«Quando comparado com o programa de Governo de há quatro anos, este é muito menos distintivo. Dirão que é normal. O primeiro-ministro é o mesmo, os ministros são quase todos os mesmos. Mas as circunstâncias são totalmente diferentes. Como muitos assinalaram como crítica um pouco sonsa, o Governo anterior foi de reposições e reversões. Como tinha de ser, depois das brutais doses de austeridade impostas, com recuos sociais raramente vistos em tão pouco tempo. Não era um Governo de programa, era um Governo de emergência social. Concentrado mais no presente, socorrendo situações de dramática injustiça, do que no futuro.
Mesmo assim, assistimos a reformas estruturais de esquerda, como uma redução drástica dos passes sociais que terá efeitos profundos na vida urbana, na distribuição de rendimentos e nas exigências de investimento público. E tivemos leis estruturantes, como a Lei de Bases de Saúde. Ou medidas de justiça social com impacto profundo, como o aumento do Salário Mínimo Nacional. Nada mau, para um Governo que só pretendia fazer recuar o tempo para o pré-troika. Como sabemos, só não o fez nas leis laborais. Aí, o Governo acha que não tem de governar. Quem tem o direito a fazer e desfazer as leis são os patrões. E lá está a UGT para aprovar sempre, a CGTP para reprovar sempre e os nossos eleitos para ficar a ver.
Aproveitada a conjuntura económica favorável e uma maioria parlamentar que ancorou o PS à esquerda, foram corrigidas muitas das injustiças dos anos da troika. Agora, seria o tempo das verdadeiras reformas de esquerda. Agora sim, seria possível olhar para o futuro. E quem tenha essa ambição não pode deixar de achar o programa de Governo dececionante. Não digo que seja mau. É apenas vago e poucochinho para quem vai para um segundo mandato e tem uma situação económica, política e financeira que lhe daria a oportunidade ir mais longe do repor e reverter.
A sensação com que se fica é que, depois de quatro anos de geringonça, o PS quer regressar à normalidade. Antes de tudo, não parece ter havido grande vontade de acomodar no programa preocupações que correspondam à maioria de esquerda que António Costa insiste em dizer que existe. Ao contrário do que aconteceu há quatro anos, este é, mais coisa menos coisa, o programa do PS. PS que, recordo, não tem maioria parlamentar. É, portanto, um programa minoritário. Legítimo, mas minoritário.
Lá se dão os 2% para a cultura mas nela entra tudo e um par de botas, da RTP ao ensino artístico. As grandes mudanças são em questões ambientais, sem nenhuma visão especialmente distintiva do que qualquer outro Governo poderia fazer. Recua-se na reforma eleitoral, porque não há a maioria de dois terços que seria necessária para a fazer. Cede-se ao PAN nas touradas. E volta-se aos bancos de terras que, apesar da embirração de Costa com o Bloco, só não aconteceu por oposição do PCP. Aliás, é curioso que a única reforma importante que o Governo anterior não conseguiu fazer tenha tido o apoio bloquista e a oposição comunista. Mostra como os problemas de António Costa com Catarina Martins eram mais eleitorais e pessoais do que negociais e programáticos. Enfim, estamos, no essencial, perante um programa de gestão.
O teste do regresso do regresso da governação à “normalidade” será a gestão dos aumentos do Salário Mínimo Nacional, já anunciados por Costa. Veremos se a eles corresponderão mais algumas cedências às exigências dos patrões, como foi tentado na legislatura, sem sucesso, ao compensar um aumento com mexidas nas TSU. Seria uma forma de o Governo entalar a esquerda, colocando-a entre a espada de mais flexibilização laboral e a parede do aumento dos salários mais baixos.
No discurso de posse, o primeiro-ministro celebrou um casamento unilateral: “A ausência de uma maioria absoluta impõe aos partidos que têm sido – e queremos que continuem a ser – nossos parceiros, o dever acrescido de contribuírem de modo construtivo para o sucesso deste diálogo ao longo de toda a legislatura”. E tem deixado avisos à navegação sobre a estabilidade do Governo. Costa insiste em tentar impor as vantagens de ter um Governo maioritário. O PS governa sem uma maioria estável por opção própria. Nem sequer foi porque alguém lhe tivesse imposto condições impossíveis. Isso só saberíamos se tivesse sequer iniciado um processo negocial. Não o quis. E o programa que apresenta demonstra que está determinado a ceder o mínimo possível. Está no seu direito. Não pode é, depois de recusar reeditar maiorias do passado, chamar parceiros a quem recusou como tal.
Foi Costa que não quis novos acordos. Não tendo uma maioria absoluta, isso obriga-o a procurar entendimentos, não lhe dá o direito de impor a nenhum partido, seja de esquerda ou de direita, qualquer dever prévio. Se queria uma maioria estável, tinha negociado um programa conjunto, com cedências de parte a parte para quatro anos. Não pode fazer o seu programa, recusar acordos e depois pôr nos outros o ónus da estabilidade. Se o programa é do PS, é o PS que tem de procurar maiorias. Costa quer negociar e aprovar leis com quem lhe apetecer, não ter compromissos de linhas vermelhas com ninguém e, ao mesmo tempo, amarrar os partidos à sua esquerda à sua própria sobrevivência. Quem não gosta de uma relação aberta com juras de fidelidade do outro lado?»
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