17.5.25

Música para Dia de Reflexão (2)

 



Dia de cão

 


Eu tenho neste blogue um texto escrito por Nuno Brederode Santos num Dia de Reflexão, publicado no DN de 15.07.2007. Ressuscitei-o hoje para quem, como eu, nunca se cansa de reler a bela prosa do Nuno.

«Por sair ao Domingo, este espaço está sujeito à maldição dos períodos de reflexão eleitoral. Ainda há pouco mais de um ano, tal sucedeu com as presidenciais e eu derramei por aqui meia dose de queixumes e outro tanto mau feitio. E embora a autocitação costume ser vista como uma variante benigna de onanismo, seja-me consentido algum recurso a ela.

A reflexão imposta por lei é o produto directo e linear de uma transição democrática. Ao cabo de quase meio século de cidadania mutilada, o seu pleno exercício, pelos cidadãos em tirocínio que nós éramos, parecia aconselhar medidas dessas. Mas, trinta e tal anos e dezenas de votações depois, a sua subsistência é a manifestação de um puro paternalismo de Estado. "O Estado legislador já não protege o cidadão. Protege, sim, o estado administrador contra algumas maçadas técnicas." Cada um devia "ser dono e senhor do período de reflexão de que carece (se é que carece de algum)", porque o dispositivo, "concebido para defesa do repouso intelectual dos eleitores, só parece já salvaguardar o repouso físico dos candidatos".

Ora, porque assim não é, o dia de reflexão torna-se estranho, enevoado e penoso de viver. Há uma bruma anómala à nossa volta e parece que nos movemos numa second life onde cada olhar é um espanto e cada passo uma aventura. De manhã, no café, primam pela ausência os amigos e vizinhos mais político-dependentes. E os demais avatares que pontuam a esplanada são seres desconhecidos, translúcidos e dotados de sorrisos lentos e mãos que mexem como num espaço sem gravidade. É assim nas Amoreiras velhas, uma amável aldeia urbana, logo pela manhã. Mas é assim também em Campo de Ourique, cidade na cidade, bairro onde nasci e ao qual muito me liga ainda. (Por vezes, nem sei ao certo em qual moro. Em qualquer deles vem-me à mente uma frase provocatória do Lee Marvin/Liberty Valance, no clássico de John Ford: "Home is where I hang my hat", que eu peço licença para traduzir por "Eu moro onde penduro o meu chapéu").

É nesse ambiente equívoco, feito de trocas de olhares entre gente vagamente conhecida, que se gera uma forma bizarra de cerimónia cívica, por força da qual ninguém diz nada que remotamente evoque as eleições iminentes. Como se a opinião de um pudesse lesar, ou contagiar, o outro. Ou o juízo deste, que na véspera teria sido de seu inteiro direito, fosse hoje um abuso ou uma agressão. A meio do dia, já quase preferimos não conhecer ninguém. É certo que, quando eu nasci, também não conhecia cá ninguém. Mas, demasiadas décadas depois, um exercício de quase regresso ao útero materno violenta uma vida inteira de direitos adquiridos. É maçador, embaraçoso - enfim, em sentido próprio, um atraso de vida.

Ignoro que remédio lhe dão os mais destemidos. Por mim, recolho às vantagens práticas de uma resposta tímida e timorata à situação: recolho a casa. Onde não terei serenidade psicológica para ler, nem vertigem activista para escrever. Olharei bovinamente para a televisão, na esperança (sempre) vã de ver passar, por entre as pálpebras a meia haste, o relance de um candidato, a sombra de um eleitor ou, ao menos, o olhar cúmplice de um "pivot" de telejornal a transmitir-me qualquer coisa que se assemelhe, já não a solidariedade, mas pelo menos a um pouco de compreensão. Em vez disso, porém, serei bombardeado com desastres de viação, fogos frustrados, crimes passionais e patetices ditas "sociais" de "celebridades" que o não são. Com sorte, terei talvez o comendador Berardo a explicar mais uma iniciativa altruísta. Ou até um dirigente da oposição a dizer que exige ao poder o que não pode dar e um governante a dar-me aquilo que já é meu. Depois, terei minuciosas e por vezes ininteligíveis notícias sobre acontecimentos políticos, mas da Europa e do Mundo, onde a maldição não chega. E, logo que se tenha dado despacho a quase vinte minutos de electrodomésticos, automóveis, detergentes, telemóveis e supermercados, servir-me-ão os eventos do mundo admirável da época das transferências no futebol nacional.

Está escrito, vai ser assim. E, pelos vistos, até que a morte nos separe.»

Música para Dia de Reflexão (1)

 



Jovens que emigram: um bonito tema para o dia de reflexão

 


«Todos os anos temos esta parvoíce de ir à procura da lei que diz — nunca ninguém se lembra do quê exactamente — que no dia de reflexão é proibido falar de política nos media.

Quando a encontro, fico sempre espantada: os jornalistas são mesmo mais papistas do que o Papa.

Nenhuma lei proíbe “falar de política” no dia de reflexão. Há frases sobre o tema, mas nada diz isso. Encontrei quatro:

— “É proibido fazer propaganda por qualquer meio na véspera e no dia da eleição”, diz a Comissão Nacional de Eleições (CNE) nas Perguntas Frequentes: eventos na véspera e no dia de eleição;

— “A disseminação de conteúdos de campanha eleitoral nos dias de reflexão e da correspondente eleição” é proibida, diz o Regime Jurídico da Cobertura Jornalística em Período Eleitoral (Lei n.º 72-A/2015, 23 de Julho);

— “Quem no dia da votação ou no anterior fizer propaganda eleitoral por qualquer meio é punido com pena de multa não inferior a 100 dias”, diz o artigo 177.º da Lei Eleitoral das Autarquias Locais;

— “As notícias ou quaisquer outros elementos de reportagem que divulguem o sentido de voto de algum eleitor ou os resultados do apuramento só podem ser difundidos ou publicados após o encerramento de todas as assembleias de voto”, diz a mesma lei no artigo 127.º.

Os jornalistas relatam, descrevem, verificam, analisam e comentam a vida política, os partidos e as suas máquinas de propaganda. Se André Ventura tiver hoje uma terceira crise de saúde, esse facto deve ser omitido porque seria propaganda ou relato do estado de saúde do líder de um partido? O enredo à volta deste “proibido fazer propaganda” é grande, mas a regra tem que ver com acções de campanha directas, como comícios ou vídeos a apelar ao voto. Não tem que ver com os jornalistas, mas com os partidos.

Já a “disseminação” tem que ver com jornalistas. Mas repare: a seguir a “disseminação”, a lei diz “de conteúdos de campanha eleitoral”. Não sei como é que isto se tornou a ideia generalizada de que a lei nos impede de falar de política. É claro que podemos falar de imigração, habitação, educação e todos os "ãos" que nos preocupam sem que isso viole a lei. A lei não proíbe discutir política, proíbe discutir a campanha.

Um passo à frente: mesmo que citássemos um partido — reproduzindo “conteúdos de campanha” —, que sentido faz esta proibição hoje, quando tudo está online e o voto antecipado é permitido a qualquer cidadão?

Este ano, dos 333 mil inscritos para votar antecipadamente, votaram 94,45%, um recorde. Mais de 300 mil pessoas votaram a 11 de Maio, em plena campanha eleitoral. O seu voto foi menos livre e reflectido do que o de quem vai votar este domingo? Claro que não.

Se não há problema que 300 mil pessoas votem durante a campanha, quando tudo à sua volta é feito para o influenciar, porque é que há problema em influenciar os que votam depois da campanha?

Este paternalismo seria compreensível, vá, em 1979, quando sabíamos pouco de democracia, não havia Internet e a lei eleitoral só permitia o voto antecipado a quem estivesse no estrangeiro, doente ou preso.

Se este silêncio imposto pela lei é esquisito e anacrónico na era digital, é particularmente esquisito e anacrónico desde 2018, quando a lei alargou o voto antecipado a qualquer cidadão. Há sete anos que podemos votar durante a campanha sem termos de apresentar qualquer justificação. Aparecemos, votamos, está feito.

Falta o último cenário previsto na lei: é proibido divulgar “o sentido de voto de algum eleitor”. Se eu disser que, em 2024, Quim Barreiros actuou no comício de encerramento da campanha do Chega em Lisboa; Rui Massena assinou o manifesto de apoio à AD; Sérgio Godinho e Jorge Palma apoiaram o Bloco de Esquerda; Lena d’Água votou no PS e o rapper Valete esteve pela CDU, como o Expresso noticiou no ano passado, estou a violar a lei? E se fizer o mesmo levantamento para 2025?

Hoje, quando for à praça comprar flores frescas, vou ver os cartazes de campanha na rua e, no meu telefone, vou ver tudo o que quiser, incluindo as notícias dos jornais e a propaganda dos partidos. Mas a CNE tem medo de tudo o que possa “influenciar os cidadãos eleitores”. Que ideia mais pueril. O legislador olha para nós como se fôssemos uns seres frágeis, metidos numa cápsula hermética e isolada, cuidado, não nos influenciem.

Claro que dizer “qualquer coisa” é um exagero. Continuo sem saber porque é que é repetido, dia-sim-dia-sim, da esquerda à direita, antes e durante a campanha, há um ano e meio sem interrupção, que uma das tragédias de Portugal, suposta prova de que o nosso país é uma desgraça, é os jovens emigrarem “muito”, “como nunca”, “mais do que alguma vez”.

Só a análise dos mil milhões de linhas — literal — dos últimos ficheiros da OCDE nos vai dar um retrato geral completo. É mais difícil do que parece. Primeiro, porque cada país recolhe os dados à sua maneira.

Portugal diz que x pessoas emigraram no ano y com base numa pergunta que faz no Inquérito ao Emprego, qualquer coisa como “alguém do seu agregado familiar emigrou no último ano?”. Há países que recolhem os dados desta forma, como a Alemanha. Mas o Reino Unido pergunta no aeroporto, também a partir de uma amostra, “está a sair porque vai emigrar?” ou “está a entrar porque emigrou?”. Basta mergulhar no documento Perfil das populações imigrantes no século XXI — Dados dos países da OCDE sobre a metodologia para perceber a dificuldade em comparar países, fazer rankings internacionais e dizer o país A está melhor do que o país B: as excepções e diferenças de métodos usados na OCDE enchem 16 páginas.

Há um ano e meio que ouço o repetido lamento dos “30% dos jovens nascidos em Portugal que vivem fora do país”, como se isso fosse uma novidade ou uma anomalia na nossa História.

Isto quando pelo menos desde 2000 que sabemos que 70% dos que emigram de Portugal são jovens. É o que mostram as estatísticas e é o que nos diz o bom senso. Sempre foi assim e é assim em todo o lado e em todas as épocas. Não são os velhos que emigram, são os jovens. Aqui, na Holanda, no Congo e na China. E há mais jovens licenciados a emigrar? Claro que sim. Se o país tem mais licenciados, é natural que haja mais licenciados a emigrar. O mesmo se passa à nossa volta. Também os outros têm cada vez mais licenciados a sair. Nós saímos para o Reino Unido, o Reino Unido sai para os EUA e para a Austrália. Para ganhar mais dinheiro, para viver uma aventura, para trabalhar no seu nicho profissional.

O mais insólito é que o número nem é rigoroso. O mágico “30%” saiu de uma entrevista na qual foi dito que os jovens que vivem no estrangeiro são mais de 20%, talvez 25%, no máximo 30% — mas foi o 30% que ficou.

Falo dos jovens que emigram, mas podia falar de mil outras coisas. O dia da reflexão bem podia ser transformado em Dia da Verificação de Mitos.»


16.5.25

Não é fé, é fezada

 


«A cena de Montenegro a falar da “fé que tem um lado misterioso”, chamando as televisões no dia seguinte para filmarem o encontro com a mulher em peregrinação a Fátima, foi uma tentativa de colocar na montra das transcendências a coincidência de estar perto do santuário quando o novo Papa foi eleito. Era suposto haver quem visse nessa acção de campanha um sinal divino? Estaria Deus a antecipar-se a Marcelo, preocupado com as condições de governabilidade em Portugal, e quisesse dar uma ajudinha concedendo maior dimensão à vitória esperada? Quer-me parecer que se Deus se metesse nestas coisas era bem capaz de penalizar a máquina laranja por excesso de voluntarismo, ou não fosse a invocação indevida do nome de Deus uma proibição em forma de segundo mandamento. (…)

Não nos iludamos, no entanto, é por uma fezada, ou várias, que vamos a votos no próximo domingo. A fezada de Luis Montenegro de que a vitimização o pode aproximar da maioria absoluta; a fezada de Pedro Nuno Santos de que a indignação dos portugueses com a falta de transparência de Montenegro será tão grande que vai dar-lhe a vitória; a fezada do Chega de que vai crescer sempre que houver eleições legislativas... e as outras fezadas dos outros partidos.»


16.05.1974. Posse do 1º Governo Provisório

 


Há 51 anos, tomou posse o 1º Governo Provisório  que iria durar apenas dois meses. Na sequência do pedido de demissão de Palma Carlos, foi formado o 2º Governo Provisório, presidido por Vasco Gonçalves.
 



Quem era o quê:

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Eleições: já gastaram as vossas criptomoedas?

 


«Em muitos países, o site foi bloqueado, como nos Estados Unidos da América (EUA), em Singapura, França, Taiwan, Polónia, Bélgica, Suíça, Bolívia, Venezuela e Irão. Em Portugal não existe qualquer restrição relativa ao Polymarket.

Por cá o negócio dos criptoativos é regulado pela Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e pelo Banco de Portugal.»

16.05.1958 - Chegada de Humberto Delgado a Santa Apolónia

 


Em 16 de Maio de 1958, vindo do Porto, Humberto Delgado foi alvo de uma grande manifestação de apoio em Santa Apolónia, violentamente reprimida pela polícia.

Seis dias antes, durante a conferência de imprensa de lançamento da campanha, no Café Chave d’Ouro em Lisboa, tinha dito a frase que viria a ficar célebre: «Obviamente, demito-o!»
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Para pintar político de verde, tire a senha aqui

 


«Ah, a nostalgia dos primeiros atentados dos activistas climáticos… Eram surpreendentes, frescos, plasticamente deslumbrantes. Ver um ministro coberto de tinta verde satisfazia uma ambição estética que ninguém sabia ter. Da parte do activista, requeriam uma astúcia rara. Tinham de se infiltrar numa acção de campanha e simular interesse pelas palavras do orador — que é especialmente difícil de fingir. Era preciso apanhar os seguranças distraídos, aproximar-se dissimuladamente e, por fim, lançar a tinta. Agora, como se viu no incidente protagonizado por Rui Rocha, da Iniciativa Liberal, não é preciso invadir o palco a correr. Os activistas apresentaram-se junto do púlpito e foram cumprimentados pelo líder partidário. Seguiu-se uma breve conversa que não foi possível ouvir, mas que é fácil de imaginar.

— Boa tarde. Para esverdear, é aqui?

— É, sim. Estávamos à vossa espera. Quase todos os outros partidos já tinham tido candidatos cobertos de tinta verde. A vossa indiferença começava a preocupar-nos.

— Pedimos desculpa. Não nos interprete mal, nós também o abominamos.

— Agradeço. Estou pronto para ser imolado pela vossa fúria.

Depois, os activistas revolveram demoradamente um saco, para reunirem uma boa mão-cheia de pó. Rui Rocha aguardou, com muita paciência. Quando o pó foi arremessado, o presidente da Iniciativa Liberal não se mexeu, permitindo que os activistas o cobrissem de tinta. Findo o enfarinhamento, Rui Rocha esperou um pouco, só para garantir que a cerimónia tinha terminado, e voltou ao púlpito para exibir o seu martírio verde. O público ficou eufórico. Os assessores apareceram nessa altura, e levaram os activistas com o alívio de quem foi capaz de chegar a tempo de não conseguir evitar o atentado. Eram assessores jovens, e não deve ter sido fácil moverem-se de forma tão lenta.

Proponho que, de agora em diante, o ritual passe a ser incluído na campanha. Os jornalistas recebem agendas que dizem: “No sábado, o líder do partido visita uma feira de manhã e, à tarde, é coberto de tinta verde por activistas.” Para que o trabalho fique bem feito, sugiro que os activistas montem uma banquinha de maquilhagem, como as dos aniversários de crianças, na qual possam pintar o candidato, durante uma boa meia hora, com um desenho à sua escolha: um animal em vias de extinção, um fragmento da floresta amazónica, uma fábrica a deitar fumo. Vamos levar esta colaboração para o próximo nível.»


15.5.25

Spinumviva?

 


Ventura e o segundo incidente de doença

 


O que estranho é que André Ventura ande há horas a percorrer instituições do SNS (vai, no momento em que escrevo isto, a caminho da terceira em Setúbal), em vez de contratar uma ambulância privada que o tivesse trazido directamente de Odemira para um dos maiores hospitais privados em Lisboa. Já cá estaria há que tempos.

Estou a ser cínica? Não. Apenas procuro um mínimo de coerência na mente de quem nunca a tem, seja qual for o tema.

Chega? Nem há comentários possíveis

 


Invejei a liberdade de Mujica

 


«Não sou dado a heróis. Os vivos toldam o sentido crítico. O nosso e o deles. Prefiro a confiança precária. Os mortos perdem as contradições que fazem deles humanos. Lembro-me, aliás, de me ter rebelado contra a beatificação de Nelson Mandela, que o transformou numa Madre Teresa, vazio de radicalidade e política. Nem Madre Teresa merece ser Madre Teresa, como se veio a saber. Mas podemos usar os heróis por aquilo que são: modelos morais idealizados. Arquétipos de virtudes que gostaríamos de ter e não temos, caso contrário não precisaríamos deles.

Há duas personagens contemporâneas que representam, de forma caricatural, um confronto de valores, modos de vida e ideais políticos. Duas personagens de personalidades exageradas que permitem uma adesão romântica: Elon Musk e Pepe Mujica.

Musk é o homem mais rico do mundo. Provavelmente o mais rico que a humanidade conheceu. Conquistou tudo o que queria conquistar. A sua personalidade corresponde aos valores deste tempo e Musk é símbolo máximo da virtude capitalista: empreendedor, egoísta, exibicionista, impiedoso e arrogante na vitória. Tem imensos seguidores que, apesar de não terem onde cair mortos, lhe imitam o estilo. O seu dinheiro é transformado em poder para mudar o mundo em seu favor. Musk não é só Musk. É uma ideia: que a concentração de riqueza e a ambição pessoal sem limites, mesmo que se confundam com a ganância, são motores de prosperidade.

Mujica não foi apenas pobre. Aliás, se essa tivesse sido uma mera condição, teria deixado de o ser depois da Presidência, cujo salário doou em quase 90%. Mujica escolheu a pobreza como mensagem política. Não para defender uma sociedade de pobres, mas para defender o despojamento material, que é a mais radical das mensagens contra o capitalismo, por de alguma forma o sabotar. É uma pobreza ecológica, se quisermos.

Pelo menos recentemente, Mujica não passou fome, frio ou privações graves. Apenas prescindiu do que considerava desnecessário, aquilo em que, no mundo mais rico, gastamos boa parte dos recursos. O seu exemplo é usado para tentar mudar o mundo. Mujica não foi só Mujica. É uma ideia: que a partilha, a cooperação e a solidariedade, mesmo que se confundam com despojamento, são motores de desenvolvimento humano.

Para admirar Mujica não é preciso ser pobre. Nem sequer é preciso desejar ser pobre. Não é mesmo necessário achar que os políticos deviam ser pobres. A admiração, pelo contrário, é por aquilo que não nos deve ser exigido. É por aquilo que nós sabemos que não conseguiríamos e por isso mesmo não podemos exigir aos outros, incluindo aos políticos.

Nunca tentaria copiar Mujica. Longe disso. Tenho gostos suficientemente burgueses para saber que não o conseguiria. Não sou moralista porque não me acho capaz de estar à altura da moral que gostaria de ter. Mas um modelo é como uma utopia: não representa o que somos ou queremos ser, mas o que gostaríamos de ser se tivéssemos as qualidades que sabemos faltar-nos. Um horizonte que nos transmite valores a seguir, não a vida dos que lá estão. Os verdadeiros cristãos, que não têm de ser pobres ou morrer pela humanidade, percebem o que escrevo.

Mais do que admiração, tenho inveja de Mujica. Da liberdade absoluta que o seu despojamento lhe ofereceu. E não tenho qualquer razão para não lhe seguir o exemplo, qualquer condicionalismo que não me permita fazê-lo, a não ser eu não ser Mujica. Não ter as suas qualidades. E é por isso mesmo que o invejo.

Mujica e Musk não são modelos de sociedade, porque o mundo não funcionaria se fossemos todos como eles. São modelos morais de liberdade. E tenho muitíssimo mais inveja da liberdade conquistada pelo despojamento do que da lamentável solidão e do risível exibicionismo de Musk. Se tivesse de escolher entre as qualidades dos dois, não hesitaria. Porque gostava de ser pobre? Odiaria ser pobre. Porque admiro a pobreza? Ela nada tem de admirável. O despojamento sim. É preciso ser extraordinário para não precisar de mais do que o necessário. E a grande diferença entre os dois é que a liberdade de Mujica não se conquista às custas da liberdade de ninguém.

É possível que Musk venha a ser mais recordado do que Mujica. Mas esse é outro equívoco, a que esta crónica não se dedica: a história não trata, ao contrário do que muitos pensam, da justiça. Conta as vitórias dos poderosos. Porque, no fim, são eles que a escrevem.

Foi o próprio Pepe Mujica que se queixou de querer mudar o mundo e nada ter mudado. Não sei se tem razão. Sei que a redução da política à tecnocracia destruiu a sua função inspiradora, mesmo profética, sem a qual se transforma em mera gestão do que existe. Libertários, ultraconservadores e autoritários perceberam isto e trataram dos seus santos e demónios. A esquerda deixou de perceber a importância simbólica de figuras como Mujica.

*Tinha uma versão deste texto, preparada há meses, para a comparação entre Mujica e Musk, enquanto heróis contemporâneos. A morte de Mujica levou a esta publicação bastante editada. Talvez me tenha parecido uma inspiração depois de uma campanha tão vazia.»


Um pouco tarde

 


14.5.25

Copos

 


Copo de ametista em forma de concha, decorado com ouro, rubis e diamantes. Milão, segunda metade do século XVI.
Mais tarde comprado por Luís XIV, está actualmente no Museu do Louvre.

Daqui.

O adeus de Mujica - um homem bom

 

1935-2025

O adeus político de Mujica:




14.05.1958 - Humberto Delgado no Porto

 


«Povo do Porto, a resposta está dada com esta manifestação. Façam eleições livres e venceremos!» Foi com estas palavras que Humberto Delgado se dirigiu à multidão que o aclamou em frente à sede da sua candidatura, na Praça Carlos Alberto, no Porto, há 66 anos. A fotografia passou a funcionar quase como uma espécie de ícone de uma campanha extraordinária que abalou fortemente a ditadura de Salazar.




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A marcelização de quase todos os partidos

 


«Quando, nas autárquicas de 1989, o candidato do PSD a Lisboa Marcelo Rebelo de Sousa decidiu dar um mergulho no Tejo e guiar um táxi pelas ruas da capital, caiu o Carmo e a Trindade.

Marcelo era “o Marcelo”. Por essa altura, já se sabia que “o Marcelo” era diferente de todos os outros políticos e estava sempre disposto às mais variadas maluqueiras. Marcelo é totalmente genuíno, sempre foi assim. Levou a sua personalidade para o cargo de Presidente da República, tornou-se “o Presidente do povo” – apesar dos dias piores – e mostrou abundantemente o seu peito desnudo nas televisões.

Esta campanha para as legislativas, talvez uma das mais desinteressantes de sempre, está a assistir à marcelização de quase todos os protagonistas. Já conhecemos o peito nu de Montenegro numa tarde de campanha eleitoral, e a capacidade de andar de mota de Pedro Nuno Santos. Entretanto, assistindo ao programa de Guilherme Geirinhas, ficámos a saber que Montenegro não pinta o cabelo, fez dieta, gosta de dormir com cortinas cerradas e acha que se o seu filho é bonito é porque “saiu ao pai”.

Pelo que já se sabe da antevisão do programa de Geirinhas, que vai nesta terça-feira para o ar, Pedro Nuno Santos já foi barrado numa discoteca e também tem capacidades de dar saltinhos ligeiramente ridículos lado a lado com o humorista.

O “engraçadismo” tomou conta desta campanha, muito mais do que a política. Os líderes dos principais partidos estiveram mais disponíveis para dar entrevistas a todos os programas de entretenimento e a todos os programas de humor e limitaram ao máximo as entrevistas à imprensa. Como aqui escreveu David Pontes, estiveram mais disponíveis para os humoristas do que para os jornalistas.

Mas a disputa sobre qual será o “candidato mais cool”, como escreveu Daniel Oliveira no Expresso, não se restringiu aos líderes dos mais votados. Para meu espanto, abri esta manhã o Instagram e vi Francisco Louçã, que sempre foi um institucional à sua maneira, a fazer um salto livre de cinco mil metros. Fiquei logo com vertigens. É verdade que Louçã estava a responder ao Chega que, com a educação habitual, o acusou de fazer a campanha de “bengala”, como se isso fosse um problema (era, no caso, preconceito idadista).

Temo pelas eleições do próximo ano: a tendência vai agravar-se.»


Apoio de Ana Drago ao BE

 


13.5.25

Gallé, sempre

 


Vaso de vidro "Gafanhoto e Insecto". Cerca de 1890.
Émile Gallé.


Daqui.

Marisa e a Palestina

 


Fátima

 


Vieira Resurrected no Facebook.

Combatemos Ventura calando os seus alvos?

 


«Pelo país inteiro, uma comunidade tem-se manifestado contra o homem que, desde que fundou um partido, a tem usado para o voto alimentado por um ódio tão antigo como a existência do povo cigano. Um filão extraordinário, apesar dos ciganos não representarem 1% da população. Um ódio que passou da sociedade para o espaço público. Hoje, canais de televisão referem a etnia de um criminoso, se for cigano, esquecendo-se sempre de falar dela se for branco. Talvez por se acreditar que os brancos não têm etnia. São só portugueses “normais”.

Não é a primeira vez que a campanha de um partido é “perseguida” por um grupo que o contesta. Aconteceu com os lesados do BES, com os professores e, um pouco mais complicado, com os polícias. Desde que cumpram a lei – alguns não a cumpriram e devem ser legalmente penalizados – os ciganos têm direito à sua voz e à sua defesa. E nós não temos direito de dizer que continuem a ser humilhados e insultados em silêncio, com a cumplicidade de quem acha que defender estes cidadãos portugueses custa votos.

Muitos consideram, provavelmente com razão, que esta ação concertada está a dar muitos votos ao Chega. Há até quem acredite, porque acredita que os ciganos estão genericamente à venda, que isto é manobra do próprio partido. Uma novidade: os ciganos, como todos os portugueses, têm redes sociais, grupos de WhatsApp e uma facilidade tão grande de se organizarem como qualquer outra comunidade. Outra: sentem os insultos constantes, a culpabilização coletiva e o racismo como qualquer outro grupo sentiria e, como qualquer outro grupo, são impelidos a manifestarem a sua justa revolta.

As considerações táticas quanto às consequências destes protestos estarão certíssimas, mas não se pode esperar que qualquer grupo se veja a si mesmo como um embaraço coletivo, sentindo, em momentos sensíveis, dever de se calar para não beneficiar quem o ataca. É natural que quem é insultado há anos, perante a passividade de quase todos, não seja dado a grandes taticismos. Limitam-se a fazer-se ouvir, como se fazem ouvir os pensionistas que abordam Montenegro. A dificuldade em compreendê-lo resulta da sua subalternização, mesmo aos olhos dos que supostamente os defendem: deviam, pelo menos até às eleições, calarem-se para não dar armas a quem os usa.

Sim, é provável que os protestos dos ciganos dêem votos ao Chega. Assim como as greves de serviços públicos ou as polémicas em torno da comunidade LGBT, incompreensíveis para muitos cidadãos. Mas a ideia de que os ciganos devem ficar calados, os trabalhadores não devem fazer greves, as minorias sexuais não devem ser escandalosas para não fazer crescer o Chega, parecendo acertada do ponto de vista tático, apenas garante que o Chega cumprirá a sua função: instalar o medo e cercar os alvos que escolhe com um muro de silêncio.

Não preciso de repetir o estafado poema sobre os que foram sendo catados pelos nazis, perante a passividade de todos, até já não haver ninguém para defender quem se calou. Acreditem que, em nome de valores que pareciam mais altos, também não era conveniente defender os judeus (hoje poupados pela direita do ódio, por serem instrumentais para alimentar outros ódios), os ciganos ou os gays.

É-me indiferente se, ao combater processos de estigmatização, insulto e culpabilização coletiva, estou desligado do sentimento maioritário e popular. Basta conhecer a história para saber que, em momentos sombrios como os que vivemos, raramente a decência é maioritária. Se fosse, muitas teriam sido as tragédias que nunca teriam acontecido. Nada disto é novo. Só que, no fim, defender apenas os nossos para fazer frente aos que acreditam num país só para os nossos apenas nos dá a ilusão de combate enquanto lhes damos razão.

O que tem de ser dito é que, como se percebe pelo caos que cria à sua volta, Ventura é fator de instabilidade e conflito. E que nenhum país se constrói sobre a incomunicabilidade e o ódio de que ele se alimenta. O que há para dizer é o que a decência básica manda dizer, sem pedirmos que parte do país se esconda para não lhe dar pasto.»


Casas? E isto

 


12.5.25

Candeeiros

 


"La Danse Des Nymphes”, três candeeiros Arte Nova, de bronze claro com tons de vidro iridescentes.
Escultor: Auguste Moreau.

Daqui.

Da insensatez

 


«A manhã de venda foi perturbada por demasiados partidos. PS e AD voltaram a fazer campanha no mesmo local, mas sem que os líderes se cruzassem, numa manhã em que também PAN, Chega, ADN e PPM apostaram no contacto direto na Feira de Espinho.» (Expresso)

Mudam os tempos, mudam as éticas

 


«As suas declarações abrangeram todo o seu património, quer imobiliário, quer financeiro. Sempre escrupuloso, logo na primeira declaração, e embora estivesse casado em regime de separação absoluta de bens, entendeu incluir a casa onde então vivia, em Lisboa, e que era propriedade da mulher. Manteve sempre esta conduta. (…)

Na biografia de que sou autor, Sampaio explicou que, para aclarar tais dúvidas, chegou “a conversar” com o então presidente do Tribunal Constitucional, Cardoso da Costa, “e com um outro conselheiro”: “Foram da opinião que, à face da lei, só devia fazer a declaração dos meus rendimentos, deixando de fora os da Maria José [Ritta]. Mas eu achei que devia declarar os rendimentos do casal”. “Entre nós”, enfatizou, era “tudo do bolo comum”. (…)

Bastaria a Luís Montenegro seguir o exemplo caseiro de Jorge Sampaio e imitar a sua conduta de total e absoluta transparência. O país agradecia.»


A campanha de um farol “normal”

 


«Houve um tempo em que os líderes queriam parecer extraordinários. Alimentavam a distância que lhes oferecia gravitas. Porque era por serem extraordinários que lideravam. De Álvaro Cunhal a Cavaco Silva, era esse o padrão. Mesmo os que cultivavam a informalidade e a proximidade, como Mário Soares, nunca apareciam como um entre iguais.

A falsa democratização, que até correspondeu a algum recuo democrático, fez com que os políticos quisessem aparecer como aqueles com quem “beberíamos um copo”, a quem compraríamos um carro em segunda mão e outras qualidades comuns que aparecem nas sondagens. Mais uma vez, paradoxalmente, é assim que milionários, verdadeiramente inatingíveis, vão chegando ao poder: porque esta banalização corresponde a um crescente desprezo das qualidades especificamente políticas.

Luís Montenegro levou a construção da figura de um homem “normal” ao limite, como um dos episódios de “Isto é Gozar com Quem Trabalha” parodiou. Está sempre a dizê-lo e a querer mostrá-lo. No que acaba por ser acompanhado pelos restantes partidos, numa campanha que se transformou num concurso deprimente de banalidade para saber quem é o candidato mais cool, em vez de saber quem inspira e se distingue.

O candidato da AD abandonou a forçada tentativa de macaquear a distância silenciosa do cavaquismo, que usava para proteger a sua própria vacuidade política. Não por acaso, isso aconteceu depois de todas as dúvidas sobre a sua ética. “O primeiro-ministro não fez nem mais nem menos do que faz qualquer português”, defendeu-se, apelando à autocondescendência ética nacional, para baixar a fasquia da exigência.

Este apelo à falta de exigência ética, que é o oposto de ser um “farol” para o País, é a causa da desconsideração intelectual e política que a sua campanha tem mostrado pelos eleitores. E que se espalhou, neste tempo de redes sociais, por quase todas as campanhas. Mas que, na campanha da AD, é quase um recuo no tempo em que os eleitores eram menos informados e instruídos.

Isto foi logo evidente logo no inusitado Conselho de Ministros em pleno Mercado do Bolhão, transformado numa arruada e na apresentação de uma candidatura autárquica. Na reação à greve da CP, pela qual a AD é tão responsável como o PS o era pela instabilidade laboral nas escolas, hospitais ou esquadras, e após a qual aproveitou a natural irritação popular para dar sinais de querer mudar a lei da greve.

Mas fez bingo quando encontrou, a meio da campanha, a sua mulher, que estava em peregrinação a Fátima. Disse que era um momento “pessoal”, mas convocou previamente as televisões para registarem o encontro, numa encenação que misturou voyeurismo com aproveitamento religioso. O uso despudorado da família, para lá do que é normal na política portuguesa, já tinha marcado o caso Spinumviva. A forma como os seus filhos foram atirados para o furacão mediático de um escândalo determinou, devo dizer, boa parte da avaliação moral que hoje faço de Montenegro.

A degradação da mensagem ética tende a levar à degradação da mensagem política. A Spinumviva não é apenas a Spinumviva. Corresponde um perfil que vai para lá dela e determina um padrão ético que, como sempre, também é político.»


11.5.25

Escadarias

 


Uma bela escadaria Art Déco, Bruxelas.
Arquitecto: Julien Uyttenhoven.


Daqui.

Não desista, esquerda da esquerda do meu país

 


Estou chocada. Numa curta volta pelo Facebook, vi quem nunca imaginou votar no PS fazer campanha pelo mesmo.

Também prefiro que o PS tenha mais votos do que a AD, mas que vá buscá-los à direita e à abstenção, sem tentar matar a esquerda da esquerda. Sem esta, assobia sozinho e afoga-se – nem boiar conseguirá.

Não resisto

 


Salvador Dali chegaria hoje aos 121

 


O mundo está hoje mais surrealista do que era como ele o conheceu.

Eleições — os fins e os meios

 

«Encaro as eleições, todas elas, com igual entusiasmo. É um tempo de debate, de aferição de políticas, de algum rebuliço, que depois termina com um resultado que quase não importa, não fosse a tendência da direita em privatizar instituições estratégicas comuns mal chega ao poder. Mas a luta continua e o ato eleitoral é, para todos os efeitos, um reboot, de pendor refrescante.

No entanto, vivo com um certo desalento o presente ato eleitoral. Posso estar a sentir o peso de uma derrota antecipada da minha área política, claramente prevista em todas as sondagens. Pode também dever-se a uma falta de espaço geral para a boa disposição, nos tempos sinistros que atravessamos. Mas talvez a razão principal seja bem mais prosaica: uma campanha feia mata a alegria de qualquer um.

Desde logo, estas eleições nem deviam estar a acontecer. Chegámos até aqui arrastados, através de sucessivos twists narrativos, escancarados, rapazolas e mal controlados que se quiseram fazer passar por alta estratégia. Já a tática da campanha em si traz novidades e sugestões sólidas do que se pode daqui em diante fazer em política. A saber, (1 aproveitar o facto de se estar no poder para o usar em benefício privado e/ou partidário (2 aderir sem respaldo científico a ideias e perceçōes e agir de acordo (3 fazer alarde de atos governamentais regulares, com vista à obtenção de votos (4 fazer campanha pensando exclusivamente nos eleitores dos outros, tipo lucro (5 vestir pele de cordeiro reformista, apesar do mais canino conservadorismo (6 trazer para a rua e para as televisões o que compete às instituições, numa espécie de poder popular de bolso (7 quando em crise e sem saber o que pensar face à complexidade das coisas, ir buscar ao sótão as ideias mortas que por lá estão arrumadas e tentar reanimá-las (8 encontrar formas de dizer “não, é não” na teoria e “sim, sim” na prática (9 meter todas as forças de oposição no mesmo saco e acusá-las de conluio sempre que discordam de nós, ainda que por razões completamente distintas (10 não tomar nenhuma decisão importante sem consultar a agência de comunicação contratada para deliberar sobre todos os pontos acima.

O que vivemos, na realidade, é um efeito de privatização da esfera política: tudo é comunicação, e o que se discute — e como se discute — é decidido em agências que trabalham os atos políticos com as mesmas diretivas com que lançam campanhas para vender automóveis. Tudo se resume à lógica alastrada da publicidade — mercado e política são um mesmo território. Esta atitude, este regime existencial tipo CEO, abre caminho ao assalto mercantil dos grandes conglomerados empresariais que está em curso e que consiste na exploração e monetização geral de todos e cada um de nós. Perdida nas ruelas do curto prazo, a direita que se candidata a estas eleições não vislumbra nada disto no horizonte do mundo. Antes pelo contrário, faz contas estranhamente otimistas, pueris e perigosas.

Os anarquistas da segunda metade do século XIX, com quem simpatizo particularmente, opunham-se à ditadura do proletariado, perguntando-se como poderia uma sociedade mais justa emergir de um regime autoritário. Partiam da premissa de que os fins que se querem alcançar são fundamentalmente moldados pelos meios que se empregam para lá chegar. Podemos hoje perguntar-nos que tipo de governo será aquele que decorre da feiura desta campanha. Acima de tudo, uma direita que falha em se distinguir do seu extremo, não mostra estar à altura dos combates incontornáveis do futuro próximo.»


Montenegro e os reformados