«A acusação de “hipocrisia” a propósito das críticas ao “futebol” corrupto do Qatar é particularmente interessante e reveladora, repetida em editoriais de jornais de negócios, no conglomerado mediático do Observador, em artigos e intervenções de comentadores, e por gente como Relvas, que passou de apoiar Bolsonaro para se sentir “não hipócrita”, com a superioridade moral que se lhe reconhece.
Sim, há muita hipocrisia, muito duplo critério, distribuído por todo o espectro político, à esquerda e à direita, e, de um modo geral, mais indiferença do que hipocrisia. O PCP indigna-se com a prisão de dois dirigentes da Juventude Comunista Leninista da Ucrânia, os irmãos Mikhail e Aleksander Kononovich, e denuncia as perseguições aos comunistas pró-russos ucranianos, e eu serei a última pessoa a pôr as mãos no fogo sobre o respeito dos direitos humanos por parte dos dirigentes ucranianos. Desde o primeiro dia da invasão que escrevi que vinha aí uma era de violência, sequestros, assassinatos, tortura, repressão sem lei, agravada pela própria invasão, que torna objectivamente uma parte dos comunistas ucranianos pró-russos em traidores em situação de guerra. Mas apoio vivamente todas as denúncias desses crimes por instituições credíveis de vigilância às violações de direitos humanos. E o PCP não tem nada a dizer sobre os milhares de presos políticos na Rússia, os assassinatos do FSB dos opositores russos, o encerramento de instituições que denunciaram o Gulag como o Memorial? E, para irmos mais à actualidade, nem uma palavra sobre os crimes russos na Ucrânia, que, mesmo que se desconte alguma desinformação, são crimes de guerra sistemáticos, ou seja, parte do plano militar do Exército russo? Sim, a hipocrisia está bem distribuída.
Mas o caso do Qatar, que nos envolve directamente como cúmplices, está cada vez mais imerso no ambiente tribalizado em que vivemos. Tornou-se um caso de incómodo do outro lado do espectro político, a direita radical, que cada vez mais é a nossa única e mais agressiva direita.
Voltemos à hipocrisia. Quando se passa da indiferença e do olhar para o lado para denunciar o que deve ser denunciado, passa-se de uma coisa má para uma coisa boa. Denunciar o que se passa no Qatar é a atitude justa, e, se no passado ou no presente se somaram (e somam) silêncios injustos, a última coisa que quero é diminuir o valor de se estar a fazer bem hoje. Mas o “fazer bem de hoje” incomoda por alguma razão, daí a acusação de “hipocrisia”.
Mesmo quando, de forma displicente, admitem que todas as acusações ao Qatar são verdadeiras, e que a ida do trio Presidente da República-primeiro-ministro-presidente da Assembleia da República é errada, a parte mais significativa do que dizem é denunciar a “hipocrisia” da atitude de denúncia. De quem? Dos outros, e percebe-se bem, logo pelos exemplos de Cuba e da Venezuela, quem são os outros. Os que centram a sua posição face ao modo como tudo se passou no Qatar na acusação de hipocrisia é porque estão mais incomodados com alguma coisa de cá para serem indiferentes ao que se passa lá. A chave das críticas de “hipocrisia” está cá, a motivação está cá, o Qatar é o pretexto de lá.
A questão é simples: a direita radical acha que falar muito de direitos humanos é uma coisa de esquerda. Se for para denunciar os abusos de Cuba ou da Venezuela, ou as violências históricas da URSS, está tudo muito bem, faz parte do cânone. Mas, fora dessa geografia do “comunismo”, qualquer insistência na denúncia dos direitos humanos ofende a admiração da direita radical por aquilo que pensam ser a Realpolitik, ou seja, aceitar o mundo como está, na parte “ocidental” desse mundo.
Os direitos humanos, fruto, no entender dos ideólogos da direita, do carácter perverso da Revolução Francesa, que incluía a “igualdade” na sua trilogia histórica, têm uma história atribulada, desde a escravatura à violência ideológica e política do nazismo e do comunismo no século XX. Mas uma democracia não vive só da expressão da vontade popular pelo voto – vive das liberdades, da fraternidade como modo de convivência e solidariedade, mesmo entre opostos, do combate à desigualdade e, fundamentalmente, do respeito pelos direitos humanos.
Denunciar o papel de uma actividade supostamente lúdica e nobre, como é o desporto, na caução de um regime que viola todas estas regras do viver, conquistadas com muito sangue nos últimos séculos, é um dever. Quem se incomoda com esse dever melhor faria em não ser hipócrita e dizer com clareza ao que vem. E, depois, deviam ler uma das partes magníficas da Divina Comédia em que Dante fala dos hipócritas a andar esmagados pelas suas capas de chumbo, por baixo do ouro que as revestia.»
.