21.11.22

Magina da Silva, demita-se

 


«A investigação sobre o discurso de ódio nas forças de segurança, feita por um consórcio independente de jornalistas – Pedro Coelho, Filipe Teles, Paulo Pena, Cláudia Marques Santos e Ricardo Cabral Fernandes – , que resultou na publicação de trabalhos na SIC, no “Público” e no site Setenta e Quatro, cumpriu a função que o jornalismo tem de ter, que exige o tempo que falta nas redações. Mas o tema é suficientemente importante para não me perder em considerações sobre o futuro do jornalismo, por mais que goste do assunto.

591 operacionais da GNR e da PSP cometem de forma reiterada crimes de ódio em grupos fechados das redes sociais, onde só podem entrar profissionais das forças de segurança. Esses grupos ajudam a organizar contestações, moldam discursos e comportamentos políticos. São grupos fechados, não são conversas privadas. Quem escreve, escreve para pessoas que muitas vezes nem conhece, não em trocas de mensagens entre amigos. Ali, ameaçam-se políticos e ativistas antirracistas e fazem-se apelos a atividades criminosas.

A amostra de quase 600 agentes, e é mesmo apenas uma amostra, inclui 296 agentes da PSP e 295 militares da GNR. A investigação fez uma leitura exaustiva dos seus posts e mensagens e identificou-os, para estar segura da sua pertença às forças de segurança. 40% dos participantes fazem apelos à violência contra alegados criminosos, políticos, figuras públicas e minorias étnicas. 72% entregam-se ao discurso de ódio. E 75% manifestam apoio a André Ventura (isso não é crime), o homem que no Parlamento legitima o seu discurso e alimenta a subversão do Estado de Direito Democrático a partir do próprio Estado.

O QUE FARÃO SEM TESTEMUNHAS?


Luís Maria, dirigente da Organização Sindical da Polícia, que em nome deste sindicato se reuniu com André Ventura na Assembleia da República, partilhou, sem receio de represálias disciplinares: “Procura-se sniper com experiência em ministros e presidentes”. Este agente chegou a ser afastado por outro caso, mas o sindicato de que é dirigente recorreu (legitimamente) à Justiça e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra reintegrou-o, com direito a indemnização. Um agente da PSP escreve que, para “começar a limpeza seletiva”, podem contar com ele e com “9 milímetros com fartura”. Outro, da GNR, diz que “enquanto não limparem um ou dois políticos, não fazem nada”. As mensagens de ódio e apelo a crimes violentos, incluindo crimes contra o Estado, são feitas por operacionais no ativo, muitos deles usando o seu nome verdadeiro, conscientes da impunidade de que gozam.

Se eu escrevesse uma coisa destas numa rede social estaria a ser julgado. E não sou um agente das forças de segurança com o dever de fazer cumprir a lei. Estes homens andam armados nas ruas em que eu ando, são instrumentos do monopólio da violência por parte do Estado em nome de uma lei que desprezam e violam. Como acham que se comportam, no seu quotidiano profissional, em situações difíceis, tensas e sem testemunhas, agentes que, identificados numa rede, expressam o desejo de ver “fogo nos cornos” (dos moradores da Cova da Moura), “chumbo no lombo”, “uma tapona bem dada no focinho”, “partir-lhe os dentinhos todos da frente”? Acreditam que lhes passará pela cabeça o respeito pela lei e pelas normas?

Como acham que um agente da PSP aborda um cidadão comum, indefeso e sem testemunhas, que seja de uma minoria étnica, quando, identificado e com público, trata o seu primeiro-ministro como “chamuças”? Como acham que estes agentes, que se assumem explicitamente como racistas e vomitam insultos contra os negros dos bairros periféricos e os ciganos, lidam com estes cidadãos no seu quotidiano? Como pode uma democracia saber que Mamadou Ba e Joacine Katar Moreira têm razões fundadas para se sentirem inseguros e que os focos dessa insegurança são agentes do Estado? Como pode uma democracia tolerar que alguém, por delito de opinião, sinta medo de quem o Estado arma para defender a nossa liberdade?

POLÍCIAS SÉRIOS ABANDONADOS

É importante sublinhar que há muita gente que respeita a farda que usa. Muito provavelmente, serão uma larga maioria silenciosa. E outra até menos silenciosa. Esta investigação contou com a ajuda de agentes das forças de segurança, porque só eles podiam entrar nestes grupos. Estarão cansados da impunidade com que estes criminosos se movem na polícia. Sentirão que foram abandonados pelos comandos da PSP e da GNR, que nada fazem para pôr fim a este faroeste.

Quando assistimos à tenebrosa agressão a Cláudia Simões, Magina da Silva, diretor nacional da PSP, veio imediatamente defender Carlos Canha (o alegado agressor), antes que qualquer investigação o permitisse. Disse, com base nas imagens do vídeo: “Vejo um polícia a cumprir as suas obrigações e as normas que estão em vigor na PSP. Não vejo nenhuma infração, é uma atuação legal e legítima por parte de um agente da autoridade." Carlos Canha deixa, nas redes sociais, em perfil aberto, ameaças de morte a quem o desafie.

Apesar das certezas que Magina da Silva, antes de qualquer investigação e com o intuito de as condicionar (no que foi criticado pela inspetora-geral da IGAI) o Ministério Público acusou Carlos Canha pelos crimes de ofensa à integridade física qualificada, sequestro agravado, abuso de poder e injúria agravada. Mas a preocupação do diretor nacional da PSP é outra: estar nas boas graças dos cowboys que não controla. Contrariando relatórios da Comissão Europeia, da IGAI e do SIS, nega o que todos vemos. Pede provas de que não precisa, porque sabe melhor do que todas estas instituições o problema que tem em casa. E, quando as provas aparecem, não o ouvimos ainda falar.

É bom lembrar que o agente Manuel Morais foi prontamente processado por ter criticado a receção a André Ventura, numa manifestação sindical de que o Movimento Zero se apoderou. Morais foi, aliás, afastado de vice-presidente do principal sindicato da PSP, que tinha fortes tradições democráticas, por se ter atrevido a dizer uma evidência: que há racismo na polícia. Há racismo e perseguição a quem se atreva a combatê-lo, como se vê.

Não está em causa a liberdade de expressão. Mas ela não contempla o apelo ao crime, agravado quando vem de agentes da autoridade. Eles não dão apenas um mau exemplo à comunidade. O ódio que espalham dentro das nossas (temos de sublinhar que são “nossas”) forças de segurança é instrumento real para a sua concretização prática. Os agentes não ficam racistas porque estão na polícia, apesar desse processo poder acontecer. Os racistas estão a infiltrar-se na polícia para a usar como braço violento das suas convicções políticas. Com a complacência continuada de quem foi nomeado pelo poder democrático para comandar estas forças.

PIRÂMIDE INVERTIDA

Muitos pensarão: uma coisa são as redes sociais, outra é a vida cá fora. Quem assim julga nada aprendeu com a tentativa de invasão do Capitólio ou com o que recentemente se passou no Brasil. Esses mundos não estão separados. Um prepara o outro. E um legitima, através da criação de uma cultura coletiva de consentimento, comportamentos criminosos no outro.

600 operacionais no total de 40 mil são muitos, mas é uma pequena minoria. Só que muitos deles são conhecidos dos comandos da PSP e da GNR, vários dirigentes dos 18 sindicatos (alguns têm metade associados como dirigentes para gozarem das vantagens desse estatuto). Sindicatos que, em alguns casos, o próprio comando da PSP ajudou a promover, para fragilizar o verdadeiro sindicalismo, como ouvi da boca de um dirigente da ASPP/PSP.

Depois destas reportagens, o Ministério da Administração Interna mandou a IGAI investigar. Estou pessimista, devo dizer. Nada disto é novidade para os comandos da PSP e da GNR, para a IGAI, para o MAI. Todos os discursos chocados são puro cinismo. Porque o problema não está na base, está no topo. Perante o caso de Cláudia Simões, foi Magina da Silva que explicou aos restantes agentes que é mesmo assim que deve atuar. Depois do caso de Alfragide, o único agente que apanhou prisão efetiva foi promovido, cinco dias antes ser preso. O Comando é cúmplice, pelo menos por omissão, do que vimos nesta reportagem.

Magina da Silva tem medo dos seus próprios agentes. Sobretudo dos que são capazes de criar focos de contestação clandestinos como o Movimento Zero. E os polícias sérios, mesmo que sejam a larga maioria, estão isolados ou ficam calados. Como prova Manuel Morais, ninguém lhes dará uma medalha por serem corajosos. E se Magina da Silva tem medo destes agentes, os sucessivos ministros têm medo de Magina da Silva, o homem que teve o desplante de se descolar a Belém para apresentar a sua reforma para as polícias, como se fosse ele o ministro e saltando sobre a cadeia hierárquica, e no dia seguinte continuava no lugar, como se nada fosse. A pirâmide de poder está invertida, e é essa inversão que deixa crescer a subversão contra o Estado de Direito Democrático dentro do próprio Estado.

Olhem para o que aconteceu no Brasil, onde o Estado começou por ter dificuldade em interromper a tentativa de golpe contra a democracia porque a polícia se mantinha quieta perante os cortes de estrada para perceber até onde nos pode levar a tolerância com esta indisciplina. Quando polícias começam a fazer a lei estamos todos inseguros. Este processo da IGAI só servirá para alguma coisa se criar condições para limpar a casa. E, pelo menos na PSP, essas condições passam pelo afastamento de Magina da Silva. Numa democracia madura já teria, perante estas revelações, apresentado a sua demissão. Não é quem se mostrou consequentemente complacente com o crime dentro de sua casa que lhe vai pôr fim.»

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