«Assinalou-se no último sábado, dia 20 de junho, o Dia Mundial do Refugiado. O dia dos mais de 26 milhões de refugiados em todo o mundo. 26 milhões. Este número é, para muita gente, isso mesmo, só um número, mas deixa de o ser quando conhecemos as pessoas que ele representa, as suas vidas, as suas histórias e os seus sonhos. Deixa de o ser quando conhecemos o Ahmad que veio dos Camarões porque foi obrigado a alistar-se a uma milícia terrorista e, como ritual de iniciação, teria que matar a sua própria mãe. Deixa de o ser quando conhecemos o John, do Congo, que fugiu do seu país porque mataram toda a sua família. Deixa de o ser quando nos contam que só querem poder recomeçar e reconstruir-se. Não deveria ter de haver um dia mundial do refugiado para nos lembrarmos deles, não deveria ter que existir um dia 20 de junho para pensarmos neles. O dia mundial do refugiado são todos os dias, porque todos os dias, a cada dois segundos há uma pessoa que é forçada a abandonar a sua casa devido a conflitos armados ou perseguição étnico-racial. Dois segundos.
Hoje talvez seja mais importante do que nunca falar sobre vocês, porque, a cada ano que passa, o problema agrava-se e este ano, no contexto em que vivemos, são vocês, como sempre, que mais sofrem. Uma crise como esta é sempre tremendamente desigual, não há crises que afetem todos da mesma forma e isso é hoje flagrante: são os mais pobres os mais afetados e com menos possibilidades de combater a pandemia, são os bairros mais precários que têm um maior número de casos e propagação da covid-19, e esta crise, como todas as outras, irá agravar o enorme fosso entre classes sociais.
Imaginemos agora, que viveríamos num campo de refugiados, com capacidade para 3000 pessoas e que alberga 20.000. Imaginemos agora que, não bastando as condições desumanas em que esses milhares de pessoas vivem, com famílias inteiras a viver durante dois anos numa tenda de 5 metros quadrados, fecham o campo de refugiados, não deixam ninguém entrar ou sair, para impedir a propagação do vírus. Imaginemos que exigem a essas 20.000 pessoas que mantenham a distância social e que lavem as mãos com frequência. Que distância social se mantém num contentor com 30 pessoas a dormir no chão? Que lavagem das mãos é possível com uma torneira para cada 500 pessoas? Que vida lhes resta quando os poucos bens ou ajudas que já tinham, escasseiam pela impossibilidade das ONG trabalharem, sendo obrigados a comer comida crua depois de 3h numa fila à espera? E tudo isto, sob a desculpa das políticas sanitárias no contexto da pandemia. Mas que doença é esta que nos faz esquecer a humanidade, que não nos deixa dar a mão ao outro quando se está a afogar às portas da Europa? Que doença é esta que criminaliza a ajuda humanitária e exige o impossível a quem não tem tecto, água e as mínimas de higiene? Não, não se chama covid-19. Esta é a degradante doença da desumanidade, do oportunismo político e da cegueira.
Esta é a doença que já corre na Europa há muitos anos e que foi exponenciada pela pandemia. É a doença que deixa em terra dois barcos de resgate no mediterrâneo de migrantes e refugiados durante dois meses, incapacitados de fazer o seu trabalho, pelo “risco de contágio associado a esta prática”, mas que já existia quando não havia coronavírus, ao obrigar embarcações com centenas de migrantes a ficar semanas ao largo de Itália pela impossibilidade atracar. É a doença que deixa uma embarcação três dias ao largo da ilha de Lesbos, na Grécia, sob o olhar da Guarda Costeira Grega, com mais de 30 pessoas vindas da Turquia, com uma grávida doente que acabou por parir na embarcação e teve uma grave hemorragia pós parto. Mas é a mesma doença que impediu os migrantes recém-chegados à Grécia de requerer asilo, que fez dezenas de pushbacks ilegais ao longo das fronteiras no início deste ano. É a mesma doença que o ano passado fez o Parlamento Europeu chumbar as resoluções que apoiavam o resgate e salvamento de vidas no mediterrâneo. É a doença que corrói a Europa, que faz com que o tão apregoado continente charneira dos Direitos Humanos, seja o mesmo que se descarta de salvar vidas, que financia milícias terroristas na Líbia e que ergue fortalezas e muros. Esta é a mesma doença que é filmada quando há fogo mas esquecida quando as cinzas quentes se espalham, esta é a doença que tem a nossa atenção quando a ferida jorra sangue, mas que que é renegada depois, enquanto o músculo apodrece e morre. E infectados por esta doença, lembramo-nos vagamente que em 2017 750 mil rohingyas fugiram do Myanmar para o Bangladesh, mas ignoramos que passados três anos tudo está na mesma. Recordamos as imagens dos milhares de pessoas a fugir da Venezuela há três anos e não sabemos, ou não queremos saber, que hoje em dia milhares de venezuelanos ainda passam a fronteira para fugir da miséria, e que insistimos em chamar “crise de refugiados” ao influxo de pessoas na chegada à Europa em 2014, ignorando que 2019 foi o ano em que mais gente chegou ao continente dos últimos cinco.
Esta é a doença crónica mais grave dos nossos tempos, que transformou o mediterrâneo na fronteira mais mortífera do mundo, onde jazem mais de 10 mil pessoas que vinham em busca de uma nova vida. É a doença que deixa um milhão de rohingyas no Bangladesh, sem acesso à Internet, sem possibilidade de aceder a serviços públicos, confinados no maior campo de refugiados do mundo, sem perspectivas nenhumas de poderem regressar à sua casa ou de poderem reerguer uma nova.
Esta é a mesma doença que trouxe ao Parlamento português, o discurso xenofóbico, racista e autoritário pela primeira vez na história da democracia portuguesa. Hoje, há um deputado a sugerir a criação de autênticos guetos para ciganos e a prometer a prisão e punição para quem diga mal ou insulte as forças de segurança. Hoje, mais do que nunca, temos que falar de vocês e de humanidade, por ser cada vez mais urgente, e porque calar é consentir.
Qual a cura para esta doença, perguntar-se-ão muitos dos leitores. É difícil e morosa, e implicaria outro infindo texto sobre políticas migratórias e de asilo.
A solução ideal passaria, obviamente pela resolução do problema a montante e pela salvaguarda de condições de paz e segurança que permitissem a estas pessoas regressar à sua nação. Ao contrário do que muitos pensam, os refugiados fogem da sua casa por causa da guerra ou perseguições étnico-raciais incomportáveis, e fazem-no com uma dor e uma amargura inimagináveis. Gostavam de nunca ter saído e abandonado o seu país, mas não tiveram alternativa, e queriam um dia poder regressar. Mas como se regressa à Venezuela, à Síria, ao Myanmar ou ao Congo? É impossível. Basta olhar para os números: o tempo médio que um refugiado fica em exílio, impossibilitado de regressar a casa, são 17 anos. 17 anos é uma infância inteira.
Assumindo esta inevitabilidade, pelo menos a curto prazo, há aceitar que os refugiados continuarão a existir e a tendência é que o número seja cada vez maior. O problema então coloca-se: como receber estas pessoas? Muitas delas ficam condenadas a passar anos sem fim em campos de refugiados e este é talvez o maior dos problemas: estes campos têm que se lugares de passagem, não podem ser sítios onde se ficam 3,4 ou mais anos, sem possibilidade de produzir, de ter rendimentos, ou de construir planos de vida. Conheci crianças em Lesbos que estavam num campo de refugiados há três anos à espera da resposta ao pedido de asilo. Três anos sem escola, sem conhecer mundo além daquelas cercas, sempre dependentes de ajuda e sem um plano ou uma ideia de futuro. O processo de pedido de asilo é extraordinariamente demorado, e a espera e a incerteza são um fardo insuportável para muitos deles. Assumindo que, infelizmente, a morosidade da resolução dos pedidos de asilo é difícil de resolver, pelos recursos humanos escassos ou, pela maior parte das vezes, por uma tremenda falta de vontade política, que sejam dadas condições dignas às pessoas enquanto esperam. Basta olhar para os campos da Jordânia, com pré-fabricados, espaço, organização e condições de higiene ou para os campos de Moria ou de Samos, com condições deploráveis e inimagináveis em que ninguém deveria ser obrigado a viver, ainda para mais na Europa. Há exemplos extraordinários por esse mundo fora de como é possível mudar este paradigma dos campos de refugiados, desde projectos de reflorestação que foram terreno fértil para a paz entre comunidades, a campos em África em que cada família de refugiado tem direito a um pedaço de terreno que pode cultivar, cuidar ou construir. Mas a mais eficaz de todas estas soluções, principalmente na Europa é uma e só uma: a abertura de fronteiras e o fim do tratado entre a Turquia e União Europeia.
Também aqui, em Portugal, são visíveis bons e maus exemplos da integração. No mesmo mês em que o Governo concedeu cidadania temporária a todos os requerentes de asilo para poderem aceder livre e gratuitamente a todos os serviços públicos, vieram a lume as condições precárias em que muitos migrantes vivem na cidade de Lisboa, encafuados em hostels sem a mínima capacidade de resposta, o que acabou por correr muito mal, como sabemos. E é nos países de acolhimento que o desafio é especialmente difícil: desmistificar a ideia da subsídio-dependência dos refugiados e de aproveitamento de recursos dos países que os recebem. Vários estudos indicam que o investimento inicialmente feito é rapidamente reposto após 2 anos, com retorno para a economia e diminuição das taxas de desemprego graças ao acolhimento e às políticas de integração.
Os tratamentos para esta doença são vários mas a primeira terapêutica é simples: aceitar que uma vida é sempre para salvar, aceitar que qualquer pessoa, seja cigana, branca, preta, muçulmana ou homossexual deverá ter as mesmas oportunidades que todas as outras, e aceitar que todas merecem uma vida: que a Julia poderá um dia ter trabalho e ser mãe, mesmo tendo fugido da sua casa a arder no Congo, que o Abdullah poderá um dia ser advogado para fazer justiça aos que foram tremendamente injustos com ele, e para que a cada dois segundos não haja uma nova Julia, um novo Abdullah neste mundo, cujos sonhos são destruídos por uma Europa inerte e por um mundo que vê num vírus uma desculpa para deixar de cuidar e olhar pelo outro e não uma alavanca para a igualdade e dignidade de todas as vidas.
Nos três minutos que demorou a ler este texto, cerca 90 pessoas foram obrigadas a fugir de casa, só com uma mochila às costas. Lembremo-nos delas hoje, para que possam crescer além do seu passado e recomeçar de novo, com dignidade e humanidade, em Portugal, na Europa ou em qualquer outra parte do mundo. Porque enquanto houver vontade, união e esperança, haverá sempre um porto seguro para vocês.»
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