17.6.25

Portugal, versão mal traduzida

 


«Há nacionalismos que assentam em mitos. Discutíveis, muitas vezes perigosos, mas internamente coerentes. Outros não: colam-se com fita adesiva, peças soltas de ideologias alheias, instruções mal traduzidas. Um nacionalismo de parafusos de sobra.

O da nova direita radical portuguesa é disso exemplo. Não resulta de uma evolução interna, histórica ou cultural. É importado, adaptado, mal-amanhado. Defende pouco mais do que uma pose. Uma representação do que julga ser a portugalidade, baseada num imaginário estanque e, sobretudo, em negação do passado, da complexidade, da pluralidade.

Na semana que passou tivemos mais uma amostra. A deputada do Chega Madalena Cordeiro escreveu nas redes sociais:

“Hoje celebramos o Santo António!
Celebramos todos os Antónios. Não os Abduls.
Celebramos o cheiro a sardinha. Não a caril.
Celebramos como só se pode celebrar: à portuguesa!”

Não é um tweet isolado. É um compêndio. Reduz o pertencimento à etnia, a celebração à exclusão, a tradição ao paladar. E sobretudo revela o que há de mais sintomático neste discurso: a obsessão com a fronteira entre o que é “nosso” e o que não é, entre quem pertence e quem não devia estar cá.

Poucos dias antes, durante uma cerimónia de homenagem aos ex-combatentes, o imã Sheikh David Munir subiu ao púlpito ao lado do capelão militar. Juntos, prestaram uma homenagem religiosa aos mortos. Alguém na assistência gritou-lhe: “Vergonha, vai para a tua terra.”

É um reflexo mais revelador do que parece. Não apenas pelo insulto, mas pelo pressuposto: que Portugal é propriedade de uns e concessão para os outros. Que há quem tenha mais direito ao luto, à fé, à memória.

O Almirante Gouveia e Melo respondeu com a sobriedade que o momento exigia: “Cale-se, o senhor é que nos envergonha.” E mais tarde recordou o essencial: entre os que combateram por Portugal, havia crentes de todas as religiões. O que se homenageava ali era um país real, não um ideal filtrado por preconceito.

Portugal, com todas as suas contradições, nunca foi um país etnicamente puro (não por princípio, por circunstância). Não o foi na expansão, nem no império, nem na colonização. E o mais irónico é que nem o regime que Ventura por vezes elogia escapou a essa evidência. O salazarismo, ao mesmo tempo que reprimia, censurava e colonizava, construiu uma narrativa multirracial — artificial, cínica, útil à propaganda imperial —, porque percebia que a pureza étnica era um mito impraticável.

Ventura nem essa complexidade instrumental reconhece. Escolhe antes o conforto da fantasia alheia. Recusa o passado tal como foi e, sem conseguir encontrar o país que idealiza, importa outro (ou pelo menos a retórica de outro). O seu discurso copia, quase literalmente, o vocabulário da nova direita americana. Fala de “substituição demográfica”, “identidade cultural ameaçada”, “valores ocidentais em risco”, como se Portugal fosse uma tradução literal da ansiedade identitária de outros.

Mas Portugal não é isso. E nunca foi. Foi uma construção longa, contraditória, marcada tanto por encontros como por imposições, tanto por trocas como por conquistas. Não foi puro, nem homogéneo, nem fechado. E também nunca teve o luxo de o ser. O que Ventura propõe é o contrário da sua própria mitologia: um país encapsulado, em que a pertença se mede à distância de qualquer diferença. Seja ela um nome, um cheiro ou uma oração.

Por isso o gesto de Gouveia e Melo importa. Não por ser excecional, mas por ser necessário separar a realidade do delírio. Destrinçar o que o país de o que alguns gostariam que tivesse sido. Não se trata de idealizar Portugal. Trata-se apenas de o reconhecer. Sem folclore importado, sem fantasias reconfortantes. Só com memória, e alguma lucidez.»


1 comments:

Fenix disse...


Enquanto estivermos entrincheirados mentalmente, nas bandeiras, nas fronteiras, nas cores de peles, nas religiões... não conseguimos evoluir e subir uns degraus na escala da decência humana!

Perante, um futuro tão assustador, a nossa espécie será mais uma que se perfila para se extinguir. E eu, nem sequer consigo lamentá-lo...