«Há eventos, na história mais recuada e nos tempos recentes, que percebemos bem terem sido causados, ou piorados, pela má qualidade dos políticos e dos governantes. Exemplifico. A Revolução Francesa não está desligada da mediocridade de Luís XVI. Qualquer um esperaria de governantes como Trump e Bolsonaro que potenciassem uma carnificina, em calhando uma crise pandémica como a da covid. Porque psicologicamente e politicamente são produtos que não têm o bem comum da generalidade da população como princípio norteador.
O “Brexit” foi outro caso claro de políticos desastrosos sucedendo-se como dízima infinita. O irresponsável Cameron, com a brincadeira do referendo. May, mostrando força que não tinha. Boris Johnson, impreparado e espalhafatoso. Corbyn, sempre ambíguo e politicamente radical. Desagradava tanto aos britânicos que estes, até os que detestam o cisma com a União Europeia, preferiram votar nos conservadores do “Brexit”.
Porém, neste ano de pandemia, tivemos a sorte de algumas lideranças providenciais. Daquelas que agiram para minorar ou extinguir a crise. Que velaram pelo bem comum em vez de pelo narcisismo estrepitoso próprio dos líderes proto-autoritários. Dentro delas, curiosamente, as melhores foram mulheres. Para mim, as personalidades políticas de 2020 foram quatro e estão todas no feminino.
Ursula von der Leyen é a mais emblemática. Porventura a maior responsável europeia pela vacina para a covid. Não tendo a União Europeia uma política de saúde comum, para além dos mínimos de regulamentação, a Comissão Europeia tomou para si o financiamento da pesquisa das empresas privadas, arriscou (porque poderia financiar e os resultados serem sofríveis ou insuficientes), coordenou etapas entre o regulador comunitário e as farmacêuticas, encomendou doses para toda a UE, e, por fim, está a distribui-las por todos os países simultaneamente.
Penso que em Portugal todos temos noção de que, não fora toda a estratégia, planeamento e logística da Comissão Europeia, não receberíamos vacinas contra a covid ao mesmo tempo que a Alemanha. Nem teríamos stocks atempados para recuperarmos normalidade de vida no verão. Lembremos há pouco tempo o desaire com as vacinas da gripe, esse da gestão do muito português Ministério da Saúde, que colocou pessoas que normalmente se vacinam sem dificuldades não conseguindo vacinas este ano.
A presidente da Comissão não deixou os Estados membros entregues a si próprios numa área que não é da competência da UE. Depois da calamitosa resposta inicial da UE à Itália – ficou sozinha a tratar do surto explosivo de covid, com ajuda casuística dos países vizinhos em alguns internamentos –, onde até houve ralhetes e ameaças do BCE por causa das contas públicas italianas à conta da covid, Ursula von der Leyen percebeu que a resposta teria de ser europeia. Porque o coronavírus tem a particularidade irritante de não se incomodar com fronteiras.
Não foi só na vacinação que Ursula von der Leyen entregou resultados. A bazuca europeia para a recuperação económica pós-covid tem a sua impressão digital. Conseguir convencer os mais renitentes à emissão de dívida europeia para a bazuca foi épico. O discurso do Estado da União por Von der Leyen este ano no Parlamento Europeu – memorável. Falando em inglês e francês, Ursula não tem a vivacidade que lhe é visível nas partes em que discursa em alemão, é mais pausada e contida, mas as oscilações de forma não a impediram de ser ambiciosa para a UE, tanto na economia como nos direitos humanos, passando até pela cultura.
Felizmente temos uma Ursula von der Leyen à frente da CE neste ano alucinado. Até o dossier “Brexit” a expediente Ursula conseguiu encerrar. E é curioso – e comovente – que o ano da consumação do “Brexit” seja também o ano em que a colaboração europeia fez tanto sentido e foi tão imprescindível.
Outra líder incontornável: Angela Merkel. Sempre reincidente nestes rankings de boas características. A sua firmeza a decretar confinamentos, a escolha de bons cientistas para a aconselharem e a ausência de hesitação a aplicar as recomendações foram de índole a dar segurança ao mais incréus. Os seus discursos políticos onde explicava, de modo calmo e contundente, o que sucederia se a taxa de transmissão da doença aumentasse, quantos mortos se esperariam diariamente se o Natal alemão fosse mais relaxado, e outros pormenores técnicos tornados acessíveis e evidentes por Merkel, foram de antologia. Deveriam ser usados em licenciaturas e mestrados como paradigmas de boa comunicação política.
Uma terceira é Jacinda Ardern, da Nova Zelândia. Teve como política suprimir o contágio de covid. O país fechou, para dentro e para fora (ajudou ser um arquipélago), e temporariamente teve os custos económicos da paragem. Como resultado, no total tiveram pouco mais de dois mil casos de covid e, segundo o site Worldometers, 25 mortos (para cinco milhões de habitantes). Já reabriram as fronteiras com a Austrália e regressaram à vida (quase) normal mesmo sem vacinas que lhes trouxessem a almejada imunidade de grupo.
E a quarta: Tsai Ing-wen. A Presidente de Taiwan, líder do DPP, o partido progressista e independentista da ilha. Teve melhores resultados que Ardern: menos de mil casos em Taiwan, e sete mortes. Tanto mais assinalável pela alta densidade populacional: a ilha é menos de metade de Portugal e tem mais do dobro da população. A estratégia de Tsai Ing-wen foi implementada mal se souberam dos casos em Wuhan nos primeiros dias do ano. Logo em janeiro, estava a OMS ainda a olhar para o umbigo e para a propaganda chinesa, fechou o país ao exterior (só entravam residentes e nacionais, com quarentena), convidou os turistas chineses (há lá muitos) e japoneses a regressarem a casa sem demoras, encerrou as escolas e universidades por umas tantas semanas, as máscaras tornaram-se obrigatórias e eram distribuídas à população.
Taiwan nunca teve confinamento geral, mas a pronta ação inicial e a limitação de movimentos contiveram o contágio de covid nos primórdios da doença. Podemos comparar com os países europeus, Portugal por exemplo, incentivando a vinda de turistas todo o verão, a ver se tornavam inevitável uma segunda vaga. Taiwan está na meia dúzia (mal contada) de países que vai crescer economicamente em 2020.
2020 foi um ano terrível. Porém, é reconfortante que nesta crise gigante as lideranças políticas femininas tenham sido as mais admiráveis.»
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