6.11.21

Matar a sede


Bebedouro de Lisboa, 1912.
Fotografia de Joshua Benoliel, AML.
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06.11.1975 - «Olhe que não! Olhe que não!»

 


Foi há 46 anos que teve lugar o célebre frente-a-frente entre Soares e Cunhal. Durou quase quatro horas e o país parou para ver e ouvir.

Ver mais AQUI, num post do ano passado.
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06.11.1919 – Sophia

 

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O Big Metabrother

 


«A mudança de nome da casa-mãe do Facebook, Instagram e WhatsApp para Meta é mais do que um truque publicitário, é uma declaração de guerra. Zuckerberg nunca escondeu a ambição de controlo total do mundo comunicacional e, com o Meta, anuncia que chegou a sua era. Tudo se pode resumir ao uso do tempo: passando do universo físico para o metaverso, instalar-nos-íamos num mundo digital em que deveríamos trabalhar, fazer as nossas compras e pagamentos (na moeda Facebook), assistir a concertos e a filmes, ver as séries que nos oferecem, participar em jogos, comunicar com amigos, multiplicar likes, alimentar grupos, viver as nossas relações sociais e amorosas, viajar virtualmente, dormir e sonhar. Todo o tempo seria vivido dentro do metaverso, que substituiria a escola, a família e os amigos reais, a televisão e os jornais, até a natureza. No metaverso só viveremos connosco mesmos ou com os nossos avatares.

Do outro lado do espelho

Esta mudança da relação com o nosso tempo seria suportada por instrumentos de acesso à realidade virtual e aumentada, incluindo óculos e pulseiras, auscultadores, até aparelhos de eletroencefalograma acoplados em permanência nas nossas cabeças, sistemas que estão em fase de experiência e desenvolvimento desde há anos. E, como seria de esperar, este processo desencadeou algum pânico: Roger McNamee, membro do conselho de supervisão do Facebook, grita que este “capitalismo de vigilância é tão imoral como o trabalho infantil”. Frances Haugen, uma ex-diretora da equipa sobre desinformação cívica da empresa, explicou que “acredito que os produtos do Facebook prejudicam as crianças, intensificam a divisão e enfraquecem a nossa democracia” e que a empresa sabe do efeito intoxicante dos discursos de ódio mas recusa os mecanismos para os controlar, dado que reduzem a utilização da rede social. Por isso mesmo, Biden afirmava que “o Facebook mata pessoas” ao estimular o discurso antivacinas. Ora, o que importa a Zuckerberg é o tempo e a intensidade da participação no metaverso e, portanto, os discursos de ódio são só um bom negócio.

São também um perigo, como é bom de ver. O “Wall Street Journal” publicou relatórios demonstrando que o Instagram tem conhecimento de que há um aumento do suicídio de adolescentes em função da depressão provocada pelo seu confronto com imagens que endeusam um conceito de beleza que os exclui. Em função disso, a empresa atrasou, mas não desistiu, de um novo sistema para atrair menores de 13 anos. O metaverso quer engolir toda a gente.

Cretinos digitais

Em Portugal, segundo o relatório “Digital Consumer 2021”, a média de permanência nas redes sociais é hoje de 96 minutos (e de muitas mais horas no ecrã). Mas é uma média que esconde grandes diferenças que geram efeitos duradouros. Um deles, dos mais importantes, é a mudança dos sistemas de aprendizagem das crianças. É o tema do livro de Michel Desmurget, um neurocientista francês que publicou recentemente o livro “A Fábrica de Cretinos Digitais — Os Perigos dos Ecrãs para os Nossos Filhos”, que recebeu o Prémio Femina. Afirma ele que, depois de centenas de milhares de anos do processo evolutivo, arriscamo-nos agora a ter uma regressão geracional da capacidade cognitiva dos jovens. Cita dados que nos dizem que nos países desenvolvidos as crianças de dois anos vivem por dia quase três horas no ecrã, dos oito aos 12 quase cinco horas, dos 13 aos 18 quase sete horas. Assim, um aluno do 1º ciclo viveria mil horas por ano no ecrã, quase tanto tempo como o passado na escola. No secundário serão 2400 horas anuais, uma vez e meia o tempo da sua aprendizagem na escola. Atenção, os nossos filhos já vivem no metaverso.

O efeito, escreve Desmurget, é a perda de competências cognitivas e até físicas (obesidade e redução da esperança média de vida), mudando atitudes (crença acrítica na informação do ecrã) e reduzindo capacidades (de linguagem ou de concentração).

O poder do século XXI

Este caminho estava anunciado. O domínio destas empresas, a Meta, a Google e a Apple, os maiores empórios do mundo, é o poder do século XXI. Um terço da população mundial já vive todos os dias no Facebook, ou no WhatsApp, ou no Instagram, no metaverso de Zuckerberg; 90% das nossas buscas seguem o Chrome, da Google, que também detém o YouTube, o segundo motor de busca mais popular, além de fornecer o Android à maioria dos smartphones. E, como demonstrei em “O Futuro já não é o que nunca foi”, estes sistemas colonizam os nossos dados pessoais e monitorizam a nossa vida em busca do controlo total dos nossos desejos. Assim, a identidade da maior parte da população está agora ancorada no seu reconhecimento por via das plataformas das poucas empresas que constituem a oligarquia desta infraestrutura em rede.

Em 2019, no trigésimo aniversário da criação do sistema de gestão de informação da internet, o www, ou world wide web, o seu inventor, Tim Berners-Lee, lamentou a decadência deste espaço, considerando três doenças: a difusão de conteúdos maliciosos, tais como o comportamento criminoso ou a perseguição online, os modelos de negócio baseados em anúncios e que remuneram a difusão de desinformação na ânsia de captarem atenção e, finalmente, a polarização produzida pelos discursos tribais, a bufonaria. O Big Metabrother só nos diz que não podemos escapar desta prisão.»

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5.11.21

O Aeroporto



O Aeroporto da Portela, Lisboa, início da década de 50.
Fotografia de António Passaporte, CML.
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Art Garfunkel, 80

 


Art Garfunkel nasceu em 5 de Novembro de 1941 em Nova Iorque. Chega hoje portanto aos 80 este este cantor americano, neto de judeus que emigraram para os Estados Unidos no início do século XX. E ainda não parou, tem concertos anunciados para 2022.

É quase indissociável de Paul Simon, naquele que foi um dos duos musicais, que mais significativamente marcou várias gerações. Conheceu Paul na escola, quando ambos participaram em «Alice no país das maravilhas», na festa de encerramento do 6º ano do ensino básico, e continuaram colegas até ao fim do Secundário.

Em 1963, apresentaram-se oficialmente como «Simon and Garfunkel», publicaram um primeiro álbum no ano seguinte, mas foi em 1965 que emergiram para o mundo com The Sound of Silence. Continuaram juntos até 1970 e decidiram então seguir cada um o seu caminho, curiosamente depois do maior sucesso de sempre: Bridge over Troubled Water.

Reapareceram episodicamente, como em 1981 no famosíssimo concerto no Central Park de Nova Iorque, numa série de espectáculos «Old Friends», em 2003 (nos EUA), seguida por uma outra, internacional, que culminou no Coliseu de Roma com 600.000 espectadores.

Art Garfunkel também gravou muito sozinho, mas é com Simon que é geralmente recordado.









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Morte Medicamente Assistida - Já está!

 


O diploma sobre a Morte Medicamente Assistida foi hoje aprovado no Parlamento com 138 votos a favor, 84 contra e cinco abstenções.

PCP, CDS e Chega foram os únicos partidos em que todos os deputados votaram Contra.
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Vem aí um berbicacho?

 


Sondagens valem o que valem (falta muito temo para 30 de Janeiro, a direita ainda está desarrumada, etc.), mas o que esta tem de curioso é que foi feita «a quente», nos quatro dias que se seguiram ao chumbo do OE2022. E, no entanto…

«Garantida neste retrato está apenas uma maioria de esquerda no parlamento. Mesmo que a relação de forças não seja exatamente a mesma que saiu das últimas legislativas. O Bloco de Esquerda resiste melhor ao "abraço de urso" do PS e até cresce um ponto relativamente a julho passado, mesmo que ainda esteja a algumas décimas do resultado das últimas eleições (marca 8,8%). Os comunistas estão em pior posição: continuam atrás dos liberais e quase dois pontos abaixo de 2019 (a projeção é de 4,6%).

Tudo somado, os três partidos que formaram a geringonça valem neste momento quase 52%, o mesmo que nas últimas legislativas e mais 13 pontos do que a soma dos quatro partidos à direita.»

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A amolgadela de Marcelo

 


«Vinte e dois dias depois de ter admitido pela primeira vez a dissolução do Parlamento caso o Orçamento do Estado para 2022 chumbasse, Marcelo Rebelo de Sousa explicou detalhadamente as suas convicções. “A rejeição não ocorreu em qualquer momento. (...) Era um Orçamento especialmente importante, num momento especialmente importante. 2022 era um ano decisivo para a saída duradoura da pandemia e da crise”, disse nesta quinta-feira numa declaração ao país, às 20h a partir do Palácio de Belém e que todos os meios de comunicação social transmitiram em directo.

A quem criticou o seu excesso de intervenção neste processo (o líder do PCP, Jerónimo de Sousa, por exemplo, considerou-a “desadequada”, o constitucionalista Reis Novais considera que “ultrapassou os limites”), o Presidente sublinhou: “Em devido tempo, tentei dizê-lo aos portugueses. (...) Fui sempre muito claro”.

Na verdade, o Presidente da República foi o primeiro a falar na chamada “bomba atómica” quando uma das armas fundamentais do Chefe de Estado num sistema semi-presidencialista é saber gerir os silêncios (normalmente, para conservar maior margem de acção em privado). Marcelo gosta de falar, já se sabe, e precipita-se muitas vezes. Neste caso, apesar da boa argumentação que apresentou agora, Marcelo acabou por partilhar, durante todo este processo, o ónus da crise sem necessidade. O peso da decisão de dissolver uma Assembleia da República por si só já é imenso. Não precisava de aumentar o fardo.

Um Presidente da República, quando dissolve o Parlamento, fica inevitavelmente associado à solução política que se seguirá. Em 2002, Jorge Sampaio abriu caminho à maioria absoluta de direita (o PSD de Durão Barroso fez logo uma coligação com o CDS de Paulo Portas). Em 2005, abriu caminho à maioria absoluta de José Sócrates. Nestes dois casos, as eleições legislativas antecipadas deram origem a governos estáveis.

Então e agora? Vejamos, por exemplo, três cenários possíveis: uma maioria absoluta do PS, uma maioria relativa do PS, uma maioria relativa do PSD. O primeiro parece difícil (a primeira sondagem pós-chumbo do OE, que foi a da TSF/DN/JN, dizia-nos que a maior parte dos portugueses culpa o PS pela crise). O segundo cenário é uma repetição daquilo que já temos: um governo de maioria relativa que precisa de negociar orçamentos para conseguir governar com estabilidade. A questão é negociar com quem? PAN será suficiente? PCP e BE já saltaram fora (o próprio Presidente reconheceu esta quinta-feira no seu discurso que o chumbo do OE mostrou o esgotamento da “geringonça"). O terceiro levanta as mesmas mas dúvidas: a quem se aliará o PSD se a ajuda do parceiro natural, o CDS, e da Iniciativa Liberal não for suficiente?

As incógnitas são grandes (“um berbicacho”, nas palavras de Marcelo), mas sabemos que qualquer que seja a solução governativa ficará colada, para a História, a este Presidente. O social-democrata, que conseguiu fazer um primeiro mandato gerindo exímios equilíbrios, arrisca-se a espalhar-se ao comprido. Ou, sem tanto exagero, arrisca-se a ficar com uma grande amolgadela neste segundo mandato. Na quarta-feira, à saída da reunião do Conselho de Estado que discutiu a dissolução do Parlamento, na Cidadela de Cascais, Marcelo, ao volante, bateu com o seu próprio carro num pilar a fazer marcha-atrás. Foi uma amolgadela ligeira apesar do estrondo. Um prenúncio do que aí virá?»

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4.11.21

Alfama

 


Vendedor ambulante de azeite em Alfama, Lisboa, Anos 50/60.
Fotografia de Artur Pastor, AML.
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Morte medicamente assistida

 


José Manuel Pureza durante a reapreciação do veto à lei da morte medicamente assistida, hoje, na AR. A votação terá lugar amanhã.
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Mais oportuno é difícil

 

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O tempo dos oráculos

 


«Vai por aí uma campanha destinada a tentar fazer as forças de esquerda pagar a ousadia de, desta vez no seu conjunto, votarem contra o Orçamento de Estado (OE). É o tempo dos oráculos da desgraça. Tempo de vésperas para quem sonha com uma maioria absoluta ou para os que, nas direitas, se digladiam na excitação precipitada de um regresso ao poder.

Abundam os intérpretes de tal sabedoria oracular. São os ideólogos do centrismo e da direita que se acobertam sob o manto solene da “ciência política”; são os corifeus do neoliberalismo que se atropelam como comentadores; são os influencers habituais da governança e dos negócios na imprensa; nem faltam, à mistura, a sentença de algum lente ou o clamor dos “históricos” do costume.

Segundo os oráculos, nem é preciso votar. A coisa já está decidida e a sentença antecipada: a esquerda consumir-se-á no fogo dos infernos e o regresso ao bloco central ou à direita desenha-se certo nos despojos da razão. O voto esclarecido dos eleitores não é relevante. Importa sim intimidá-lo, manipulá-lo, remeter quem falou à punição do silêncio.

Impõe-se, portanto, falar. E dizer que esta vaga oracular assenta num punhado de fábulas mistificadoras que convirá esclarecer.

1. A primeira consiste em decretar como verdade intangível que se deve votar qualquer OE independentemente do seu conteúdo. Ousar votar contra um OE por se considerar que ele não serve os interesses do país é, diz-se, uma “irresponsabilidade” que implica eleições. É certo e sabido que há outras soluções constitucionalmente possíveis. Foi a chantagem articulada por primeiro-ministro e Presidente que nos trouxe a crise política. Crise que o Presidente em 2020 obstaculizou e agora permitiu, satisfazendo uma pretensão do chefe do Governo que vinha desde 2019.

2. A segunda é a de que o Governo “cedeu tudo o que podia ceder” para salvar o OE. Mas os esclarecimentos que têm vindo a lume desmentem liminarmente essa fantasia. Há nisto um histórico e um presente. O histórico diz-nos que Costa, ao recusar em 2019 um acordo escrito com o Bloco, trocou a chamada “geringonça” pela governação de quem tem, não tendo, uma maioria absoluta. O presente mostra-nos duas coisas: que o Governo não cumpriu aquilo com que se comprometera e enfeitou o presente OE de promessas esvaziadas (a pseudo dedicação exclusiva no SNS) ou mostrou absoluta intransigência onde podia ter compromissos (a recusa na reposição das indemnizações por despedimento). Na sua velha obsessão pela maioria absoluta, esta foi uma crise desejada por António Costa.

3. A terceira é a dramatização demagógica daquilo que perdem os funcionários públicos ou os pensionistas por o OE não passar. Acontece que o Governo em funções pode e deve, mesmo sem aprovação do OE, proceder aos aumentos e atualizações anunciados para cada um destes casos. Sendo que a subida de 0,9% nos salários da função pública (com uma desvalorização real dos salários de cerca de 10% provocada por uma década de congelamento) ou de dez euros nas pensões mais baixas surge como uma esmola absolutamente insuficiente, que será aliás engolida pela inflação prevista para 2022.

4. A quarta, que faz furor no comentário político dos oráculos, é de que a esquerda que hoje não se entende não será solução para uma maioria futura. É um argumento surpreendente, pois é a direita que parece estar triplamente descredibilizada. Desde logo, porque é ela que se esfarela em cruentas lutas intestinas para saber quem apresenta ao ato eleitoral: é uma direita sem rosto e com candidatos vulnerabilizados. Depois, porque esta direita traz às costas a sinistra memória do troikismo, agora com a ajuda da extrema-direita racista. Finalmente, porque, para governar, as direitas todas juntas precisam de maioria absoluta e parecem estar longe dessa possibilidade.

Tudo dito, deixemos assentar a poeira. Não creio que a esquerda, que teve a ousada sensatez de recusar um OE que não serve o país, se deixe intimidar pelo tropel dos oráculos. É tempo de apresentar as suas propostas e o seu programa para responder positivamente à inquietação e descontentamento que se difundem. É tempo de serenamente esclarecer e mobilizar a opinião pública sem requisitórios sectários e inúteis, em busca de uma relação de forças capaz de suportar um novo rumo de políticas. Provavelmente será um combate difícil. Mas o povo é quem mais ordena e, afinal de contas, para a esquerda socialista e emancipatória, nunca houve combates fáceis.»

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3.11.21

Mouraria

 


Série “De volta à Cidade”. Mouraria, Lisboa, décadas de 50/60.
Fotografia de Artur Pastor.
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COP26 –vergonha alheia

 



Querem salvar os homens do futuro, mas sem os vivos do presente. Horror e vergonha.
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Portugal aguenta uma maioria absoluta?

 


«Postulado: em 2015 um PS em maioria absoluta não tinha aplicado mais de metade das medidas contra a austeridade que vieram a acontecer com a "geringonça".

Alguém tem coragem de desmentir esta afirmação?...

Lembremo-nos de que nessa época a União Europeia, o FMI, o Banco Central Europeu, o Presidente da República, as confederações patronais, os partidos da direita e os comentadores mais influentes nos media berravam em uníssono por manter a orientação geral das políticas de Pedro Passos Coelho e da troika. Admitia-se um alívio lento e a conta-gotas da austeridade, mais nada.

A pressão elitista era enorme para adiar aumentos de pensões, para impedir a subida de salário mínimo, para deter a reposição de salários na função pública - tudo medidas aplicadas em 2016, logo com o primeiro orçamento desse governo em minoria.

A própria campanha eleitoral de António Costa foi feita na base da tentativa de demonstrar que o PS, liderado por ele, era diferente do PS "despesista" de Sócrates.

Dentro do próprio PS inúmeros dirigentes destacados achavam, disseram e escreveram que as medidas impostas ao PS por Bloco, PCP e Verdes iam atirar o país para uma nova crise económica - e nem deram a mão à palmatória quando as subidas da taxa de crescimento real do PIB (dados do INE) atingiram, em 2017 e 2018, os melhores resultados de sempre desde o ano 2000.

No segundo orçamento António Costa teve de ceder a PCP e Bloco (coisa que não faria em maioria absoluta) em pontos como, por exemplo, aceitar uma maior subida do valor das pensões.

E a história repetiu-se em todos os orçamentos seguintes: aquilo que o PS elaborou em cada uma das propostas levadas ao parlamento, aquilo que aprovaria sem discussão se fosse maioria absoluta, teve alterações substanciais (houve um ano em que chegaram a ser mais de 250 mudanças à proposta de orçamento inicial) negociadas com esses partidos e também com o PAN.

Mesmo assim juntou-se à direita em inúmeras votações. Por exemplo: contra leis de trabalho propostas por PCP e BE, para impedir a redução do número de alunos por turma ou para voltar a pôr o Estado a controlar os correios.

Essa necessidade de negociação permanente moderou o ímpeto do PS para abusar do poder, como inevitavelmente aconteceria se estivesse em maioria absoluta.

Essa necessidade de negociação permanente obrigou o PS a não ser totalmente surdo às expectativas da população.

Essa necessidade de negociação permanente obrigou o PS a ser mais ponderado nas opções que tomou.

Mesmo com muitos defeitos, com terríveis incapacidades, mesmo com abusos, incoerências e derivas pateticamente autoritárias, mesmo com o exagerado e prejudicial seguidismo da Comissão Europeia, o governo minoritário PS obrigado a negociar no parlamento foi claramente melhor para o país do que teria sido um governo PS de maioria absoluta, deixado à rédea solta, entregue apenas ao tráfico de influências do poder económico, às exigências brutalizadas dos credores do país e aos humores variáveis de Bruxelas.

O mesmo aconteceria, claro, se o PSD tivesse maioria absoluta.

Um governo de maioria absoluta é, ainda, o melhor alimento para o crescimento do extremismo de direita, que se alimenta da revolta contra a escalada de corrupção (e com milhões da Europa a chegar, esse problema aguça-se) e da captura do Estado pelo partido do poder, o que sempre acontece com essas maiorias.

A "geringonça" foi uma solução governativa estável, ultrapassou uma legislatura e durou seis anos, o que é mais do que razoável. Foi mais resistente e teve menos sobressaltos políticos internos do que as coligações governamentais PSD-CDS.

Por isso, o sucesso da "geringonça" resolveu em 2015 uma questão do regime pendente desde 1976: agora é sempre possível formar governos estáveis com apoios à esquerda ou à direita, sem necessidade, para ter estabilidade governativa, de garantir maiorias absolutas. Por isso, seja qual for o próximo resultado eleitoral, nascerá daí um governo com viabilidade para uma legislatura.

É, até, bastante melhor ter governos estáveis mas pressionados no parlamento por não terem maioria do que arrogantes governos "absolutistas", autossuficientes, autocomplacentes e autistas para o país.

Postulado: eleições antecipadas não são, em si, um problema para Portugal, mas se daí resultar uma maioria absoluta, então o país defrontará uma tragédia.»

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Era tão bom, não era?

 

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2.11.21

Marcelo presidente



 

Helena Garrido
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Jorge de Sena, 02.11.1919

 

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É isto, não só mas também

 

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Capacete & Galochas, Lda.

 


«Quando amanhã se sentarem diante de Marcelo, pode ser que algum dos conselheiros de Estado se lembre de que o pão cai quase sempre com a manteiga para baixo, que é como quem diz: o que pode correr mal vai mesmo correr mal - e, no nosso caso, no pior momento possível. Seja qual for o resultado das eleições, espera-nos um aumento geral dos preços e, durante meses, a escassez ou a demora de alguns produtos de consumo corrente.

Antes de se pronunciarem sobre a crise política caseira, os conselheiros hão de ouvir a senhora Lagarde, do Banco Central Europeu, advertir que a míngua de produtos químicos, madeira, plástico, metais e chips vai subir preços, alimentar a inflação e, logo, as taxas de juro que pagamos pela dívida. Há uma semana, já o Banco da França prevenira que os problemas de abastecimento são generalizados na construção, na indústria e, especialmente, na produção automóvel, confirmando o registo da associação europeia de componentes segundo a qual há atrasos na produção de mais de 500 mil veículos. Quem imaginaria que nos países mais ricos do mundo, no período mais consumista do ano, fosse difícil comprar alguns produtos (materiais de construção, tecnologia, químicos, automóveis, matérias-primas... e até brinquedos)?

Coroámos a globalização, mas algo vai mal nesse reino quando, podendo trocar de carro, temos de esperar nove meses para receber o novo; quando grandes navios de contentores fazem fila por mais de uma semana, em enormes engarrafamentos nos principais portos do mundo ocidental. É a globalização que vacila quando até na indústria de brinquedos há empresas que não sabem se os seus produtos chegarão a tempo para a lucrativa campanha de Natal; e quando as fábricas de automóveis param porque não têm semicondutores, ou as obras atrasam por falta de madeira, alumínio ou aço. A globalização tem êxito quando baseia a sua capacidade de atender às necessidades dos consumidores a um preço razoável e em curto período de tempo. Ou seja, o mecanismo funciona quando há estabilidade nos preços da energia (e não há) e a produção viaja sem problemas, principalmente de países de mão-de-obra barata para países de rendimento médio e alto. Acontece que o ciclo mudou e a pandemia, mais do que areia, foi o pedregulho na engrenagem que estrangulou o comércio mundial, sobretudo quando foi preciso encerrar fronteiras e fábricas. No Extremo Oriente trabalha-se aos soluços desde há dois anos, e a retenção de matérias-primas para uso próprio de países como a China, aliada à alta de preços, também não ajuda.

O gargalo que estrangula as cadeias de distribuição tem vários efeitos, ao mesmo tempo: inflaciona os preços das principais matérias-primas (industriais e agrícolas); atrasa a entrega dos produtos aos consumidores, em virtude de congestionamento do transporte que, por sua vez, o encarece; agrava os custos com pessoal por falta de mão de obra especializada (camionistas, por exemplo) e, naturalmente, aumenta as reivindicações sindicais não só em salários, mas também em melhores condições de trabalho. Depois de décadas de deslocalizações industriais, para fazer mais por menos graças à mais barata mão-de-obra asiática, os europeus não esquecem a chegada caótica de aviões chineses para nos abastecer de máscaras e ventiladores. Daí que a União Europeia apele à reindustrialização, para ser mais autossuficiente, pelo menos em áreas essenciais como a saúde. A palavra soberania volta a estar na moda. Capacete e galochas, eis a indumentária que a estação recomenda.»

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1.11.21

As multidões do «Novo Normal»

 


A COP26 conta com 25.000 participantes em Glasgow, a Web Summit de Lisboa espera que por lá passem 40.000 pessoas.

Embora possa haver mil boas razões para estes números, as mesmas escapam-me. É tudo isto compatível com um mundo em estado pandémico e que se pretende ecológico? São nulas as hipóteses de se espalharem variantes do Corona por centenas de aeroportos, milhares de voos e de hotéis, por muitos controles que sejam feitos? É assim que se dão lições para que sejam evitadas ao máximo pegadas que destruam a Terra que dizemos querer salvar de «morte» certa?

Não sei. Alguém saberá – ou não.
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Lisboa era assim antes de 1 de Novembro de 1755

 


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Eu sou como estes edifícios

 


«Dois amigos. Ele, um rapaz da periferia. Ela, mulher aposentada. Falam-me, em momentos diferentes, das fachadas da Lisboa pombalina. “Isso tudo aqui, esses prédios, faz-me pele de galinha. Mete respeito”, diz-me ele, subimos a Rua Nova do Almada. “Respeito ou medo?”, pergunto. Desvia o olhar e não responde. Mais tarde, sentados numa esplanada no Chiado, explicará que não se sente dali. O seu país é o bairro de onde sai pouco, nas franjas da cidade. Um passeio na Baixa é uma ida ao estrangeiro.

Olha por cima do ombro, inquieto, como se, a qualquer momento, alguém lhe viesse dizer que desapareça. Perante a sua expressão de desconforto, os modos hesitantes, é irónico imaginar que a sua figura pudesse ser ameaçadora para alguém. Quem visse nele uma ameaça talvez não imaginasse que era ele quem se sentia acossado pela paisagem. Quantas cidades existem numa cidade? O centro de Lisboa é, para muitos dos que nasceram na cidade, um lugar hostil, ao qual não sentem pertencer, embora não exista um mapa que contenha o perímetro no qual nos sentimos acolhidos, ou que defina o ponto além do qual nos sentimos sem pé.

À mesa da cozinha, uma amiga recorda o momento mais triste da sua vida. É a Lisboa dos anos da troika, e perdera tudo. Subia a Avenida Fontes Pereira de Melo quando estacou frente aos prédios. “Por fora, a fachada estava intacta. Por dentro, estava tudo escalavrado. Eu ia ali na rua, parei, e pensei: eu sou como estes edifícios. Sabes, nunca ninguém me conheceu. Ninguém me conhece.” As fachadas eram mulheres como ela, intactas por fora, vazias, despejadas, escavacadas por dentro, mulheres a quem só restava, como ponto de honra, o seu lugar na avenida, orgulhosas e destruídas, bonitas por fora, nada por dentro. Os empreiteiros haviam-nas poupado à demolição, talvez porque a fachada é a última coisa numa mulher que se destrói. Obra embargada, um dia encheriam de carne o interior destruído. Mas, como mulher desfeita pela vida, a segunda história não apaga a primeira.

Caminho de memória por Lisboa e vejo nos edifícios pessoas — amigas, inimigas, compassivas, odientas, hospitaleiras, hostis. Lembram-me pessoas, os edifícios. A cidade é esta família de pedra e cal, que talvez goste menos de nós do que pensamos, mas que nos habituámos a acreditar que nos estima. Estranho espelho, os edifícios, que magnifica a tragédia ou a apazigua, que nos protege até quando nos fecha a porta, que revela o nosso lugar quando fingimos não o ter já percebido. Talvez as cidades não sejam como famílias, mas à nossa imagem, e o que vemos na cara das fachadas seja o que não queremos ver na nossa cara. Trocava todos os livros do mundo por conhecer os meus amigos.»

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31.10.21

O Vaga-lumes

 


Praça do Comércio, Lisboa (fim do séc. XIX)
Fotógrafo desconhecido, AML.

(Os primeiros 26 candeeiros a gás terão sido inaugurados em Outubro de 1848, no Chiado.)
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Assim vamos iguais a nós próprios


 

Tanta gente horrorizada, estarrecida, escandalizada, ameaçadora, porque uns traíram à esquerda e alguns continuam a bater com várias portas à direita. Todos mais ou menos com vocação de Zandinga, mas firmes na convicção de que um cataclismo se abaterá sobre nós lá para Janeiro. Por culpa de «outros», evidentemente.
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Carlos Drummond de Andrade


 

Nasceu num 31 de Outubro, há 119 anos.
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O espelho partido da diplomacia

 


«Começa amanhã a 26.ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas para as Alterações Climáticas. O secretário-geral, António Guterres, não tem cessado de alertar para o provável insucesso de mais esta reunião. As fugas de informação vão revelando alianças na sombra entre países e setores económicos, do Brasil à Austrália, passando por Arábia Saudita. Argentina e Japão, entre outros. Numa total indiferença para com o esmagador avanço do conhecimento científico - e a prova do seu rigor, que a realidade objetiva não cessa de confirmar -, muitos Estados e setores económicos instalados, do carvão e do petróleo à carne e à agricultura intensiva, passando pelo nuclear e a geoengenharia, estão firmemente organizados para deixar que a trajetória de colisão entre este modelo de globalismo predatório com os limites ambientais do nosso planeta continue a acelerar.

No passado, os pensadores ocidentais sustentaram que o impulso para a autopreservação era a base do acordo político. Contudo, o próprio Thomas Hobbes recordou-nos que a vontade de domínio pode ainda ser mais poderosa, rasgando todos os limites para se perpetuar. Aqueles que se espantam por as leis da física, evidenciando o profundo e vertiginoso desequilíbrio do Sistema-Terra causado pela ação antrópica, serem ignoradas com desprezo pelos poderosos do mundo, esquecem o alerta de Hobbes, no Leviatã (1651): se Euclides constituísse uma ameaça aos detentores do poder, estes fariam tudo para queimar os livros de geometria...O que o fracasso de mais uma cimeira climática irá revelar é o colapso das políticas públicas à escala mundial. A globalização neoliberal do início dos anos 1980, iniciada ao mesmo tempo com Deng Xiaoping, Thatcher e Reagan, entregou este precioso e ímpar planeta à voragem predatória de uma economia extrativa e primitiva, quando comparada com a complexidade do software que a natureza desenvolveu ao longo de milhões de anos. Os governos transformaram-se em meros facilitadores. Nestes últimos 40 anos, o novo e turbinado mercado global causou mais danos na ecologia da Terra do que os milhares de anos anteriores da história humana. Os sucessivos protelamentos das decisões necessárias conduziram ao atual caos instalado. Todos os Estados e interesses querem combater as alterações climáticas, desde que sejam os outros a fazer sacrifícios, e eles, pelo contrário, possam obter bons negócios e conquistar novos mercados.

A anarquia madura do sistema internacional, sobre a qual Adriano Moreira há tantos anos lucidamente escreve, transformou-se num pandemónio declarado. O Acordo de Paris foi sempre uma criatura imperfeita: sem a natureza de um tratado (apenas para permitir a entrada dos EUA de Obama, incapaz de vencer a oposição no Senado); sem metas nem obrigações vinculativas; sem sanções para os prevaricadores. Se o fracasso anunciado de Glasgow se concretizar importará reconhecer que o Acordo de Paris, na sua atual forma, está esgotado. Fingir que uma monstruosa caricatura de acordo é melhor do que acordo nenhum, é um erro político que só ajuda aqueles que pretendem simular preocupação, mas se recusam a agir.Se queremos defender o chão dos nossos filhos teremos de ousar outro caminho. A diplomacia também conhece os meios de tornar obrigatória a cooperação entre potenciais inimigos. Mas para isso importa partir o espelho dos falsos consensos, encontrar os aliados confiáveis e reconstruir as regras do jogo.»

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