27.6.20

O mundo à janela (12)



Governo Metropolitano de Tóquio, Japão, 2006.
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Manifestação do CHEGA



Não vale a pena continuar-se a dizer que só teve 200 pessoas, porque foram muitas mais – 1.300, segundo a RTP. 
Mas o que interessa nem é que não tenha enchido ruas, mas ter existido porque foi um marco. «Habituem-se!», como dizia o outro, não vale a pena tapar o Sol com a peneira.
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Racismo em Portugal?




Quem for assinante do Público tem o texto completo AQUI.
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Pobre Lisboa



«Os incêndios de 2017 revelaram um país com grande parte do território abandonado, sem pessoas nem atividades económicas, envelhecido e deslaçado. Não foi o progresso e a desruralização que o esvaziou. Foi o imparável minguar das cidades médias, de que dependem os territórios que estão entre elas. As autoestradas que se fizeram e as linhas férreas que se destruíram são uma pequeníssima parte do debate, porque de pouco servem se não servirem economia nenhuma. Um país que perde indústria, agricultura e economia de proximidade está destinado a destruir a sustentabilidade do seu território.

O resultado disto foi um crescimento unipolar, concentrado em Lisboa. Em “Cuidar de Portugal” (Almedina), José Reis descreve o processo: entre 2001 e 2018, a população da Área Metropolitana de Lisboa cresceu 6,3%, enquanto o Norte teve uma queda demográfica de 1,3%, o Centro de 5,7% e o Alentejo de 9,1%. Até o Algarve, que costumava crescer, começou a perder população em 2011. Sete concelhos de Lisboa cresceram mais de 18%, 140 do resto do continente perderam entre 10% e 40% da população. Durante este período, a especulação imobiliária e o turismo também expulsaram os lisboetas da capital. Formou-se um ‘donut’, cada vez mais denso nas periferias e vazio no seu núcleo. É nessas periferias sobrelotadas que se encontram os que abandonaram o resto do país, os que foram expulsos do centro da cidade e os imigrantes. Mal servidas de transportes, de ordenamento e de habitação de qualidade, acumulam pobreza e exclusão. É por isso que a polémica em torno da redução dos preços dos passes sociais, tratada como mais uma benesse a Lisboa, foi tão imbecil. Os pobres das periferias da capital são a consequência do abandono do resto do país.

Acreditar que umas quantas festas ou o exemplo de políticos explica a concentração de surtos em freguesias da coroa norte da periferia da capital é conhecer mal a região onde se acumula quase um terço da população nacional. Enquanto os surtos iniciais no Norte foram em lares de idosos ou importados, graças à indústria exportadora, o padrão dos novos infetados de Lisboa são pobres, trabalhadores precários e população migrante, obrigados ao uso de transportes públicos desadequados e a viver em casas sobrelotadas. Sobretudo jovens adultos, o que explica a baixa letalidade. E com prevalência inicial em plataformas logísticas, com trabalho desqualificado. Este perfil é o de uma região que continua a ser tratada, no discurso público, como privilegiada. Não percebem que a riqueza de Lisboa esconde as maiores bolsas de desigualdade do país. O debate partidário vê as consequências dos incêndios de 2017 e do desconfinamento de 2020, muito mais grave as primeiras do que as segundas, como um sinal de incompetência do Estado. Mas é mais profundo do que isso. São dois retratos sociológicos da mesma realidade: um país que perdeu a sua capacidade produtiva na indústria e na agricultura e depende cada vez mais de serviços desqualificados. Por isso, expulsa gente do conjunto do território e concentra-a à volta de uma cidade inacessível. A esta tendência, que se agravou nas duas últimas décadas, chamamos de subdesenvolvimento.»

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26.6.20

O mundo à janela (11)



Cartagena de Índias, Colômbia, 2012.
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Brasil, essa grande nave com um louco ao leme



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L’imagination au pouvoir



Esplanada em Paris com distanciamento humano garantido.
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Passo atrás, multa à frente



«O pequeno passo atrás dado agora com o dever cívico de recolhimento domiciliário em 19 freguesias de Lisboa não é só fruto de descuido ou falta de civismo. É também resultado de contradições e dualidade de critérios políticos e sanitários.

Será que muscular as leis e as forças de segurança trava o ressurgimento de casos de covid, em Portugal ou em qualquer outro país? A ver vamos. Certo é o ruído político e a conflitualidade, também legislativa, que as medidas vão provocar.

As multas para travar os ajuntamentos de pessoas além do limite permitido atribuem, implicitamente, aos jovens a culpa pelos novos surtos. Apontar o dedo aos mais novos, fechar estabelecimentos comerciais mais cedo ou acabar com a venda de bebidas alcoólicas nas lojas de conveniência até pode refrear os profissionais dos comentários. Mas não resolve o problema. Este ainda persiste nos transportes públicos e nas habitações sobrelotadas e naqueles que nunca puderam, nem vão poder, ficar em teletrabalho.

O reforço de 90% nos autocarros da Grande Lisboa a partir de segunda-feira, anunciado ontem, foi tardio. Assim como o programa para melhorar as condições de sanidade dos bairros. Como é discutível que os bares sejam um problema e não uma solução e ainda estejam de portas fechadas, mesmo depois de terem apresentado ao Governo um guia de boas práticas.

E é ainda necessário que as mensagens cheguem aos destinatários. Que sejam claras, oportunas e coerentes. Se os mais velhos já tiveram momentos em que não percebiam exatamente o que lhes era transmitido (ora a máscara não é necessária, ora já é, ora até é imprescindível), os mais novos também ficaram confusos com as variáveis do desconfinamento. O esforço para entender como eles percebem e vivem o momento atual também não foi grande.

Aliás, o caricato post (para não o batizar de centralista ou dar-lhe outra classificação) da Direção-Geral da Saúde no Facebook com algumas recomendações para o São João, já depois da noite do santo popular ter acontecido, é revelador de uma comunicação nem sempre assertiva.»

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25.6.20

O mundo à janela (10)



Museu Hermitage, São Petersburgo, Rússia, 2012.
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Irresistível!


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Isso é que era!



Se ainda usássemos uma coisa destas para andar pelas redes sociais, talvez pensássemos um pouco melhor antes de teclar (e não comentássemos TODOS os posts de um blogue, mesmo quando não temos nada de especial a dizer - esta vai com destinatário, sem grande esperança que entenda, confesso…) 
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Mas que doença é esta, afinal?



«Assinalou-se no último sábado, dia 20 de junho, o Dia Mundial do Refugiado. O dia dos mais de 26 milhões de refugiados em todo o mundo. 26 milhões. Este número é, para muita gente, isso mesmo, só um número, mas deixa de o ser quando conhecemos as pessoas que ele representa, as suas vidas, as suas histórias e os seus sonhos. Deixa de o ser quando conhecemos o Ahmad que veio dos Camarões porque foi obrigado a alistar-se a uma milícia terrorista e, como ritual de iniciação, teria que matar a sua própria mãe. Deixa de o ser quando conhecemos o John, do Congo, que fugiu do seu país porque mataram toda a sua família. Deixa de o ser quando nos contam que só querem poder recomeçar e reconstruir-se. Não deveria ter de haver um dia mundial do refugiado para nos lembrarmos deles, não deveria ter que existir um dia 20 de junho para pensarmos neles. O dia mundial do refugiado são todos os dias, porque todos os dias, a cada dois segundos há uma pessoa que é forçada a abandonar a sua casa devido a conflitos armados ou perseguição étnico-racial. Dois segundos.

Hoje talvez seja mais importante do que nunca falar sobre vocês, porque, a cada ano que passa, o problema agrava-se e este ano, no contexto em que vivemos, são vocês, como sempre, que mais sofrem. Uma crise como esta é sempre tremendamente desigual, não há crises que afetem todos da mesma forma e isso é hoje flagrante: são os mais pobres os mais afetados e com menos possibilidades de combater a pandemia, são os bairros mais precários que têm um maior número de casos e propagação da covid-19, e esta crise, como todas as outras, irá agravar o enorme fosso entre classes sociais.

Imaginemos agora, que viveríamos num campo de refugiados, com capacidade para 3000 pessoas e que alberga 20.000. Imaginemos agora que, não bastando as condições desumanas em que esses milhares de pessoas vivem, com famílias inteiras a viver durante dois anos numa tenda de 5 metros quadrados, fecham o campo de refugiados, não deixam ninguém entrar ou sair, para impedir a propagação do vírus. Imaginemos que exigem a essas 20.000 pessoas que mantenham a distância social e que lavem as mãos com frequência. Que distância social se mantém num contentor com 30 pessoas a dormir no chão? Que lavagem das mãos é possível com uma torneira para cada 500 pessoas? Que vida lhes resta quando os poucos bens ou ajudas que já tinham, escasseiam pela impossibilidade das ONG trabalharem, sendo obrigados a comer comida crua depois de 3h numa fila à espera? E tudo isto, sob a desculpa das políticas sanitárias no contexto da pandemia. Mas que doença é esta que nos faz esquecer a humanidade, que não nos deixa dar a mão ao outro quando se está a afogar às portas da Europa? Que doença é esta que criminaliza a ajuda humanitária e exige o impossível a quem não tem tecto, água e as mínimas de higiene? Não, não se chama covid-19. Esta é a degradante doença da desumanidade, do oportunismo político e da cegueira.

Esta é a doença que já corre na Europa há muitos anos e que foi exponenciada pela pandemia. É a doença que deixa em terra dois barcos de resgate no mediterrâneo de migrantes e refugiados durante dois meses, incapacitados de fazer o seu trabalho, pelo “risco de contágio associado a esta prática”, mas que já existia quando não havia coronavírus, ao obrigar embarcações com centenas de migrantes a ficar semanas ao largo de Itália pela impossibilidade atracar. É a doença que deixa uma embarcação três dias ao largo da ilha de Lesbos, na Grécia, sob o olhar da Guarda Costeira Grega, com mais de 30 pessoas vindas da Turquia, com uma grávida doente que acabou por parir na embarcação e teve uma grave hemorragia pós parto. Mas é a mesma doença que impediu os migrantes recém-chegados à Grécia de requerer asilo, que fez dezenas de pushbacks ilegais ao longo das fronteiras no início deste ano. É a mesma doença que o ano passado fez o Parlamento Europeu chumbar as resoluções que apoiavam o resgate e salvamento de vidas no mediterrâneo. É a doença que corrói a Europa, que faz com que o tão apregoado continente charneira dos Direitos Humanos, seja o mesmo que se descarta de salvar vidas, que financia milícias terroristas na Líbia e que ergue fortalezas e muros. Esta é a mesma doença que é filmada quando há fogo mas esquecida quando as cinzas quentes se espalham, esta é a doença que tem a nossa atenção quando a ferida jorra sangue, mas que que é renegada depois, enquanto o músculo apodrece e morre. E infectados por esta doença, lembramo-nos vagamente que em 2017 750 mil rohingyas fugiram do Myanmar para o Bangladesh, mas ignoramos que passados três anos tudo está na mesma. Recordamos as imagens dos milhares de pessoas a fugir da Venezuela há três anos e não sabemos, ou não queremos saber, que hoje em dia milhares de venezuelanos ainda passam a fronteira para fugir da miséria, e que insistimos em chamar “crise de refugiados” ao influxo de pessoas na chegada à Europa em 2014, ignorando que 2019 foi o ano em que mais gente chegou ao continente dos últimos cinco.

Esta é a doença crónica mais grave dos nossos tempos, que transformou o mediterrâneo na fronteira mais mortífera do mundo, onde jazem mais de 10 mil pessoas que vinham em busca de uma nova vida. É a doença que deixa um milhão de rohingyas no Bangladesh, sem acesso à Internet, sem possibilidade de aceder a serviços públicos, confinados no maior campo de refugiados do mundo, sem perspectivas nenhumas de poderem regressar à sua casa ou de poderem reerguer uma nova.

Esta é a mesma doença que trouxe ao Parlamento português, o discurso xenofóbico, racista e autoritário pela primeira vez na história da democracia portuguesa. Hoje, há um deputado a sugerir a criação de autênticos guetos para ciganos e a prometer a prisão e punição para quem diga mal ou insulte as forças de segurança. Hoje, mais do que nunca, temos que falar de vocês e de humanidade, por ser cada vez mais urgente, e porque calar é consentir.

Qual a cura para esta doença, perguntar-se-ão muitos dos leitores. É difícil e morosa, e implicaria outro infindo texto sobre políticas migratórias e de asilo.

A solução ideal passaria, obviamente pela resolução do problema a montante e pela salvaguarda de condições de paz e segurança que permitissem a estas pessoas regressar à sua nação. Ao contrário do que muitos pensam, os refugiados fogem da sua casa por causa da guerra ou perseguições étnico-raciais incomportáveis, e fazem-no com uma dor e uma amargura inimagináveis. Gostavam de nunca ter saído e abandonado o seu país, mas não tiveram alternativa, e queriam um dia poder regressar. Mas como se regressa à Venezuela, à Síria, ao Myanmar ou ao Congo? É impossível. Basta olhar para os números: o tempo médio que um refugiado fica em exílio, impossibilitado de regressar a casa, são 17 anos. 17 anos é uma infância inteira.

Assumindo esta inevitabilidade, pelo menos a curto prazo, há aceitar que os refugiados continuarão a existir e a tendência é que o número seja cada vez maior. O problema então coloca-se: como receber estas pessoas? Muitas delas ficam condenadas a passar anos sem fim em campos de refugiados e este é talvez o maior dos problemas: estes campos têm que se lugares de passagem, não podem ser sítios onde se ficam 3,4 ou mais anos, sem possibilidade de produzir, de ter rendimentos, ou de construir planos de vida. Conheci crianças em Lesbos que estavam num campo de refugiados há três anos à espera da resposta ao pedido de asilo. Três anos sem escola, sem conhecer mundo além daquelas cercas, sempre dependentes de ajuda e sem um plano ou uma ideia de futuro. O processo de pedido de asilo é extraordinariamente demorado, e a espera e a incerteza são um fardo insuportável para muitos deles. Assumindo que, infelizmente, a morosidade da resolução dos pedidos de asilo é difícil de resolver, pelos recursos humanos escassos ou, pela maior parte das vezes, por uma tremenda falta de vontade política, que sejam dadas condições dignas às pessoas enquanto esperam. Basta olhar para os campos da Jordânia, com pré-fabricados, espaço, organização e condições de higiene ou para os campos de Moria ou de Samos, com condições deploráveis e inimagináveis em que ninguém deveria ser obrigado a viver, ainda para mais na Europa. Há exemplos extraordinários por esse mundo fora de como é possível mudar este paradigma dos campos de refugiados, desde projectos de reflorestação que foram terreno fértil para a paz entre comunidades, a campos em África em que cada família de refugiado tem direito a um pedaço de terreno que pode cultivar, cuidar ou construir. Mas a mais eficaz de todas estas soluções, principalmente na Europa é uma e só uma: a abertura de fronteiras e o fim do tratado entre a Turquia e União Europeia.

Também aqui, em Portugal, são visíveis bons e maus exemplos da integração. No mesmo mês em que o Governo concedeu cidadania temporária a todos os requerentes de asilo para poderem aceder livre e gratuitamente a todos os serviços públicos, vieram a lume as condições precárias em que muitos migrantes vivem na cidade de Lisboa, encafuados em hostels sem a mínima capacidade de resposta, o que acabou por correr muito mal, como sabemos. E é nos países de acolhimento que o desafio é especialmente difícil: desmistificar a ideia da subsídio-dependência dos refugiados e de aproveitamento de recursos dos países que os recebem. Vários estudos indicam que o investimento inicialmente feito é rapidamente reposto após 2 anos, com retorno para a economia e diminuição das taxas de desemprego graças ao acolhimento e às políticas de integração.

Os tratamentos para esta doença são vários mas a primeira terapêutica é simples: aceitar que uma vida é sempre para salvar, aceitar que qualquer pessoa, seja cigana, branca, preta, muçulmana ou homossexual deverá ter as mesmas oportunidades que todas as outras, e aceitar que todas merecem uma vida: que a Julia poderá um dia ter trabalho e ser mãe, mesmo tendo fugido da sua casa a arder no Congo, que o Abdullah poderá um dia ser advogado para fazer justiça aos que foram tremendamente injustos com ele, e para que a cada dois segundos não haja uma nova Julia, um novo Abdullah neste mundo, cujos sonhos são destruídos por uma Europa inerte e por um mundo que vê num vírus uma desculpa para deixar de cuidar e olhar pelo outro e não uma alavanca para a igualdade e dignidade de todas as vidas.

Nos três minutos que demorou a ler este texto, cerca 90 pessoas foram obrigadas a fugir de casa, só com uma mochila às costas. Lembremo-nos delas hoje, para que possam crescer além do seu passado e recomeçar de novo, com dignidade e humanidade, em Portugal, na Europa ou em qualquer outra parte do mundo. Porque enquanto houver vontade, união e esperança, haverá sempre um porto seguro para vocês.»

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24.6.20

O mundo à janela (9)



Québec (cidade), Canadá, 2019.
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Isto nem inventado!


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“Se começar a correr mal, não vai haver responsabilidade política, as pessoas é que se terão portado mal”



Vídeo o ser visto e ouvido, entrevista a ler na íntegra.

«O médico que viu provavelmente mais doentes com covid-19 e os casos mais graves desta infeção em Portugal, Roberto Roncon, está exausto. Intensivista do hospital de São João, no Porto, não só está cansado da intensidade do trabalho como da inabilidade política para lidar com os profissionais de saúde.(…)
A ministra tem um problema enorme de empatia com as pessoas. Não acho que um ministro tenha de ser médico, mas nestas alturas nota-se mais a falta de contato humano. As conferências de imprensa caíram um bocado em descrédito porque no início não era preciso máscara, depois era. Fiquem em casa, depois saiam. Em grande medida, o que eu tenho aqui na minha unidade é o que não está a funcionar nestas conferências de imprensa. Neste momento estão a ser uma oportunidade perdida. E se começar a correr mal, não vai haver responsabilidade política, as pessoas é que se terão portado mal. E se queremos falar aos jovens, se calhar não é através de uma conferência de imprensa, mas do Youtube, do Facebook, da linguagem que eles conhecem. Têm de colocar jovens a falar com outros jovens. Sem estar a apontar o dedo, se não eles ainda nos desafiam mais.»

(Daqui)
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O novo anormal


«Ia ficar tudo bem, nada voltaria a ser como antes, disseram-nos. Mentira. Vai ficar tudo bem, apenas para alguns. Ficará tudo muito pior para os do costume. E nada vai mudar que mereça a pena ser assinalado, a não ser em cada um de nós, dependendo da forma como vivemos interiormente estes tempos tão estranhos cujo fim não se vislumbra sequer.

E assim as nossas grandes empresas continuam a pagar impostos onde lhes dá jeito, em vez de contribuírem para o bolo nacional. No entanto, num gesto de raro patriotismo, não abdicam de sugar o erário público. (…) O mundo das Finanças, esse, continua dono e senhor das coisas, mesmo que as suas decisões não sejam o melhor para as pessoas em tempos de dura crise.»

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Medo, desaforo e temeridade



«O medo vem dos primórdios dos humanos; ele fez os primatas evoluíram e substituírem o instinto pela consciência dos perigos. O medo de algum modo fez o homem. Vem de muito longe, do tempo em que os hominídeos viviam rodeados de inimigos, de outras espécies que para sobreviverem faziam deles alvos. Nasceu connosco e de nós não se separará.

Esta componente do nosso sistema de vida está em alta com a chegada da pandemia, impondo-nos uma conduta distinta da vivida até ao seu aparecimento. É o medo que nos faz ser cautelosos e medir riscos e evitar os mais perigosos. É uma ferramenta que nos permite agir com prudência. Mal utilizado pode ser castrador.

O medo nomeadamente da Inquisição, do senhor feudal, do polícia, das ditaduras são elementos que integram o nosso passado. Portugal viveu muitos medos que se entranharam na mentalidade do país.

O medo da pandemia atirou os portugueses para dentro de casa, confinou-os, antes até da própria decisão governamental. É o medo positivo. O medo sacana é o que faz os cidadãos açambarcarem produtos que fazem falta à comunidade. É o oportunismo egoísta que Saramago tão bem descreveu no Ensaio sobre a Cegueira.

O medo do coronavírus foi o chicote que meteu o rebanho em casa. A terrível carantonha do inimigo invisível confinou-nos.

Os medos infantis quase nos paralisavam, mas passámo-los. Cinquenta anos vivemos sob o manto negro do medo que nos fazia suspeitar de todos. Os portugueses viverem muito tempo sob o medo. Está ainda no seu ADN. Claro que houve mulheres e homens a quem o medo não ditou as suas leis e enfrentaram a ditadura. Foram eles que aceleraram a História e encurtaram o período das trevas salazarentas.

Os médicos, os enfermeiros e todos os operacionais de saúde são os bravos que nos defendem, mesmo correndo sérios riscos. O medo impõe-lhes prudência, mas não os tolhe.

Como teria de ser, chegou a hora o desconfinamento e de respirar fora das quatro paredes caseiras e de regressar em parte à vida que o vírus nos roubou.

Entretanto uma mistura explosiva varre o país, um pouco por todo o lado: a desgraça de quem vive e trabalha em condições miseráveis, o empacotamento dos velhos sob o olhar ausente das autoridades, a insanidade de quem organiza festas e engana autoridades, as próprias condições de quem trabalha na saúde e os que do alto do esplendor da idade viram costas aos deveres de proteção da comunidade.

Que o vírus contagie os que não lhe podiam fugir dadas as condições compreende-se, embora doa. Que os idosos gerem rendimentos chorudos aos donos das prateleiras de empacotamento resulta da irresponsabilidade governamental que aparece depois das desgraças a dizer que vai fazer um inquérito e apurar responsabilidades que desaparecem no passar dos dias e com a ausência mediática do assunto.

E que dizer da pompa e circunstância da dupla Marcelo/Costa a anunciarem que vem aí a final da Champions… e a dedicou aos trabalhadores da saúde. Esta lengalenga cheira a ranço, tem um lastro de propaganda à maneira do antigo regime. É algo abominável. Só faltou o cardeal. Ter-se-ão esquecido?

De tanto elogiarem o comportamento dos portugueses enveredaram pelo nacional-porreirismo. Em vez de assumirem condutas responsabilizantes e responsáveis andam a apagar fogos de festa em festa, de lar em lar, de bairro degradado em bairro degradado.

É preciso coragem, mais coragem do que contas sobre votos. Vivemos uma pandemia. O Portugal desconfinado à espera da final da Champions, do turismo que acende e apaga, que mantém na pobreza mais de um quarto da população que não tem condições para cumprir com as regras da DGS, que consome carradas de ansiolíticos e notícias dos luxos da Cristina Ferreira mete medo. Medo.»

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23.6.20

O mundo à janela (8)



Tashichho Dzong, Thimbu, Butão, 2010.
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Assim se vê... a força do passado


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Boris Vian morreu num 23 de Junho



Boris Vian morreu com 39 anos, vítima de crise cardíaca, em 23 de Junho de 1959. Escritor, engenheiro mecânico, inventor, poeta, cantor e trompetista, teve uma vida muito acidentada e ficou sobretudo conhecido pelos livros de poemas e alguns dos seus onze romances, como L’écume des jours e L’automne à Pékin.

Célebre ficou também uma canção – Le déserteur – que foi, durante muitos anos, uma espécie de hino para todos os que recusavam a guerra – incluindo muitos portugueses. Lançada durante a guerra da Indochina, foi grande o seu impacto e acabou mesmo por ser proibida por antipatriotismo, na rádio francesa, pouco depois do início da Guerra da Argélia.


(Serge Reggiani : Dormeur du Val , de Arthur Rimbaud, e Le déserteur de Boris Vian.)

Mas não só. Ficam mais duas:



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É diferente o barco



«Os que estávamos todos no mesmo barco começámos por guetizar os velhos. Depois, os que estávamos todos no mesmo barco culpabilizámos os pobres pelos surtos à volta de Lisboa. E agora os que estamos todos no mesmo barco defendemos mão dura sobre os jovens, esses irresponsáveis. Este barco onde estamos todos tem camarotes e tem porão, está visto.»

José Manuel Pureza no Facebook
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Transformar Lisboa na capital mediática da covid?



«Como escrevi na sexta-feira, não acompanhando a excitação de quem olha mais para os infetados do que para os internados. Sou cauteloso a olhar para números diários e não me deixo ir pelos humores pendulares que a comunicação social alimenta. Mas acho que o Estado deve tomar cuidados. Não apenas os óbvios, em relação à pandemia. Mas reputacionais. Sobretudo quando os destinos turísticos estão em concorrência. Suspeito que seja essa guerra que leva a Grécia a colocar Portugal, seu concorrente, nos pontos de origem de onde não aceita turistas. Marcar a concorrência como lugar perigoso faz parte de um jogo que a descordenação europeia alimenta.

É nesta altura que todos os cuidados com a imagem também devem contar. E é por isso que a festa com a vinda da fase final da Champions para Portugal é idiota. Já nem falo da duplicidade de critérios com o campeonato nacional, se estas competições tiverem público. Já nem falo da inacreditável declaração do primeiro-ministro, que apresentou isto como um prémio para o pessoal de saúde. Fico por uma abordagem mais fria. Qual a vantagem de um risco reputacional neste momento?

Não acredito que a Champions vá acontecer com público vindo de todo o mundo. Era preciso que, em agosto, tudo estivesse quase resolvido. Não parece que vá ser o caso. Sendo sem público, o que ganhamos com isso? Dizem que ganhamos publicidade, que contribuirá para a recuperação mais rápida do turismo. Mas isso é partir do princípio que as coisas estarão bem em agosto. Não fazemos ideia se assim será.

Se as coisas piorarem, e o que está a acontecer na China não nos permite mesmo saber o que nos espera, a publicidade só pode ser negativa. Se a fase final das competições europeias for desmarcada, teremos um foco na situação portuguesa que seria evitável. Se não for desmarcada, teremos televisões de todo o mundo, sem público como tema de reportagem, a apontar os seus holofotes para cada caso e cada perigo, transformando Lisboa na capital europeia da covid. Mesmo que esteja a correr pior noutras paragens. Vale o risco?»

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22.6.20

O mundo à janela (7)



Riga, Letónia, 2003.
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Nova Zelândia: dois anos de governo em 2'56''


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Adeus, «velho normal»…



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A escola ficou numa redoma



«A todos os que acreditam no discurso fofinho que diz que a experiência de manter os filhos em casa durante quatro meses com aulas através de um computador portátil tem sido enriquecedora, porque confrontou os pais e os docentes com novas exigências, tenho a comunicar o seguinte: acordem desse sonho pateta.

Porque aquilo que encarregados de educação, alunos e professores têm vivenciado desde que a pandemia os afastou do ensino presencial assemelha-se mais a um inferno laranja do que a um céu azul-celeste. Não quero ser tremendista, mas nunca como agora reconhecemos tanta importância aos educadores dos nossos filhos e ao contributo da escola para garantir o equilíbrio emocional dos estudantes e a harmonia das famílias. Bem hajam.

Mas o quadro que se nos apresenta é assustador: termos crianças arredadas, de março a setembro, das rotinas escolares, da aprendizagem, do convívio com colegas e professores, pode ter um efeito devastador sobretudo junto dos mais frágeis, que não beneficiam do fácil acesso às tecnologias, que estão privados de uma boa retaguarda familiar e cujo modesto poder aquisitivo dos pais não lhes permite estar em casa indefinidamente em teletrabalho a ligar e a desligar o "Teams". A isto, acresce o facto de, com o desconfinamento e a reabertura económica, tudo ter avançado menos a escola. Em certo sentido, os alunos ficaram esquecidos numa redoma.

O Ministério da Educação confirmou finalmente que, em setembro, todas as aulas serão presenciais (veremos), mas há ainda um mundo de incertezas até ao fim do verão. O enorme intervalo de tempo sem aulas justificaria que se implementassem medidas mitigadoras, como defende, por exemplo, a Unicef. Uma delas poderia passar por um regresso antecipado, de uma ou duas semanas, que ajudasse não apenas a sarar as feridas do agora, mas fundamentalmente que lançasse bases para o próximo ano letivo, não castigando ainda mais aquilo que se antevê vá ser um arranque de loucos. Sem aulas, sem professores e sem ajuda, houve muitos alunos que ficaram para trás. Nisso, a escola não cumpriu a sua vocação primordial: em vez de criar pontes educativas, ergueu muros de silêncio.»

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21.6.20

O mundo à janela (6)



Stratford [terra natal de Shakespeare], Inglaterra, 2013.
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Novo ciclo: abatam-se os jovens!



Os velhos já podem jogar cartas à vontade nos jardins, porque todas as fúrias estão agora viradas contra os jovens.

Claro que há um problema grave, do Minho ao Algarve, com festas inorgânicas sobretudo de jovens (as dos adultos apessoados fazem-se dentro de boas casas). Mas confesso que aquilo que se lê sobre desejos de mão pesada, prisões, multas, trabalhos mais ou menos forçados, recolher obrigatório e (quase) imposição de tatuagens nos prevaricadores, me assusta e não é pouco. Que possam vir a ser tomadas algumas medidas por quem de direito é normal, que haja tantos «paisanos» desejosos de autoritarismo mete-me medo, muito medo. Também podem propor que todos esses jovens sejam metidos em carrinhas e enfiados no Campo Pequeno e outros recintos do país até aparecer a vacina para a Covid-19. Porque não, já agora?

Não vejo sugerir o que me parece mais óbvio em termos de eficácia: uma boa campanha de marketing informativo e esclarecedor dirigida às camadas mais jovens, não por políticos que eles não vêem, não lêem, nem ouvem, mas por Youtubers, por campeões de seguidores no Instagram, por ídolos do futebol, da moda ou de um ou outro programa de TV. Não há dinheiro para campanhas neste domínio? Onde estão elas?
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Futebol-spaghetti



«Portugal passou a ser o cenário ideal para a realização de um western-spaghetti: nem é um filme de cowboys, nem um drama onde se come demasiada massa. Perdeu-se a vergonha. Vivemos no reino da comédia em que os próprios actores são semelhantes a Trinitá, o chamado “Cowboy Insolente”. Os personagens arrastam-se, deitados, numa cama transportada por um cavalo cansado. Criou-se um novo produto turístico: o “futebol-spaghetti”. O decoro perdeu-se neste paraíso dos compadres, neste Portugal dos Pequenitos, onde a realização da fase final da Liga dos Campeões em Lisboa serve para um desfile de vaidades provincianas inacreditável onde cabem o sr. Marcelo, o sr. Costa, o sr. Gomes, o sr. Ferro Rodrigues e, até, o sr. Medina. Todos juntos, como se aquilo fosse o fim da crise económica ou a resolução do que nunca foi feito durante três anos em Pedrógão Grande. Nada disso. O futebol é a política nacional. Nada há para além disso.»

Fernando Sobral
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O martelo de Thor



«Eu gosto muito do meu país, mas não tenho muitas ilusões sobre ele. É um país atrasado, pouco desenvolvido, sem massa crítica, pouco culto, sem grande qualificação da mão-de-obra, muito dependente de vagas de superficialidade, onde a maioria das pessoas trabalha duramente para não receber sequer o mínimo vital, sem vida cívica autónoma do Estado, com uma economia débil, desindustrializado, com uma agricultura desigual, pouco cosmopolita, com muitos aproveitadores e alguns bandidos, mas aí como os outros.

É um país que cada vez menos tem autonomia política, dependente da transferência dos centros de decisão para Bruxelas. Aquilo em que somos melhores não coloca o pão no prato ao fim do dia, como agora se diz. Temos uma língua e uma literatura de valor universal, a melhor obra dos portugueses, mas ninguém come literatura. E temos uma democracia que é um valor que só quem sabe o que é ditadura percebe qual é. É mau? Não é mau, há muito pior, mas é sofrível, e sofrível não permite andar por aí a bater em pandeiretas.

A pandemia de covid-19 funcionou como um martelo de Thor, mandou-nos uma pancada que ajudou a perceber melhor o que já cá estava antes. Anos de ostracismo dos velhos fez crescer lares por todo o lado, frágeis e sem defesas, em muitas zonas suburbanas, vive-se miseravelmente, trabalhadores estrangeiros como os nepaleses, africanos, ciganos, com formas diferentes de marginalidade e exclusão, vivem em guetos onde pouco mais do que a Igreja penetra, e a disciplina do confinamento foi facilmente substituída por actos como o daqueles imbecis que resolveram fazer uma festa em Lagos e infectar-se colectivamente.

Quando se vê a geografia dos últimos surtos na região de Lisboa, percebe-se esse mapa social.

O problema é que, mesmo quando podíamos pensar em aproveitar esta oportunidade para consertar ou melhorar alguma coisa do que está estragado, mais uma vez a ajuda europeia é ao lado, mais preocupada em manter a procura de sectores económicos da Europa do Norte do que em corresponder às nossas necessidades.

Diz-se que o dinheiro tem como objectivo a “transição digital” e a “economia verde”. A “economia verde” percebe-se, mas servirá apenas uma pequena parte das nossas actividades produtivas. A “transição digital”, para além de um slogan da moda, estou para saber o que é, e o que sei, principalmente na educação, deixa-me de pé atrás. Se se trata de transformar as nossas mercearias em mini-mini-Amazons, muito bem, como é muito bem que tudo o que possa ser tratado digitalmente na nossa pequena economia faça essa transição. Temos aí muito que andar, mas os negócios onde há baixa qualificação da mão-de-obra e péssima gestão não vão mudar pela “transição digital”.

Muitos dos nossos problemas são de natureza social, dependem de reacções entre pessoas, grupos e da distribuição de poder e, contrariamente ao deslumbramento tecnológico que por aí anda, isso não muda no mundo digital. Pelo contrário, o mundo digital revela uma grande capacidade de reproduzir as exclusões e de as transportar “de fora” para “dentro”.

As minhas dúvidas no mundo da educação são de outra natureza, e aí são mais graves. A pandemia e as aulas à distância revelaram uma enorme percentagem de estudantes sem acesso à Internet, e sem acesso a computadores, e aí a “transição digital” é um enorme benefício. Mas se se começar a entender que a comunicação digital e o acesso digital se farão pela retirada do ensino da relação com um mundo em que somos analógicos, e pensamos de forma analógica, e os nossos sentidos são analógicos, então, com muitas luzinhas e animações e virtualidades, entramos numa nova forma de escolástica muito pobre. Escrevo isto porque é um processo já em curso, com “gerações mais educadas” bastante incultas e ignorantes.

Ninguém liga nenhuma ao facto de uma certa forma de ignorância agressiva estar a crescer, e a como isso se está a tornar um grave problema social, e político.

Numa sociedade como a portuguesa, será um retrocesso civilizacional e um risco para a democracia. A dificuldade de separar a verdade da mentira, o crescimento das teorias conspirativas, as ideias contra a ciência, tudo isto está a ganhar terreno. O populismo moderno dá-lhes uma expressão política eficaz.

O meu retrato de Portugal é pessimista? Já era assim antes e não está pior. Nunca me iludi por nenhuma das coisas que andaram a deslumbrar-nos nos últimos anos, start-ups, turismo, todas as coisas em que éramos os “melhores do mundo”. Qual a utilidade de o dizer nestes tempos? Talvez se façam duas ou três coisas em que não se possa voltar para trás: um robusto sistema universal e gratuito de saúde, acesso universal à Internet, comboios que sirvam Portugal, o fim do “Jamaica” com casas decentes, etc.. Vão querer fazer cinco mil coisas, mas, se fizerem cinco, já valeu a pena a martelada do Thor.»

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