4.11.21

O tempo dos oráculos

 


«Vai por aí uma campanha destinada a tentar fazer as forças de esquerda pagar a ousadia de, desta vez no seu conjunto, votarem contra o Orçamento de Estado (OE). É o tempo dos oráculos da desgraça. Tempo de vésperas para quem sonha com uma maioria absoluta ou para os que, nas direitas, se digladiam na excitação precipitada de um regresso ao poder.

Abundam os intérpretes de tal sabedoria oracular. São os ideólogos do centrismo e da direita que se acobertam sob o manto solene da “ciência política”; são os corifeus do neoliberalismo que se atropelam como comentadores; são os influencers habituais da governança e dos negócios na imprensa; nem faltam, à mistura, a sentença de algum lente ou o clamor dos “históricos” do costume.

Segundo os oráculos, nem é preciso votar. A coisa já está decidida e a sentença antecipada: a esquerda consumir-se-á no fogo dos infernos e o regresso ao bloco central ou à direita desenha-se certo nos despojos da razão. O voto esclarecido dos eleitores não é relevante. Importa sim intimidá-lo, manipulá-lo, remeter quem falou à punição do silêncio.

Impõe-se, portanto, falar. E dizer que esta vaga oracular assenta num punhado de fábulas mistificadoras que convirá esclarecer.

1. A primeira consiste em decretar como verdade intangível que se deve votar qualquer OE independentemente do seu conteúdo. Ousar votar contra um OE por se considerar que ele não serve os interesses do país é, diz-se, uma “irresponsabilidade” que implica eleições. É certo e sabido que há outras soluções constitucionalmente possíveis. Foi a chantagem articulada por primeiro-ministro e Presidente que nos trouxe a crise política. Crise que o Presidente em 2020 obstaculizou e agora permitiu, satisfazendo uma pretensão do chefe do Governo que vinha desde 2019.

2. A segunda é a de que o Governo “cedeu tudo o que podia ceder” para salvar o OE. Mas os esclarecimentos que têm vindo a lume desmentem liminarmente essa fantasia. Há nisto um histórico e um presente. O histórico diz-nos que Costa, ao recusar em 2019 um acordo escrito com o Bloco, trocou a chamada “geringonça” pela governação de quem tem, não tendo, uma maioria absoluta. O presente mostra-nos duas coisas: que o Governo não cumpriu aquilo com que se comprometera e enfeitou o presente OE de promessas esvaziadas (a pseudo dedicação exclusiva no SNS) ou mostrou absoluta intransigência onde podia ter compromissos (a recusa na reposição das indemnizações por despedimento). Na sua velha obsessão pela maioria absoluta, esta foi uma crise desejada por António Costa.

3. A terceira é a dramatização demagógica daquilo que perdem os funcionários públicos ou os pensionistas por o OE não passar. Acontece que o Governo em funções pode e deve, mesmo sem aprovação do OE, proceder aos aumentos e atualizações anunciados para cada um destes casos. Sendo que a subida de 0,9% nos salários da função pública (com uma desvalorização real dos salários de cerca de 10% provocada por uma década de congelamento) ou de dez euros nas pensões mais baixas surge como uma esmola absolutamente insuficiente, que será aliás engolida pela inflação prevista para 2022.

4. A quarta, que faz furor no comentário político dos oráculos, é de que a esquerda que hoje não se entende não será solução para uma maioria futura. É um argumento surpreendente, pois é a direita que parece estar triplamente descredibilizada. Desde logo, porque é ela que se esfarela em cruentas lutas intestinas para saber quem apresenta ao ato eleitoral: é uma direita sem rosto e com candidatos vulnerabilizados. Depois, porque esta direita traz às costas a sinistra memória do troikismo, agora com a ajuda da extrema-direita racista. Finalmente, porque, para governar, as direitas todas juntas precisam de maioria absoluta e parecem estar longe dessa possibilidade.

Tudo dito, deixemos assentar a poeira. Não creio que a esquerda, que teve a ousada sensatez de recusar um OE que não serve o país, se deixe intimidar pelo tropel dos oráculos. É tempo de apresentar as suas propostas e o seu programa para responder positivamente à inquietação e descontentamento que se difundem. É tempo de serenamente esclarecer e mobilizar a opinião pública sem requisitórios sectários e inúteis, em busca de uma relação de forças capaz de suportar um novo rumo de políticas. Provavelmente será um combate difícil. Mas o povo é quem mais ordena e, afinal de contas, para a esquerda socialista e emancipatória, nunca houve combates fáceis.»

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