assegurar pela primeira vez a nomeação como candidato presidencial, ao dizer: “Ganhámos com os jovens. Ganhámos com os velhos. Ganhámos com os muito instruídos. Ganhámos com os pouco instruídos. Eu adoro os pouco instruídos.” (…)
Mudar o Mundo pode não ser transformar todas as pessoas em seres lúcidos, luminosos e benévolos. Isso não existe. Mas pode ser dar-lhes condições de vida que não as puxem para o ódio, a xenofobia, o racismo. E dar-lhes a dignidade que as iniba de ver como ofensiva a dignidade das pessoas diferentes. E, no longo prazo, torná-las instruídas, não para sermos todos iguais, mas para que todos decidam, sem serem manipulados, o que são.»
(Ler na íntegra AQUI.)
A crise da habitação está a minar a democracia
«1. Em abril deste ano, segundo o Eurostat, éramos na Europa o país com pior acesso à habitação. O fosso da desigualdade habitacional agravou-se e aumentou a desesperança de muitos. A subida constante dos preços proporciona uma especulação desenfreada e grande evasão fiscal. Há muito arrendamento sem contrato e sem recibo e um número crescente de pessoas em novas barracas e alojamentos precários. São sinais de alarme sintomáticos de duas questões de fundo: continuada insuficiência e ineficácia das políticas públicas de habitação; e profundo disfuncionamento do mercado habitacional, que só floresce no segmento de luxo.
2. As grandes linhas da política pública de habitação decorrem do direito à habitação consagrado na Constituição, que comete ao Estado o dever de o garantir a todos. A Lei de Bases da Habitação, de 2019, desenvolveu essas grandes linhas. Passam por quatro tipos de instrumentos: habitação pública, medidas fiscais, subsidiação e regulação. Na promoção pública e até 2018, houve apenas dois programas relevantes: o SAAL, em 1974, para apoiar soluções em bairros precários de todo o país, e o PER, em 1993, para erradicar as barracas nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Nos anos 70 e 80, houve algum apoio público ao setor cooperativo, mas decaiu. O financiamento público centrou-se desde então na bonificação de juros para acesso à casa própria e em subsídios ao arrendamento jovem. Paralelamente, vendeu-se grande parte da habitação pública e lançou-se a cobertura do país com planos diretores municipais pensados para o dobro da população residente. Acreditava-se que o mercado, com apoio da banca, iria satisfazer as necessidades habitacionais. A crise de 2008 e o resgate financeiro de Portugal criaram dificuldades adicionais. Só em 2018 se iniciou a “Nova Geração de Políticas de Habitação”, que inclui o 1.º Direito, o mais ambicioso programa público de habitação até à data.
3. Entretanto, os mercados habitacional, turístico e financeiro mudaram de escala e tornaram-se globais. Cresceram igualmente os movimentos migratórios. A procura de habitação disparou em toda a Europa, alavancada por três fenómenos: a financeirização, que faz da habitação, de preferência desocupada, um mero produto financeiro; a gentrificação, que privilegia a procura externa com maior poder de compra sobre a procura interna; e a imigração de população pobre em demanda de paz e trabalho, alvo prioritário de tráfico ilegal e sobre-exploração habitacional. As consequências conjugadas destes fenómenos entre nós, impulsionadas por políticas públicas erráticas, traduziram-se em subidas estratosféricas e insustentáveis do preço da habitação, tanto na compra como no arrendamento.
4. É inegável que precisamos de aumentar a oferta de habitação pública. Em Portugal, havia em 2021 pouco mais de 120 mil habitações públicas, apenas 2% da habitação existente, um dos mais baixos valores na Europa. A meta de 26 mil habitações novas ou renovadas até 2026, no âmbito do Programa 1.º Direito e financiadas a 100% pelo PRR, já foi reduzida, embora o Governo tenha prometido financiar mais 30 mil habitações até 2030. Mesmo assim, ficaremos longe da média europeia e a menos de metade das 143.283 situações de indignidade habitacional identificadas pelos municípios, referidas no último relatório da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR.
5. É também inegável que se construiu muito em Portugal desde o 25 de Abril. Será preciso construir mais para aumentar a oferta privada? Certamente que sim, mas não de qualquer maneira e não em todo o lado. Segundo o INE, em 2021 havia 5,9 milhões de habitações para 4,1 milhões de famílias. Desses quase 6 milhões de habitações, 1 milhão e cem mil eram residências secundárias e 723 mil estavam vagas. Dois terços das casas vagas estavam em edifícios habitáveis sem obras, ou apenas com reparações ligeiras, mas só menos de metade delas estava disponível para venda ou arrendamento. Por outras palavras, há em Portugal muita habitação em condições de ser habitada, a maior parte dela privada, que não é mobilizada pelo mercado para satisfazer a procura da população. O mesmo acontece com uma parte substancial dos terrenos classificados como urbanos. Em suma, o nosso grande paradoxo é sermos, ao mesmo tempo, o país com a pior acessibilidade à habitação na Europa e um dos que têm maior superavit de casas face ao número de famílias. Precisamos de perceber porquê, município a município, no litoral, no interior e nas ilhas.
6. Temos de compreender que a oferta de habitação é sempre local e territorialmente limitada, enquanto a procura é global e virtualmente ilimitada. Uma situação destas não é resolúvel sem regulação pública, nacional e europeia. Uma nova estratégia europeia para a habitação acessível está a dar os primeiros passos. A própria Comissão Europeia, no seu relatório de 2025 sobre a situação de Portugal, propôs há poucos dias medidas relevantes. Há muito conhecimento comprovado e muita gente competente, nos vários setores profissionais, na academia e nas autarquias, que deve ser ouvida pelos nossos poderes públicos. Mas falar em regulação, em Portugal, é acordar o fantasma do congelamento de rendas iniciado por Salazar e alargado a todo o país no PREC. O trauma ficou e a resistência à intervenção pública nos preços da habitação é garantida. No entanto, assegurar o funcionamento eficiente dos mercados é uma incumbência constitucional prioritária do Estado, que dela não se pode demitir.
7. A falta de acesso à habitação é uma questão estrutural de enorme gravidade. Os sinais de alerta estão todos à vista. Uma geração inteira está a ser privada de futuro. A coesão social e o desenvolvimento económico estão a ser afetados. É tempo de exigir uma política nacional de habitação consistente, baseada nos recursos e capacidades existentes e nos instrumentos financeiros, fiscais e legais necessários para apoiar quem precisa e penalizar quem abusa. Sem isso não será possível vencer a crise da habitação que está a minar a nossa democracia.»
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