26.11.22

Cafés

 


Café Majestic, Arte Nova, Porto, 1916 (inaugurado em 1921).
Arquitecto: João Queirós.


Daqui.
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Entretanto no Irão



 

Farid Vahid no Twitter: Admiração e respeito pela juventude do Irão que, apesar da repressão sangrenta, das prisões, das agressões e das lutas, continua o combate pela liberdade. 
Imagens impressionantes da universidade de Ispahan, 26 de Novembro. #MahsaAmini
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26.11.1967 – As cheias de Lisboa

 


«Na madrugada do dia 26 de Novembro de 1967, a região de Lisboa foi palco da ocorrência de fortes chuvadas que originaram 300 mortos, milhares de desalojados e a destruição de inúmeras habitações. A imprensa da época noticia a tragédia, de que transcrevemos alguns excertos.

“Lisboa mais abastada seguia para o cinema ou refastelava-se na poltrona caseira, assistindo ao famigerado folhetim 'Gente Nova' da RTP, à espera de mais uma aventura do 'Santo'. A Lisboa menos favorecida estava no café para a bica, ou ficara no bairro suburbano, julgando que o seu fim-de-semana iria ser igual aos outros. Quando o Roger Moore chegou aos receptores, já os tectos humildes começavam a meter água, as ruas pareciam rios, as praças, lagos; e os cinéfilos, bloqueados nos engarrafamentos de trânsito haviam esquecido o Éden ou o S. Jorge e pensavam na melhor maneira de voltar a casa.

Há doze horas que chovia. Os colectores não davam vazão à enxurrada e, logo que a maré do estuário onde eles despejam as águas que vão correndo pela cidade atingiu a sua altura máxima, já não se sabia onde acabava o Tejo e começava Lisboa.” (Flama, n.º 1030, Edição Extra, 1 de Dezembro de 1967, pág. 4)

“Como aconteceu? Como aconteceu? Repete-se a questão. Foi na madrugada de 25 para 26 de Novembro, de sábado para domingo. Chovia. É normal, no Inverno. Poderia ter sido uma chuva benéfica, capaz de abrir em frutos novos muitos campos. Mas não foi. Para muita gente (demasiada gente) ela foi a desgraça ou a morte. Ninguém sabe exactamente a que horas aconteceu a tragédia. Os ponteiros de muitos relógios agora parados indicam vários instantes precisos para diversas localidades. Duas e cinco aqui, uma e cinquenta e três acolá, três e treze noutro lugar. Poderá ter sido bastante mais cedo: pouco antes de terminar a festa que para milhões de espectadores ainda é a TV.” (Flama, n.º 1031, 18 de Dezembro de 1967, pág. 40-41)»

(De uma página da Protecção Civil de Lisboa no Facebook)


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Os hipócritas que falam de “hipocrisia” na condenação do Qatar

 


«A acusação de “hipocrisia” a propósito das críticas ao “futebol” corrupto do Qatar é particularmente interessante e reveladora, repetida em editoriais de jornais de negócios, no conglomerado mediático do Observador, em artigos e intervenções de comentadores, e por gente como Relvas, que passou de apoiar Bolsonaro para se sentir “não hipócrita”, com a superioridade moral que se lhe reconhece.

Sim, há muita hipocrisia, muito duplo critério, distribuído por todo o espectro político, à esquerda e à direita, e, de um modo geral, mais indiferença do que hipocrisia. O PCP indigna-se com a prisão de dois dirigentes da Juventude Comunista Leninista da Ucrânia, os irmãos Mikhail e Aleksander Kononovich, e denuncia as perseguições aos comunistas pró-russos ucranianos, e eu serei a última pessoa a pôr as mãos no fogo sobre o respeito dos direitos humanos por parte dos dirigentes ucranianos. Desde o primeiro dia da invasão que escrevi que vinha aí uma era de violência, sequestros, assassinatos, tortura, repressão sem lei, agravada pela própria invasão, que torna objectivamente uma parte dos comunistas ucranianos pró-russos em traidores em situação de guerra. Mas apoio vivamente todas as denúncias desses crimes por instituições credíveis de vigilância às violações de direitos humanos. E o PCP não tem nada a dizer sobre os milhares de presos políticos na Rússia, os assassinatos do FSB dos opositores russos, o encerramento de instituições que denunciaram o Gulag como o Memorial? E, para irmos mais à actualidade, nem uma palavra sobre os crimes russos na Ucrânia, que, mesmo que se desconte alguma desinformação, são crimes de guerra sistemáticos, ou seja, parte do plano militar do Exército russo? Sim, a hipocrisia está bem distribuída.

Mas o caso do Qatar, que nos envolve directamente como cúmplices, está cada vez mais imerso no ambiente tribalizado em que vivemos. Tornou-se um caso de incómodo do outro lado do espectro político, a direita radical, que cada vez mais é a nossa única e mais agressiva direita.

Voltemos à hipocrisia. Quando se passa da indiferença e do olhar para o lado para denunciar o que deve ser denunciado, passa-se de uma coisa má para uma coisa boa. Denunciar o que se passa no Qatar é a atitude justa, e, se no passado ou no presente se somaram (e somam) silêncios injustos, a última coisa que quero é diminuir o valor de se estar a fazer bem hoje. Mas o “fazer bem de hoje” incomoda por alguma razão, daí a acusação de “hipocrisia”.

Mesmo quando, de forma displicente, admitem que todas as acusações ao Qatar são verdadeiras, e que a ida do trio Presidente da República-primeiro-ministro-presidente da Assembleia da República é errada, a parte mais significativa do que dizem é denunciar a “hipocrisia” da atitude de denúncia. De quem? Dos outros, e percebe-se bem, logo pelos exemplos de Cuba e da Venezuela, quem são os outros. Os que centram a sua posição face ao modo como tudo se passou no Qatar na acusação de hipocrisia é porque estão mais incomodados com alguma coisa de cá para serem indiferentes ao que se passa lá. A chave das críticas de “hipocrisia” está cá, a motivação está cá, o Qatar é o pretexto de lá.

A questão é simples: a direita radical acha que falar muito de direitos humanos é uma coisa de esquerda. Se for para denunciar os abusos de Cuba ou da Venezuela, ou as violências históricas da URSS, está tudo muito bem, faz parte do cânone. Mas, fora dessa geografia do “comunismo”, qualquer insistência na denúncia dos direitos humanos ofende a admiração da direita radical por aquilo que pensam ser a Realpolitik, ou seja, aceitar o mundo como está, na parte “ocidental” desse mundo.

Os direitos humanos, fruto, no entender dos ideólogos da direita, do carácter perverso da Revolução Francesa, que incluía a “igualdade” na sua trilogia histórica, têm uma história atribulada, desde a escravatura à violência ideológica e política do nazismo e do comunismo no século XX. Mas uma democracia não vive só da expressão da vontade popular pelo voto – vive das liberdades, da fraternidade como modo de convivência e solidariedade, mesmo entre opostos, do combate à desigualdade e, fundamentalmente, do respeito pelos direitos humanos.

Denunciar o papel de uma actividade supostamente lúdica e nobre, como é o desporto, na caução de um regime que viola todas estas regras do viver, conquistadas com muito sangue nos últimos séculos, é um dever. Quem se incomoda com esse dever melhor faria em não ser hipócrita e dizer com clareza ao que vem. E, depois, deviam ler uma das partes magníficas da Divina Comédia em que Dante fala dos hipócritas a andar esmagados pelas suas capas de chumbo, por baixo do ouro que as revestia.»

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Os camelos no Qatar

 

Expresso, 25.11.2022

Quando estive em Doha, vi cavalos em habitações com ar condicionado e piscinas privativas. Mas há mais…

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25.11.22

Black Friday?

 

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O Maestro de 25 de Novembro de 1975

 


Um texto de Carlos Matos Gomes, imprescindível, e que pode ser lido AQUI.
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25 de Novembro

 



Sempre nesta data.
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Selecção de futebol vai ser apoiada nos cafés e esplanadas portuguesas



«Há uma verdadeira ponte aérea institucional de Lisboa a caminho do Catar. A coisa não se faz por menos e vão três. Presidente da República, Presidente da Assembleia da República e primeiro-ministro. Mas os caros leitores percebem porquê? Será o gás? Será o petróleo? Serão as duas coisas? As três primeiras figuras institucionais do país e do Estado vão ao Catar fazer o quê? Apoiar a selecção no Mundial de Futebol! OK, mas é preciso uma representação tão dimensionada para apoiar a selecção portuguesa de futebol? Dada a circunstância do país que é, e que parece ter tudo no seu radar menos os direitos humanos, era necessário este rodopio institucional? Um discreto secretário de Estado do Desporto não chegaria? Acham mesmo que é preciso uma representação tão avantajada para apoiar a selecção? E não há outras formas de apoio?

O presidente norte-americano, Joe Biden, fez uma imaginativa e divertida chamada vídeo com toda a equipa de futebol norte-americana. Desejou-lhes boa sorte, toda a equipa bateu palmas e o apoio institucional cumpriu-se na maravilha. E os tweets tão usados noutras situações e com tanta eficácia mediática não seriam uma boa solução para poupar umas horas de voo ao Falcon e fazer boa gestão dos nossos impostos? Ou será que as nossas três primeiras instituições políticas rivalizam entre si e vão ao Catar em busca daquele minuto de presença nos Telejornais, associando, assim, a política ao futebol, uma receita tão eficaz na projecção mediática.

E, depois, os caros leitores acham que ir a França apoiar a selecção é o mesmo que ir ao Catar como deixou entender o primeiro-ministro? A França é um país democrático, onde existe liberdade de imprensa. Sindicatos que defendem os interesses dos trabalhadores, tribunais independentes, um país onde as mulheres têm, praticamente, os mesmos direitos que os homens. Nada disto acontece no Catar. Não há liberdade de imprensa. As mulheres para estudarem, trabalharem, viajarem, casarem, precisam de autorização do pai, do marido, do irmão. As relações sexuais fora do casamento são penalizadas com penas de prisão até sete anos. O Catar é o país onde o Ministério do Interior mandou prender gays, lésbicas, bissexuais, transgéneros. O Catar é o país onde quem "espalhar notícias falsas" ou " conteúdos que "violem valores ou princípios sociais" pode ser condenado a três anos de prisão e 140 mil euros de multa. O Catar é o país onde os estádios de futebol foram construídos com um custo da vida de milhares de trabalhadores que pereceram por excesso de calor ou falta de condições de trabalho, com passaportes apreendidos e, por vezes, vencimentos em atraso? Será, então, que as nossas primeiras figuras institucionais podem ir ao Catar apoiar a selecção nacional sem levar em linha de conta o perfil do país para onde viajam.

Esquecem que representam 10 milhões de portugueses, onde a esmagadora maioria deles, estou certo, está contra o que, política e sociologicamente, se passa no Catar. Em nome de um apoio à selecção varre-se para debaixo do tapete tudo o que é o edifício político de Doha, tão distante dos princípios do 25 de Abril a que tantas vezes recorremos. Onde está afinal a afirmação nacional da nossa identidade de valores e princípios democráticos que nos regem?

Estiveram bem o BE e a Iniciativa Liberal, o PAN e o Livre, os quatro deputados socialistas e os deputados do PSD (abstenção) que se manifestaram contra uma presença institucional no Catar. Os valores democráticos que estão na base da nossa vivência como país não servem apenas para serem usados nas datas comemorativas e para pôr o cravo na lapela.

E não é necessária uma preocupação excessiva com os apoios à selecção portuguesa de futebol. Ela tem sempre o apoio dos dez milhões de portugueses que, na sua generosidade, não deixarão de estar ao seu lado, seja qual for o resultado que consiga no Mundial. É nas esplanadas e nos cafés de todas as cidades portuguesas que vai estar o maior apoio à selecção.

E este é, seguramente, o apoio que todos os jogadores mais anseiam.»

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24.11.22

Escadas

 


Escada no edifício do Museu de Arte Nova em Riga, Letónia.
Arquitecto: Konstantīns Pēkšēns.


Daqui.
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24.11.1906 – Rómulo de Carvalho / António Gedeão



 

Rómulo de Carvalho / António Gedeão foi um grande professor de Química, que os seus alunos do Liceu Pedro Nunes e do Liceu Camões nunca esqueceram, estudioso e grande divulgador da História da Ciência, razão pela qual se celebra hoje, data do seu nascimento, o Dia Nacional da Cultura Científica.

Também poeta, autor de numerosos livros e do texto que deu vida à inesquecível canção Pedra Filosofal. Um pretexto como qualquer outro para a ouvir de novo, com a beleza de sempre e oportuna, hoje como em 1969, quando Manuel Freire musicou o poema publicado em Movimento Perpétuo (1956).



Fica também este manuscrito com parte do poema «Como será estar contente», publicado em Máquina de Fogo, 1960:


Lançar os olhos em volta, / moderado e complacente, / e tratar com toda a gente / sem tristeza nem revolta? / Sentir-se um homem feliz, / satisfeito com o que sente, / com o que pensa e com o que diz? / Como será estar contente?

Deve haver qualquer mecânica, / qualquer retesada mola / que se solta e desenrola / no próprio instante preciso, / para que um homem de carne, / de olhos pregados no rosto, / possa olhar e rir com gosto / sem estranhar o som do riso. (...)

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As «críticas» de Marcelo no Qatar

 



Marcelo afirmou, ainda em Portugal, que iria CRITICAR a falta de respeito pelos direitos humanos no Qatar. Era isto que pensava dizer? Já li, e ouvi em Doha, referências a muitas limitações ao exercício dos ditos direitos, mas nunca, expressamente, da «proibição» de acesso ao ensino a todos os níveis – a não ser a pobreza.

Se queria defender os desgraçados imigrantes que chegaram ao Qatar para contribuírem para que este feérico Mundial exista, falhou provavelmente o alvo: nem imagino quantos (alguns?) terão lá as famílias para porem os filhos em escolas ou faculdades. Mas, quando lá estive em 2012, o taxista paquistanês que me guiou pelas ruas de Doha, num carro bem velho, tinha um filho na universidade.

(Há mais mulheres no ensino superior em Portugal do que no Qatar? Olha que espanto!)
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Num país que precisa dos imigrantes



 

«São duas notícias que mostram duas faces do mesmo país: o país que precisa de imigrantes; e o país onde alguns deles encontram condições miseráveis para trabalhar.

A primeira notícia surge da apresentação pública, nesta quarta-feira, dos resultados definitivos dos Censos 2021. Perdemos 2,1% dos habitantes, redução que só tem paralelo nos anos da emigração da década de 1960. Podia ter sido pior, não fosse o assinalado aumento dos estrangeiros — 37% numa década. Hoje, por cada 100 pessoas que potencialmente saem do mercado de trabalho, apenas entram 76. A desproporção entre adultos em idade activa e idosos é cada vez maior. A população estrangeira, de perfil mais jovem do que a portuguesa, ajuda de algum modo a atenuar este cenário problemático.

Há, diz o Instituto Nacional de Estatística (INE), 524 mil estrangeiros em Portugal, 5,2% da população. Brasileiros à cabeça, depois angolanos e cabo-verdianos, mas também, cada vez mais, imigrantes do Nepal e do Bangladesh e outros países asiáticos. Percebemos a sua relevância todos os dias. Encontramos estrangeiros a desempenhar as mais variadas profissões, nos mais variados serviços.

Mas ao mesmo tempo que em Lisboa o INE esmiuçava números e tendências como estas, no Alentejo assistia-se a uma das maiores operações da PJ dos últimos anos. Objectivo: desmantelar uma rede criminosa, de estrangeiros e portugueses, suspeita de colocar imigrantes a trabalhar em campos agrícolas. Alguns a ganhar dez euros por semana.

As alegadas vítimas são trabalhadores nepaleses, timorenses, ucranianos, explorados, privados de documentos, obrigados a mendigar, amontoados em casas insalubres. “Toda a gente sabe” (é sempre o que se ouve nestes casos) que existe exploração grave de imigrantes nos campos do Baixo Alentejo. No auge da pandemia, as condições em que muitos viviam em Odemira estiveram debaixo dos holofotes. Pediu-se mais fiscalização, um plano de alojamento, mais gente a controlar as condições de trabalho. A julgar pelo que dizem hoje as ONG os problemas mantêm-se.

Sem a mão-de-obra estrangeira o país não sobreviveria, a começar pelo turismo, diz um sociólogo nesta edição. Seguramente não sobreviveriam outros sectores, caso de muitas explorações agrícolas do Sul do Alentejo – o que torna ainda mais chocante que “toda a gente saiba”, incluindo os proprietários que “subcontratam” estes trabalhadores a quem os explora, e conviva com isso.

A grande operação policial desta quarta-feira é uma boa notícia, o culminar de muitas denúncias de quem não se calou. O que ela revela envergonha-nos. Outra vez.»

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23.11.22

Prédios

 


Casa Szenes, pátio Arte Nova de um prédio de apartamentos em Budapeste, 1905-1906.
István Nagy Jr.

Daqui.
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Vinícius e Sérgio Buarque

 

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Mundial, hoje




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Como é que a rainha da Dinamarca se atreve?

 


«Até quem não é de intrigas e quer a paz no mundo, por mais plácida que seja a pessoa, não pode deixar de se indignar com a vergonhosa atitude da Dinamarca. Bem me dizem: aquele país não é de confiança, já há mais de 400 anos que sabemos das sinistras manobras na corte, o tio de Hamlet matou o irmão para casar com a mãe do nosso herói, ainda por cima andam por lá fantasmas, os conselheiros não aconselham e tudo acaba em desgraça, a coisa só se pode ter refinado entretanto, tiveram tanto tempo para agravar a sua malícia, é de temer o pior. Mas, mesmo assim, quem estava preparado para esta afronta monumental que agora nos impingem? Ninguém, isto é inimaginável.

Começaram de mansinho, só pediam que os jogadores usassem uma camisola alusiva aos direitos humanos. Matreiros, acharam que a Fifa ia cair na esparrela e, claro, receberam a chapada de uma digna e autorizada recusa. Os rapazes têm que ir de farda e continência. E insistiram, não perceberam o recado, vieram pé ante pé com mais exigências, que isto das mulheres, aquilo dos trabalhadores mortos nos escombros dos estádios, imaginem que até perguntaram pelas leis que proíbem que se seja LGBT, os dinamarqueses não se calaram. Incomodaram, isso sim. Até Macron, que gosta da pose como se sabe, acabou por ter que dizer que só vai de meia-final para cima. Outros países, cujos governos são azucrinados por opiniões públicas com manias, lá tiveram que desgraduar a visita para um qualquer Secretário de Estado. Imaginem que até as outras realezas se envergonharam e só mesmo Sua Majestade do Reino de Espanha por lá andará e deve ser visita curta, não lhe vá aparecer ao lado a Majestade Emérita que anda pelas Arábias. Agora, acham que a Dinamarca se ficou? Nada, agravou a sua insurrecta agressão ao espírito pacificador e embelezador do futebol mundial e, vai daí, anunciou que nenhum ministro ou membro do governo, nem sequer o embaixador, se fariam representar no espetáculo.

Tudo isto é, evidentemente, um truque para evitar que façamos a única pergunta que verdadeiramente interessa: e a Rainha, Sua Majestade Margarida II, como é que explica não ir ao estádio? Não sabe da bola, com regras tão simples, onze de um lado, onze do outro, uma bola por ali e uns paus com umas redes nas pontas do campo? Sabe mas não gosta? E a dignidade nacional? E o orgulho pátrio? E o espírito desportivo? Tenho para mim que a rainha, quieta lá no seu palácio, deve ter sido quem conspirou toda esta marosca.

Por isto, a atitude dos nossos Grandes é um alívio. Ao princípio vão à vez, não perdem um único jogo, primeiro o Presidente, depois o Número 2, depois o Primeiro, varrem a temporada de grupos e depois, assim espero, acotovelar-se-ão todos em cada um dos jogos seguintes que, queira o Altíssimo e o senhor engenheiro, venham a ser disputados pelos nossos rapazes. Vão ser filmados na bancada, mas sempre modestamente, o que eles querem mesmo é ir ao balneário cantar o hino nacional e deixar umas palavras inspiradoras para os alas e para os centrais, umas táticas que eles lá pensaram, não tenham dúvida de que é essa firmeza que vai lançar os heróis para a arena, vão como guerreiros depois de ouvirem as autoridades. Tenham por boa conta o que vos digo, cada golo que marcarem, e vão ser chusmas deles, vai ter a marca de Marcelo, de Augusto e de António. Nenhum outro país, ao que sei, é tão solidário com os seus jogadores, nenhuma autoridade, e não faltam por aí, tem tanto desvelo por aquele campeonato, deixem-se disso de milhares de mortos, de mulheres caladas, de imigrantes explorados, de gays e lésbicas condenados, que ninharias comparado com a grandeza da bola que desliza no relvado! Que comece o espetáculo, que os principais figurantes estão prontos e de malas aviadas.»

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22.11.22

Jarras

 


Jarra em forma de flor, de vidro soprado, cerca de 1899-1900.
Tiffany & Co, Museu de Arte Chryzler.


Daqui.
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Pablo Milanés (1943-2022)

 


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Maurice Béjart morreu há 15 anos

 


Maurice Béjart morreu em 22.11.2007. Tudo é conhecido sobre este grande, enorme, artista, mas eu recordo sempre o primeiro concerto dele a que assisti, em Lisboa, em 6 de Junho de 1968. Quem esteve no Coliseu dos Recreios nesse dia também nunca o terá esquecido.

Dois dias depois do assassinato de Robert Kennedy, veio ao palco no final do espectáculo para afirmar que Robert Kennedy fora “vítima de violência e de fascismo” e para pedir um minuto de silêncio “contra todas as formas de violência e de ditadura”. Com a maior parte dos espectadores de pé, renovaram-se os aplausos, com mais força e mais entusiasmo. Informado do sucedido, Salazar proibiu os espectáculos seguintes e ordenou que Béjart saísse imediatamente de Portugal.

Recorro sempre a um texto que escrevi sobre esse evento num livro publicado poucos meses antes da morte de Béjart.

«Em 6 de Junho morreu Robert Kennedy, vítima de um atentado que tivera lugar dois dias antes. Nessa mesma noite, em Lisboa, Maurice Béjart apresentou o seu «Ballet du XXe. Siècle», no Coliseu dos Recreios absolutamente repleto. Assistimos a um magnífico «Romeu e Julieta». Durante a última cena, ouviu-se gritar, repetidamente, "Façam amor, não façam guerra!". Simultaneamente e em várias línguas, eram lidas notícias sobre lutas, revoltas e injustiças. Foi arrepiante a emoção vivida na sala que se levantou em aplauso prolongado. Béjart veio então ao palco para afirmar que Robert Kennedy fora “vítima de violência e de fascismo” e para pedir um minuto de silêncio “contra todas as formas de violência e de ditadura”. Com a maior parte dos espectadores de pé, renovaram-se os aplausos, com mais força e com mais entusiasmo.

Informado do sucedido, Salazar proibiu os espectáculos seguintes e ordenou que Béjart saísse imediatamente de Portugal. Franco Nogueira cita uma nota distribuída à imprensa pelo Secretariado Nacional de Informação: “Foram dirigidas à juventude exortações derrotistas e tomadas atitudes de especulação política inteiramente estranhas ao próprio espectáculo. Perante a luta que teremos que manter em defesa da integridade nacional, não pode consentir-se que uma companhia estrangeira aproveite, abusivamente, um palco português para contrariar objectivos nacionais.”

Béjart nunca se referiu a Portugal. Mas Salazar era bom entendedor e bastava-lhe menos de meia palavra para perceber – como nós – que Béjart quisera deixar um sinal de solidariedade aos antifascistas portugueses.

Momentos raros como este funcionavam para nós como bálsamo e como estímulo. Ajudavam-nos a não desanimar.» (*)

(*) Joana Lopes, Entre as Brumas da Memória. Os católicos portugueses e a ditadura, Âmbar, 2007, pp. 118-119. Alguns minutos de «Romeu e Julieta»:


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Marcelo no Qatar

 


Alguém sabe se há algum canal de TV do Qatar que possa ser visto em Portugal?

(Expresso, 22.11.2022)
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O infame Infantino

 


«Gianni Infantino dirige uma das mais poderosas corporações do mundo, que não passa, no entanto, do ponto de vista do direito, de uma associação privada de federações de futebol. A FIFA detém um poder supranacional, que tem força que muitos governos, sem qualquer escrutínio democrático e público, com uma política de opacidade, imposição e impunidade sem paralelo. (Há uma outra, semelhante, a UEFA, mas esse tema fica para outros dias). A FIFA pratica um regime semelhante ao de uma ditadura musculada, opressiva e feudal.

Há algo de errado na ordem mundial quando a FIFA decreta sanções, proíbe atos de liberdade individual de jogadores ou adeptos, ameaça federações de futebol suas associadas que, essas sim por serem de "interesse público", representam países soberanos, com a exclusão de competições internacionais ou castigos desportivos ou financeiros. E, pasme-se, mesmo os países ocidentais mais "avançados" e, por isso, mais fortes, acabam por acatar as decisões da UEFA, recuando em intenções firmes e proclamações já anunciadas. Todas as federações que queriam usar a braçadeira arco-íris neste mundial para chamar a atenção dos direitos das mulheres, dos homossexuais e das minorias, foram ameaçadas e cederam. Cederam de forma cobarde e medrosa. Recuaram, com medo de enfrentar "a FIFA", essa organização que tudo decide, tudo pode e tudo manda.

A ideia de que futebol e política não se misturam, o "conceito" de que quem joga ou assiste ao mais popular desporto do mundo tem de se abstrair do contexto em que vive em nome do mais importante acontecimento desportivo do mundo, não só não serve, como, repito, castra a liberdade individual de atletas e espetadores. No fundo, em linguagem simples, o que acontece é que a FIFA manda e nós obedecemos. E quando digo nós, somos nós todos - cada um individualmente, as seleções enquanto grupo e as federações de futebol dos países que o permitem. A força do negócio, do dinheiro, dos patrocínios, de tudo o que está fora das quatro linhas é hoje muito mais importante para a FIFA do que a essência do futebol e o que fez dele o jogo mais apreciado do mundo - a célebre máxima são onze contra onze e a bola é redonda e que ganhe o melhor.

Não quero, agora, escalpelizar porque é que este mundial é no Qatar, como foi lá parar e porque é que os indignados só se lembraram da indignação a semanas da abertura do torneio. Se, na verdade, as federações de futebol tivessem bolas que não apenas as de futebol, teriam tomado posições conjuntas, afrontado o poder da FIFA, recusado participar na prova e, no limite, assumir que deixavam fugir a oportunidade de ganhar um troféu. E seriam decisões em nome da dignidade, dos direitos humanos, da decência e da igualdade. Mas deveriam tê-lo feito logo em 2010, quando a escolha foi feita. Não agora, depois de seis - ou quinze, conforme as fontes - mil trabalhadores mortos na construção de estádios.»

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21.11.22

Berços

 


Berço Arte Nova esculpido em madeira. França, 1890.

Daqui.
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21.11.1975 – O juramento no Ralis

 


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21.11.1898 – René Magritte

 

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Eram loucas, as mães da Praza de Maio?

 


«Um filho de Hebe de Bonafini foi sequestrado pelos militares argentinos em fevereiro de 1977, pouco depois de se ter instaurado a ditadura. Em abril, ela e mais 13 mães de desaparecidos juntaram-se na Praça de Maio, no centro de Buenos Aires e em frente ao palácio presidencial, para exigir a devolução dos seus filhos. Poucos meses depois, em dezembro, outro dos três filhos de Hebe foi sequestrado; no ano seguinte, seria a sua nora. Nunca mais se soube deles. E todas as semanas, na quinta-feira, ela lá estavam, de lenço branco, a chamar pelos seus filhos, como as outras mães. Foram presas e continuaram. Algumas foram mortas e as outras continuaram. Ninguém falava sob a ditadura e elas lá estavam. Houve trinta mil mortos e elas não se calaram.

Encontrei-a em 1982, com algumas dessas mães, quando por lá andei a fazer trabalho de solidariedade contra a ditadura. Nesses dias, os jornais obedientes referiam-se-lhes como “as loucas da Praça de Maio” - os militares não conseguiam impedir a sua presença, preferiram tentar ignorá-las. Mas nada podiam contra a determinação daquelas mães: em dezembro desse 1982, organizaram uma marcha, milhares de pessoas juntaram-se-lhes, era o princípio do fim da ditadura, no ano seguinte cairia como um castelo de cartas. E há que pensar na razão mais profunda do coração daquelas mães: se se dizia que era loucura ir com um lenço branco para a rua quando toda a gente fugia ou desviava os olhos, quantos lhes terão dito que terçavam contra o impossível, elas tiveram uma paixão que só a razão sabe definir. Lutaram pela sua gente. Nenhuma ditadura as podia vencer.

Hebe de Bonafini morreu esta semana, aos 93 anos.»

Francisco Louçã no Facebook
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Magina da Silva, demita-se

 


«A investigação sobre o discurso de ódio nas forças de segurança, feita por um consórcio independente de jornalistas – Pedro Coelho, Filipe Teles, Paulo Pena, Cláudia Marques Santos e Ricardo Cabral Fernandes – , que resultou na publicação de trabalhos na SIC, no “Público” e no site Setenta e Quatro, cumpriu a função que o jornalismo tem de ter, que exige o tempo que falta nas redações. Mas o tema é suficientemente importante para não me perder em considerações sobre o futuro do jornalismo, por mais que goste do assunto.

591 operacionais da GNR e da PSP cometem de forma reiterada crimes de ódio em grupos fechados das redes sociais, onde só podem entrar profissionais das forças de segurança. Esses grupos ajudam a organizar contestações, moldam discursos e comportamentos políticos. São grupos fechados, não são conversas privadas. Quem escreve, escreve para pessoas que muitas vezes nem conhece, não em trocas de mensagens entre amigos. Ali, ameaçam-se políticos e ativistas antirracistas e fazem-se apelos a atividades criminosas.

A amostra de quase 600 agentes, e é mesmo apenas uma amostra, inclui 296 agentes da PSP e 295 militares da GNR. A investigação fez uma leitura exaustiva dos seus posts e mensagens e identificou-os, para estar segura da sua pertença às forças de segurança. 40% dos participantes fazem apelos à violência contra alegados criminosos, políticos, figuras públicas e minorias étnicas. 72% entregam-se ao discurso de ódio. E 75% manifestam apoio a André Ventura (isso não é crime), o homem que no Parlamento legitima o seu discurso e alimenta a subversão do Estado de Direito Democrático a partir do próprio Estado.

O QUE FARÃO SEM TESTEMUNHAS?


20.11.22

Centros de mesa


 

Centro de mesa Arte Nova Jugendstil, folheado a prata, vidro cristal cortado. Alemanha, 1905.
WMF "Fábrica de Metalware de Württemberg".

Daqui.
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Quem não...

 

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20.11.1975 – Quando os governos faziam greve

 


Na madrugada de 20 de Novembro de 1975 a Presidência do Conselho de Ministros emitiu um comunicado explicando que o VI Governo Provisório tinha decidido «suspender o exercício da sua actividade», até estarem garantidas condições para o exercício da mesma.

Pinheiro de Azevedo exprimiu-o à sua maneira:



À tarde, teve lugar uma grande manifestação em Belém, com muitos milhares de participantes, convocada pelas Comissões de Trabalhadores da Cintura Industrial de Lisboa e apoiada pela Intersindical, PCP e FUR, onde foi pedida a nomeação de um governo «verdadeiramente revolucionário» e se gritou repetidamente «Suspensão é demissão!»

Ao fim da manhã do da 21, o Conselho da Revolução emitiu um comunicado em que apelava ao governo para que retomasse a actividade, embora reconhecesse as dificuldades levantadas ao exercício da mesma, e informava que nomeara Vasco Lourenço para comandante da Região Militar de Lisboa, continuando Otelo Saraiva de Carvalho à frente do COPCON (*).

Quatro ou cinco dias depois de tudo isto, foi o 25 de Novembro e o fim do PREC.

(*) O VI Governo continuou em funções até 23 de Julho de 1976, data em que tomou posse o I Governo Constitucional, presidido por Mário Soares, tendo em conta os resultados das primeiras eleições legislativas de 25 de Abril de 1976.
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O “interesse nacional” das chuteiras



 

O Mundial começa hoje, mas Portugal só joga no dia 24 e é no dia 21 que os partidos votam para permitirem, ou não, a ida do PR ao Qatar. Mas PS, PSD e Chega já disseram que votarão a favor e não creio, nem espero, que o partido que detém a maioria absoluta mude de opinião e impeça que Marcelo, Costa e Santos Silva nos representem no #mundialdavergonha. (comentário meu)

«Depois da polémica com as declarações sobre a pedofilia na Igreja, o Presidente da República voltou a estragar com uma frase uma declaração que no seu conjunto é uma corajosa condenação das violações dos direitos humanos no Qatar. Mas, ainda assim, apesar de toda a polémica e de toda a indignação, Marcelo não abdica de ir ao país que condena. Por uma razão essencial: o “interesse nacional”.

Ora, por muito que se indague e se condescenda, não se vislumbra qual é o interesse nacional que o Presidente, o primeiro-ministro e o presidente da Assembleia da República hão-de defender nas bancadas de um estádio de futebol. Joga-se ali o futuro da economia? Não. Garante-se ou reforça-se ali a soberania nacional? Não. Consegue-se ali uma maior relevância de Portugal no concerto das nações, ainda que sejam as do Golfo Pérsico? Não. Onde estará então o “interesse nacional” que o Presidente da República vislumbra para justificar a sua visita a um país repugnante pela forma como trata as mulheres, as crianças, os homossexuais ou os emigrantes?

Estando em causa um presidente dos afectos, a resposta fica mais fácil de encontrar. Marcelo vai ao Qatar, porque durante 90 minutos as emoções de milhões de portugueses vão estar lá no lugar onde ele vê e quer ser visto. Não há nesta preocupação problema algum. Marcelo esteve na Hungria a puxar pela selecção, por exemplo, e essa sua vontade de partilhar com a grande maioria do país o apoio às cores nacionais é, no mínimo, compreensível. Desta vez, porém, é diferente. Para poder apoiar a selecção, o Presidente vai ter de, como ele próprio disse, “esquecer isso”.

É o “isso”, um Mundial iniciado com a venalidade e construído à custa da exploração até à morte de milhares de pessoas que tem de ser confrontado com o suposto “interesse nacional”. Um humanista e um democrata, como é sem dúvida Marcelo, deveria assumir que a melhor forma de defender Portugal aos olhos do mundo era não ir e dizer porque não vai. Não o fazendo, é pôr Portugal na condição de uma “pátria de chuteiras”, na genial definição de Nélson Rodrigues. Não interessa nada ao país ser visto assim.

O futebol é apenas um jogo tantas vezes usado como uma cortina para desviar as atenções do país do essencial. Não é a ciência, a cultura, a civilidade, o patriotismo, a decência, a responsabilidade ou o espírito de iniciativa. É tantas vezes apenas um soporífero para iludir com alegrias efémeras a realidade. Dizer que o apoio à selecção nacional é do “interesse nacional” é não apenas um erro; é, por isso, também um perigo.»

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