26.7.25

Mais autocracias do que democracias

 


DAQUI.

Governação em marcha à ré

 

«Pois é. Já está bem claro que o tão propalado “reformismo” do Governo se consubstancia numa agenda regressiva, que testará as linhas de demarcação da democracia, em particular em áreas estratégicas para a garantia dos direitos fundamentais das pessoas e para a organização democrática da sociedade.

As propostas relativas à Lei da Nacionalidade, construídas na base de manipulações e mentiras (o presidente da República esteve bem na análise feita), ou os conteúdos e justificações trapalhonas que o Governo já avançou sobre como quer tratar a educação sexual na escola, não deixam dúvidas. Agora, o enunciado de conteúdos para revisão da legislação laboral, apresentado na passada anteontem na Concertação Social, evidencia a enorme amplitude do cardápio.

O entendimento do PSD com o Chega (sub-reptício na versão Montenegro e escancarado na de Ventura) reforçado por apoios seletivos da Iniciativa Liberal, já molda a agenda da governação e sustentá-la-á no Parlamento e noutros espaços da confrontação com a Constituição da República. A democracia nascida com o 25 de Abril está num sobressalto sem paralelo nos 50 anos da sua existência. Como insistentemente refiro neste espaço, o liberalismo económico é tão destruidor de solidariedades e de cidadania social quanto as agendas políticas da extrema-direita. E os dois convergem em várias matérias que significam recuo civilizacional.»

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Terra plana?

 


𝐕𝐨𝐮 é 𝐝𝐨𝐫𝐦𝐢𝐫 𝐮𝐦𝐚 𝐬𝐞𝐬𝐭𝐚 𝐚𝐧𝐭𝐞s 𝐪𝐮𝐞 𝐚 𝐓𝐞𝐫𝐫𝐚 𝐬𝐞 𝐭𝐨𝐫𝐧𝐞 𝐩𝐥𝐚𝐧𝐚. 𝐂𝐨𝐦 𝐭𝐚𝐧𝐭𝐨𝐬 𝐢𝐦𝐩𝐫𝐞𝐯𝐢𝐬𝐭𝐨𝐬…

Iliteracia

 


O projecto político do Observador

 


«A Rádio Observador é um projecto profissional, bem conduzido, de qualidade muito acima das outras rádios existentes. Mas não é um projecto jornalístico, é um projecto político representando fortes interesses económicos no palco mediático e da ala mais à direita do espectro político. Isso significa duas coisas: tem recursos que nenhuma outra rádio tem ao seu dispor, e está no centro político e ideológico da influência crescente da direita mais à direita, da direita identitária cada vez mais forte do PSD, com o abandono do programa social-democrata de Sá Carneiro.

O Observador estende a sua influência fornecendo temas ao Chega e alargando o argumentário da Iniciativa Liberal como da ala direita do PS e o apoio aos candidatos oriundos dessa área. O Chega é muitas vezes atacado, não pelos seus temas, mas quando dificulta a actuação do PSD, que eles sabem muito bem ser quem pode aceder à governação. Mas isso não significa que não haja transporte dos temas e das prioridades do Chega para o Governo PSD-CDS, que, depois de “lavados” da sua origem malsã, são defendidos com unhas e dentes. O modo como o Chega trata a imigração é um exemplo perfeito, que, com todas as suas mentiras e sugestões de falsidade, está na origem da colocação da imigração e a sua suposta correlação com a criminalidade na centralidade da acção política desde a célebre declaração de Montenegro em horário nobre, seguida dias depois pelo espectáculo da rusga da Rua do Benformoso. A crítica da Provedoria da Justiça à rusga não é tema. A imigração era um problema, mas, a partir daí, tornou-se um outro problema, de natureza diferente.

O mesmo acontece, aí com mais proximidade política, com a Iniciativa Liberal, com a mesma lógica de proteger o Governo e o PSD dos excessos inconvenientes, como a motosserra de Milei, mas defender e ampliar a voz dos interesses económicos. E também o mesmo acontece com a sistemática promoção de tudo que surja na e da ala direita do PS, em particular do candidato presidencial António José Seguro, tratado com a máxima gentileza no Observador, em contraste com a violência com que Sampaio da Nóvoa, ou Santos Silva, ou Alexandra Leitão, ou Pedro Nuno Santos, são tratados.

A acção política do Observador é uma poderosa combinação que não se limita aos momentos mais directamente políticos no prime time, principalmente de manhã, mas estende-se pelo dia todo, pela forte presença de elementos da Rádio Observador nas estações de televisão noticiosas, amplificando os temas e o argumentário definido nas manhãs. Beneficia, aliás, de muita complacência nos outros órgãos de comunicação, que habitualmente colocam frente a frente um falcão do Observador com uma pombinha do PS.

Acresce que o Observador tem fontes privilegiadas, em particular no Ministério Público, nos partidos do Governo e no Governo, bem como nas confederações patronais, e conta com publicidade de grandes empresas. Se fosse apenas para apoiar um órgão de comunicação seria excelente, mas fontes e apoios estão directamente ligados com o programa político do Observador.

Seguem-se dois exemplos recentes do que disse e que mostram muito bem como funciona a Rádio Observador. Quando pareceu que o Governo poderia reconduzir Mário Centeno como governador do Banco de Portugal — uma manobra de spin, mas que poderia dificultar passar do elogio de Centeno à sua demonização —, apareceu o “caso” da nova sede, com a habitual sugestão de vários crimes e o apelo ao Ministério Público. Nunca ouvi o Observador fazer o mesmo com o caso Spinumviva.

Outro exemplo é o tratamento da decisão do Presidente da República de enviar a lei da nacionalidade para o Tribunal Constitucional, imediatamente atacada como sendo um frete à “esquerda”, como Marcelo traindo a sua base eleitoral — um curioso argumento para analisar a acção presidencial — e como uma gratuita demonstração de um poder cada vez mais póstumo.

Estes exemplos são do quotidiano da rádio, mas não custa ver o que aí vem com as alterações na legislação laboral, que toca com o núcleo duro da política do Observador, a defesa do lóbi mais agressivo do empresariado português. Esperem e vão ver, os comícios tipo orgasmo matinal do Observador.

Não me passa pela cabeça desejar qualquer mal ou censura sobre a Rádio Observador. Desejo-lhe muitos anos de vida, mas tudo isto estaria bem se houvesse transparência política e o Observador, em vez de se apresentar como um órgão de comunicação seguindo as regras deontológicas do jornalismo, fizesse uma declaração de interesses política. Não é o que estão sempre a pedir aos “outros”?»


Vídeos falsificados

 


25.7.25

Café

 


Cafeteira, Plateelbakker Rozenburg, Haia, 1906.
Fabricado por Sam Schellink, Bert Jacot e Johannes de Vries.

Daqui.

Helena Roseta

 


«Helena Roseta foi constituinte, deputada em várias legislaturas, e em 86 saiu do PSD para apoiar a candidatura de Soares a Belém. Bastante crítica das recentes ações do autarca do PS Ricardo Leão na demolição das barracas no Bairro do Talude, em Loures, mantém que considera “abusiva” esta atuação repentina, à beira das eleições.»


Entre o diploma e a exclusão: o paradoxo da juventude portuguesa

 


«Vivemos um momento de aceleradas transformações civilizacionais. A revolução tecnológica redefiniu as condições de vida da juventude contemporânea, criando um panorama de possibilidades educacionais, profissionais e existenciais que seria impensável há cerca de uma década. A geração atual beneficia de conquistas significativas: maior acesso ao ensino, uma sociedade que lhe salvaguarda a liberdade de expressão e recursos digitais que permitem explorar múltiplos percursos formativos. Assim, num plano teórico, encontra-se numa posição privilegiada para construir trajetórias de sucesso e de realização pessoal.

No entanto, e paradoxalmente, essa aparente abundância de possibilidades e recursos não se traduz necessariamente em estados de realização pessoal, serenidade existencial ou integração social efetiva. A simples multiplicidade de opções não assegura, automaticamente, o desenvolvimento de competências para navegar com sucesso num mundo de crescente complexidade. Durante o processo fundamental de construção identitária e autonomização gradual, os jovens necessitam de estruturas de apoio consistentes, de referências claras e de orientação adequada para conseguirem transformar as oportunidades formais em trajetórias sustentáveis de realização pessoal e integração social.»

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Desta Lisboa compassiva

 


Eles comem tudo

 


«A indigitação de Álvaro Santos Pereira para governador do Banco de Portugal não surpreende nem choca. O economista cumpre os requisitos para o cargo: tem currículo académico, experiência internacional e passagem pelo Governo (se bem que não tenha deixado uma marca muito positiva como ministro, o que é atenuado por ter exercido o cargo num contexto económico muito adverso). Olhando para o percurso de Santos Pereira, não se pode dizer que não esteja qualificado para a função.

Mas o problema não está no nome nem no perfil do novo governador. O que está em causa é o padrão de nomeações que Montenegro tem vindo a seguir para as principais instituições do país. Nomeações que têm sido feitas em circuito fechado, sem diálogo institucional – nem sequer envolvem o Presidente da República –, e que privilegiam sistematicamente nomes próximos do PSD (muitas vezes antigos governantes) ou que têm mesmo relações íntimas com o partido. À primeira oportunidade, o PSD deitou para o caixote de lixo da sua própria história o tempo em que esbracejava de forma estridente contra a claustrofobia democrática.

Nunca, em 50 anos de democracia, tivemos um Governo tão minoritário – nas últimas legislativas, a AD alcançou uns extraordinários 32,7% dos votos, num contexto em que o PS colapsou – a agir com tamanha voracidade na ocupação do aparelho do Estado e das instituições independentes, que deveriam estar obrigadas a garantir margens de autonomia na sociedade portuguesa. E nunca tivemos uma tal concentração de poder num só partido: o Presidente da República é ex-líder do PSD, o partido governa o país, os Açores, a Madeira e preside ainda à autarquia da capital do país. Nem em tempos de maiorias absolutas se viu algo semelhante.

Esta pulsão para “comer tudo” é preocupante por si só. Mas torna-se ainda mais grave num contexto em que os mecanismos de controlo e equilíbrio de poder estão a ser sistematicamente enfraquecidos. A democracia vive de limites ao poder, não da sua concentração.

Se olharmos retrospetivamente, e por muito que isso tenha incomodado os governantes de turno, o país beneficiou objetivamente por ter presidentes do Tribunal de Contas com autonomia e espírito crítico face ao Governo (basta recordar o modo como Cavaco Silva via em Sousa Franco uma “força de bloqueio), em manter uma tradição de ter o banco público presidido por alguém mais próximo da oposição (Paulo Macedo, que tem tido um ótimo desempenho à frente da Caixa Geral de Depósitos, foi nomeado por António Costa) ou em ter provedores de Justiça vocais e sem receio de contemporizar com o poder político.

O tema é sério, tem consequências e rompe com uma tradição salutar da democracia portuguesa. Como é óbvio, a questão que se coloca não é de partilha de cargos entre partidos, é de sabermos como é que garantimos o pluralismo e disseminamos um sistema de contrapoderes, decisivo para a salubridade de uma democracia como a nossa (na qual os princípios liberais não estão suficientemente consolidados).

Desta feita, a história está claramente a ser outra. O Governo abdicou de promover um espírito de compromisso com uma sociedade que é, por definição, mais plural e, pelo contrário, está empenhado numa lógica de terraplanar tudo o que possa levantar ondas e limitar a sua vontade – como se viu na acrimónia com que lidou com Mário Centeno ao longo do último ano. O que serve para recordar que a democracia não se esgota no voto. Vive do pluralismo, da crítica e, fundamental, da limitação do poder.»


Lei de Estrangeiros

 


3

24.7.25

Testemunho sobre a vergonha que sinto

 


«A história conta-se rápido e eu sinto muita vergonha pelo modo como, no meu país, instituições estão a tratar estas pessoas. Singh (vou usar este nome) trabalha há dois anos e meio numa empresa portuguesa de engenharia e construção, do norte do país. Tem um contrato sem termo, permanente. Paga todos os meses as suas contribuições para a segurança social, o seu empregador também. Constrói e requalifica estradas. Muitos de nós já percorremos certamente caminhos e autoestradas asfaltadas por ele.

Sexta-feira recebi o alerta por um amigo comum: o Singh estava “detido”. Como assim?, pensei. Por que razão? Quem me fez chegar a informação explicou que, quando a polícia o foi “buscar”, esclareceu que “não havia crime”, mas ele teria de seguir com as autoridades. Ficou preso no “Centro de Instalação” na rua Barão Forrester, no Porto. Ainda lá está.

O Singh não tem ainda autorização de residência, apesar de ter feito o requerimento na AIMA há mais de dois anos, de ter contrato sem termo e de pagar contribuições à Segurança Social desde fevereiro de 2023. Como tantos outros trabalhadores migrantes está “irregular”, mas não por sua responsabilidade. Como milhares de outros companheiros, o Singh trabalha, cumpre os seus deveres para com o Estado, solicitou os documentos corretamente, mas o Estado, o mesmo Estado que o reconhece para receber as suas contribuições, não respeita os prazos que a lei portuguesa define para lhe responder e dar documentos. Esperou uma eternidade até ter uma primeira decisão, que chegou em março deste ano - e o pedido vinha indeferido. Razão: ter uma menção no Sistema de Informação de Schengen (que não tem natureza criminal!). Do que as autoridades portuguesas se esqueceram foi de fazer o que a lei e o regulamento europeu obrigam: contactar o Estado que havia feito essa menção. O Singh apresentou os seus argumentos e o processo está em análise. Vai-se ao site da AIMA, põe-se o número do processo e somos informados disso mesmo: não há decisão final. É preciso continuar a aguardar. E no entanto, o Singh foi privado da sua liberdade.

Na segunda-feira, ao fim do dia, estive à porta do “Centro de Instalação Temporária”, em quase tudo semelhante a uma prisão para imigrantes, gerido pela PSP. Além daquele nome pomposo, o CIT tem outra designação orwelliana: “Unidade Habitacional de Santo António”.

Procurámos falar com o Singh, para perceber o que se passava. Sem sucesso. Não nos deixaram entrar nas instalações. O único interlocutor era um vigilante de uma empresa privada, que não tinha autonomia para tomar decisões e que nos disse o que sabia e podia. Lá dentro, o Singh comunicou aos funcionários que queria receber a minha visita e a de outros elementos da associação Solidariedade Imigrante. É um direito dele, mas ficámos sem resposta. “Envie mail”, disse-me o vigilante. Agradecemos e seguiu o correio eletrónico. Nenhuma resposta.

Eram nove da manhã de terça-feira e estávamos de novo nas instalações da AIMA, já com a presença de uma advogada. Queríamos perceber como é que alguém que não cometeu nenhum crime está privado de liberdade. Falámos com o técnico da AIMA, que, sem acesso ao fundamento da detenção, explicou que quando há indeferimento, mesmo que isso não corresponda a nenhum crime, os processos vão para a secção de delitos criminais. Remeteu-nos para a PSP. Chamámos a PSP. O comandante ouviu os nossos argumentos e, reconhecendo o direito do Singh de falar com quem o pudesse defender, desde logo a sua advogada, deixou-nos entrar. Estou certo que se ali à porta estivessem apenas os outros dois companheiros do Singh, também eles indianos, dirigentes associativos e conhecedores da lei, ainda agora estariam do lado de cá do portão.

Lá dentro, é o que se sabe. A “Unidade Habitacional” pouco difere de uma prisão. Mesmo que os “presos” não estejam ali por crime algum. “O indivíduo é calmo e colaborante”, “apresentou o seu passaporte”, diz o relatório. Retiraram-lhe a pulseira e um fio que tinha ao pescoço, os poucos bens pessoais que tinha consigo, os 27 cêntimos que trazia no bolso. Em contrapartida, o chefe da polícia entregou-lhe uma toalha, um sabonete, um champô, um par de lençóis, um cobertor. E Singh ficou detido, mesmo que, tal como foi informado, não haja cometido qualquer crime.

Teve direito a um intérprete, que não falava punjabi. Assinou vários documentos. “Mas leste-os? Sabes o que diziam?”, procurámos saber. “Não, não sei”, explicou. O interrogatório e a decisão do juiz são extraordinários. Como o Singh está irregular e houve um indeferimento, foi convidado a abandonar voluntariamente o país. Como apresentou recurso e disse que não pretendia abandonar Portugal, foi preso no Centro de Instalação. Acontece que apresentar recurso e não abandonar o país não é motivo para ser detido: não constitui nenhuma ilegalidade mas apenas uma fase normal do processo. Então, qual o argumento utilizado pelo juiz? É o facto de haver “risco de fuga do país”. Preso por ter cão e por não ter! Singh trabalha cá, tem contrato permanente, não quer sair do país, pediu os seus documentos, explicou por que devem ser deferidos. E está detido porque as mesmas autoridades que o acusam de não cumprir o alegado “dever de abandono” do país invocam o “risco de fuga” para o prender.

Mas há mais: o juiz refere ainda, no seu despacho, a “utilização ilegal da sua força de trabalho pela empresa onde trabalha”. A empresa, sugere-se, poderia estar a utilizar “atividade de cidadão estrangeiro em situação ilegal”. Sucede que Singh não está numa situação ilegal, mas sim irregular por não haver uma decisão final da AIMA. E a empresa não utilizou de forma ilegal a sua força de trabalho, na medida em que lhe fez um contrato, declarou o empregado ao Estado e à Segurança Social, paga mensalmente o salário e o subsídio de refeição, desde o início de 2023, e as contribuições relativas a este trabalhador. A empresa fez tudo legal: cumpre as obrigações, declara o trabalho prestado. O único incumpridor é o Estado: não regulariza os documentos, não respeita os procedimentos e privou um cidadão de liberdade sem fundamento plausível.

Acredito que o Singh não ficará muito mais tempo no “Centro de Instalação” de imigrantes, porque a inconsistência de tudo isto é tão profunda que, com a intervenção da advogada, presumo que se resolverá brevemente. Mas entretanto está isolado, preso, sem poder comparecer ao seu trabalho, sem poder cumprir os seus deveres perante a empresa (que também sai prejudicada) por ser disso impedido pelo Estado. Agora é crime ser trabalhador estrangeiro?

Sinto uma profunda vergonha pelo modo como o Estado português está a tratar estas pessoas. Pela forma como estamos a humilhar quem não cometeu nenhuma falta e faz tudo para se regularizar. Pelo modo como as autoridades administrativas atropelam os mais básicos procedimentos. Como se pressiona as forças de segurança para terem comportamentos de milícia contra imigrantes. Como a própria justiça pisa direitos elementares. Como se passou a um ambiente de criminalização política dos trabalhadores imigrantes, vulnerabilizados pelo seu isolamento, perseguidos pelas ilegalidades do Estado, feitos sacos de pancada de um governo que não tem soluções para combater a desigualdade. Sei que este é o país sonhado de Ventura, que triunfa ao impor ao governo-sombra de Luís Montenegro a sua agenda xenófoba. Mas não hão-de transformar Portugal nisto. Não pode ser. Nós não temos de ser isto e somos melhores que isto. Quero crer que a maioria dos portugueses não quer ser parte desta vergonha. O caso do Singh é só um, provavelmente entre tantos outros. Mas indigna-me e sinto o dever de gritar, também por ter a convicção de que não estarei sozinho.»


24.07.2011 – Machu Picchu

 


Qualquer pretexto é bom para se falar de Machu Picchu, onde tive a sorte de estar em 2004.

Foi num 24 de Julho que o explorador americano Hiram Bingham encontrou duas famílias que o levaram às ruínas da «velha montanha». Até lá, esta «cidade perdida dos Incas», que é o símbolo mais típico do seu império (e hoje também do Peru), construída no século XV a 2.400 metros de altitude, extraordinariamente bem conservada e com uma localização absolutamente excepcional, mantinha-se desconhecida. Tem duas áreas distintas, uma dedicada à agricultura, numa série impressionante de socalcos, e uma outra urbana com templos, casas e sepulturas, dispostos ao longo de ruas e de (terríveis!) escadarias.

Património da Humanidade desde 1983, Machu Picchu é destino inesquecível para quem já lá foi e fortíssima recomendação de viagem para quem puder fazê-la.

Tradicionalmente, parte-se de Cusco (uma cidade absolutamente mágica), segue-se pelo Vale Sagrado, com paragem obrigatória no mercado de Pisac, passa-se pelo Vale de Ollantaytambo e apanha-se o mítico comboio que chega às imediações das ruínas. Então… é ficar primeiro de boca aberta e depois descer, trepar, ouvir explicações, imaginar a vida por aquelas paragens, quando a França e a Inglaterra ainda se batiam na Guerra dos Cem Anos e o nosso Vasco da Gama lutava com o cabo das Tormentas. Um pouco impróprio para cardíacos pela altitude e pelo esforço para calcorrear pedregulhos, mas vale bem o sacrifício.











24 de Julho, Moçambique e caranguejos

 


Morei durante toda a minha infância na Av. 24 de Julho – na antiga Lourenço Marques, entenda-se. Enquanto aprendia todos as estações e apeadeiros da Linha do Norte na «Metrópole», ouvia falar do frio no Natal e fazia redacções sobre as latadas no Minho.

O nome da rua devia celebrar o dia em que Patrice Mac-Mahon, 3º presidente da França, declarou, em 1875, que a Ilha da Inhaca (e a dos Elefantes) era território moçambicano, numa acção de arbitragem entre o governo britânico e o de Lisboa. Mas não sei se não vivi nove anos a comemorar a entrega de Lisboa ao Duque da Terceira, em 24 de Julho de 1833, pelo Duque de Cadaval, antigo primeiro-ministro do rei D. Miguel.

Vingança consumada: foi em Inhaca que comi os melhores caranguejos do mundo, quando voltei a Moçambique há mais de 20 anos.

Vale a pena recordar o que Sophia nunca disse

 


«Quando, no dia 28 de Fevereiro de 1994, José Saramago se sentou a escrever o seu diário, não poderia imaginar que, 31 anos depois, o primeiro-ministro o citaria. O problema não era a imaginação de Saramago, capaz de alguns feitos notáveis, como o de inventar mulheres que conseguiam ver por dentro de corpos, penínsulas que se separavam de continentes, heterónimos que permaneciam vivos depois da morte do seu criador. Mas nem ele seria capaz de prever que o que estava a escrever naquele dia do fim do século XX haveria de animar um debate parlamentar no final do primeiro quartel do século XXI. A entrada do diário dizia o seguinte: “Helena Carvalhão Buescu telefonou de Lisboa para me dizer que ‘In Nomine Dei’ ganhou o Grande Prémio de Teatro da APE. Foi por unanimidade, acrescentou (…). Evidentemente, a peça não é má, e se lhe deram o prémio é porque entenderam que o merecia, mas talvez o não tivesse se andasse mais gente a escrever para o teatro em Portugal. Encomendassem as companhias peças (pudessem encomendá-las) e a situação seria diferente. Valha o meu teatro o que valer, ‘In Nomine Dei’ não existiria se de Münster não mo tivessem pedido. Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir.” Era, portanto, um lamento sobre a falta de apoios ao teatro. Se as companhias tivessem condições para encomendar peças, dizia Saramago, mais autores as escreveriam, e mais pujante estaria a nossa dramaturgia.

A reflexão ficou sossegada no segundo volume dos “Cadernos de Lanzarote” durante mais de três décadas até que, no debate da semana passada sobre o Estado na Nação, Luís Montenegro disse o seguinte: “Esta é uma nação forjada na vontade de permanecer. No ímpeto de navegar contra o medo. Na coragem de acreditar mesmo quando os ventos sopram de frente. Como escreveu Sophia, nós somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos.” Assim que deram pelo erro, várias pessoas criticaram o primeiro-ministro, por ter atribuído erradamente a Sophia uma frase de Saramago. Enfim, é o país que temos. Um olhar mais sofisticado sobre o discurso do primeiro-ministro teria permitido ver o que ele é: uma sentida homenagem a José Saramago. Mais de 30 anos depois de o Nobel português ter assinalado a falta de investimento na nossa dramaturgia, o primeiro-ministro deixa claro que já não somos esse país e, para o provar, é ele mesmo quem aparece a compor esta divertidíssima farsa.»


23.7.25

Relvas e a frase da noite

 


«Era a última pessoa que esperava que falasse de Ensino Superior.»

2012:



Namoro sem exclusividade

 

«A única certeza que se pode ter na política é que tudo e o seu contrário podem ser verdade. Depende apenas do momento eleitoral. Desde que Paulo Portas revogou a “irrevogável” decisão de se demitir de ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, em 2013, e continuou no Governo liderado por Pedro Passos Coelho que se sabe que as palavras dos políticos são pouco mais do que isso mesmo: palavras que, como o povo sabiamente apregoa, são levadas pelo vento. No espaço de um ano, Luís Montenegro deixou cair o “não é não” relativamente ao Chega e é público e notório o namoro, embora o primeiro-ministro não assuma a exclusividade. Para já, pelo menos.»



Sem Serge Reggiani



 
Serge Reggiani morreu em 23.07.2004 e marcou certamente algumas gerações, mesmo em Portugal, antes de a língua francesa ir desaparecendo lentamente da vida dos mais novos. Pela interpretação, pelo encanto pessoal, pelo compromisso político, certamente pelos poetas que ajudou a conhecer ao divulgá-los nas letras de muitas canções.

Nasceu em Itália e ainda criança instalou-se com os pais em França para escapar ao fascismo. Começou como ajudante de barbeiro, inscreveu-se no Conservatório com 19 anos, estreou-se no teatro onde contracenou com Jean Marais, entrou em alguns filmes. Passou no entanto rapidamente à clandestinidade na Resistência francesa. Regressou ao cinema depois do fim da guerra, mas foi como cantor que se consagrou, a partir de 1964. Entre muitos outros, cantou Boris Vian, Rimbaud, Prévert e Appolinaire.

Algumas das canções a não esquecer:







E esta, obviamente:


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23.07.1975

 


Nesse dia, este cartaz foi capa do Diário de Notícias.

Juntamente com a cantiga («Força, força, companheiro Vasco»), deu corpo à campanha da 5.ª Divisão de apoio a Vasco Gonçalves, iniciada quatro dias antes. Foi sol de pouca dura, como é sabido: o IV Governo Provisório caiu em 8 de Agosto e o V iria durar pouco mais de um mês.
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Até onde está disposto a ir, Luís?

 


«Depois das exibições securitárias, criticadas pela Provedoria de Justiça e para as quais a comunicação social tem dado o seu forte contributo (segundo o Observatório de Segurança e Defesa da SEDES, o número de crimes registados pelas autoridades diminuiu 1,3% neste século, enquanto subiu 130% nas primeiras páginas dos principais jornais) e do encontro quase perfeito com o Chega na política de imigração (combatendo instrumentos fundamentais para a integração), o governo quer retirar das aprendizagens essenciais da disciplina de cidadania e desenvolvimento tudo o que tenha a ver com sexualidade e saúde sexual e reprodutiva.

Não vou debater a contradição entre a ideia de que as outras culturas se devem integrar nos “nossos valores” ao mesmo tempo que se diz que a escola não deve transmitir valores e educar, que isso é do foro privado e familiar. Quando interessa, os valores são comunitários, quando deixa de interessar, são do foro privado. Só que a escola não é apenas lugar onde se recebem conhecimentos científicos, é lugar de construção de comunidade. Mas o que aqui está em questão é um pouco mais básico do que isto: saúde pública e cuidado mínimo.

Sei onde se fazia a educação sexual na geração dos nossos pais: os homens iam às “meninas”, as mulheres esperavam pelo casamento. Sei onde se recebia educação sexual na minha geração: em conversa de amigos, revistas “especializadas” e em informação de emergência quando uma amiga ou namorada tinha de fazer um aborto clandestino. Sei onde se faz hoje: na Internet e a ouvir influencers. Com raríssimas exceções, nunca foi nem é em casa. Estou disponível para debater o modelo da disciplina de cidadania (mais do que os conteúdos, a forma e a formação de quem a dirige), mas seria mais fácil se o debate não recuasse décadas. Sobretudo quando aumenta a violência no namoro e a misoginia entre os jovens rapazes.

Tenho, se me permitem o palpite, todas as dúvidas que esta opção tenha vindo do ministro da Educação. Porque o próprio tinha prometido, no início do mês, que nenhum dos 17 temas que até agora deviam ser abordados ao longo da escolaridade obrigatória iria desaparecer. Pelo timing e a coerência tática, a opção parece-me vinda de cima. Para responder ao ruido das redes sociais e da extrema-direita, não de preocupações transmitidas pelas escolas.

Sentindo que o PS está nas lonas e incapaz de ir à luta em qualquer debate, Montenegro quer fazer o pleno e destrunfar o Chega. A aproximação é tal, que o primeiro-ministro já deixou de fazer a equivalência entre a extrema-esquerda e a extrema-direita, para a fazer entre o Chega e o PS, dizendo que o seu “não é não” era para os dois. Que não havia, portanto, uma separação civilizacional entre o PSD e a extrema-direita. Até inventou um Ventura que, acabado de ler nomes de crianças no parlamento, se estaria a moderar.

Já nem debato o oportunismo e a falta de valores de um sobrevivente. Fico-me pela tática. Não destrunfa coisa alguma. A cada nova vitória, o Chega trará novo tema, continuando a dominar a agenda. E se dominar a política é dominar a agenda, Ventura é rei e senhor.

Até ver, isto dá jeito momentâneo ao governo, porque assim nos põe a falar de tudo, menos de saúde e habitação, os dois problemas que mais preocupam o País. Mas, a longo prazo, continua a deslizar o país para a direita, até nem o PSD conseguir acompanhar. Ou talvez consiga. Essa é a incógnita que sobra: até onde está disposto a ir Montenegro? Qual é o seu limite? Suspeito que seja o seu próprio poder. Não mais do que isso.»


EUA

 


22.7.25

Londres

 


Royal Arcade em Mayfair, Londres, 1880.
Arquitectos: Archer & Green.


Daqui.

Robert De Niro

 


22.07.1969 – Rei de Espanha nomeado como sucessor de Franco


Há 56 anos, Juan Carlos I de Bourbon foi designado pelas cortes espanholas como sucessor de Franco, jurando-lhe lealdade e respeito pelas leis vigentes - e cumpriu. 

Viria a ser proclamado rei em 22 de Novembro de 1975, depois da morte do generalíssimo, tendo então tido início o processo da Transição Espanhola. Os espanhóis não tiveram, como nós, a experiência única de viverem uma Revolução depois do fascismo.

Voltando a 1969, sempre me fez muita impressão ver este vídeo: 


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Já está – vai demorar muito

 


«Sou Deputada há anos suficientes para saber que o chão comum que nos unia foi quebrado. Já está. Todos os dias a banalização da negação do Estado direito assume tantas formas e tão grotescas, que a reação e o combate pela reconstrução do que já fomos – ainda que imperfeitos – é um caminho desequilibrado.

Na casa da democracia berra-se e insulta-se. A misoginia, o racismo, a xenofobia, o capacitismo, a homofobia e os crimes de ódio têm palco entre risos e preparação de “tick tocks” com os verbos do nosso novo mundo: “arrasa”, “destrói”. De caminho, a extrema-direita afirma um novo homem virtuoso, o que humilha e não chora: “aqui ninguém chora”. O PAR podia ser um robô, não está ali para afirmar a República, para dizer coisas simples como “todas as crianças têm direito à escola”. Está ali para distinguir gramaticalmente substantivos e adjetivos. E assim temos um Parlamento que legitima o inaceitável no Regime de Abril.

Esperava-se que a direita democrática fosse direita democrática, que Luis Montenegro honrasse o Luis Montenegro que afirmou um “não é não” substancial, ao ponto de jurar que poderia o PSD abandonar os seus princípios, mas teria de ser sem ele.

No topo das preocupações dos portugueses estão temas como a saúde a habitação, mas a AD arrasta a solução dos problemas com um gigantesco sim à extrema-direita. Desde o dia um que fez da imigração o alfa e o ómega da sua agenda, inventando pressupostos para a urgência de medidas desumanas e inconstitucionais, reunido com o Conselho das Migrações depois de entregue proposta de lei e de ter reprovado, já no Parlamento, a rir, com o Chega, todas as audições de organizações de imigrantes e também as audições obrigatórias. Seguiu-se o inédito processo de urgência e, ao som do “habituem-se” gritado por Hugo Soares, aconteceu o que já foi impossível na aprovação relâmpago da lei que separa filhos e pais.

Ouvimos João Almeida dizer que acabou o tempo em que “nós” tratávamos imigrantes e nacionais da mesma forma (aquela imposição do artigo 15º da Constituição) e ouvimo-lo dizer que o país está a reconfigurar-se, já não o reconhece. Nunca tinha visto no CDS esta pontada súbita de teoria de substituição e parece-me evidente que não é no Príncipe Real que João Almeida se sente ameaçado na sua nacionalidade. O critério, de resto plasmado na obscena proposta de lei da nacionalidade, é cromático, é de sangue: querem, como nacionais, bisnetos de um português distante e não querem os que aqui estão há 5 anos por adesão. De onde vem a sensação de reconfiguração do país? Pergunto se João Almeida sentiria alguma reconfiguração se visse António Costa ou Francisca Van Unem numa rua qualquer do país e fossem ambos pessoas anónimas. Que sensação é essa? Não houve sobressalto geral. O limite do PAR é “fanfarrão”.

Porque já está.

E agora?

Agora será um tempo de resistência e de reconstrução lento. Muito lento. A história não se repete, mas dá-nos lições. Na Europa a direita democrática que concorreu com o monstro perdeu para o monstro. Luís Montenegro afirma que não cedeu, trata-se da “realidade”. Aderiu à realidade inventada e incutida pela extrema-direita numa comunidade que tinha problemas, mas que era muito mais coesa.

Leva muito, mas muito tempo, a recompor a verdade e a ser alternativa fiável. Isto vale para todos os democratas. Nesse esperar, até podemos encolher, enquanto a modernidade das redes sociais não dá trégua à coesão e infeta a política de mentira útil e endinheirada. Estou convicta de que a primeira receita para uma vitória a longo prazo da democracia toda, a substancial, é não ceder. Nunca.»


Dê um exemplo

 


21.7.25

Eunucos educaremos

 


Daqui.

O verdadeiro fanfarrão

 


«Quem tem medo de um fanfarrão? Talvez alguém que não o conheça suficientemente bem, talvez as crianças, sempre mais frágeis na reação ao grito, ao impropério e, se tiverem consciência disso, à maldade de ouvirem os seus nomes na Assembleia da República. Se pertencerem a minorias, pode tornar-se mais castigador; se a crueldade estiver suportada por conteúdos falsos, pior ainda. Todos conhecem este episódio que devia envergonhar o partido do fanfarrão, mas só envergonha o Parlamento, porque uma das características de qualquer fanfarrão é não ter ponta de vergonha. Mas por poder ter sorte ou ser incensado por uma qualquer simpatia, estratégia política ou patranha regimental, ao fanfarrão quase tudo é permitido, enquanto os restantes deputados devem ter todo o cuidado quando se dirigem ao fanfarrão.»

Continuar a ler AQUI.

21 de Julho – Festa Nacional da Bélgica

 


Foi em 21 de Julho de 1831 que Leopoldo I se tornou o primeiro rei da Bélgica.

É certamente uma das minhas «pátrias». Duas longas estadias naquele país, totalmente diferentes e separadas por mais de duas décadas, moldaram muito do que agora sou. Só quem nunca lá viveu desconhece a qualidade de vida possível, apesar do clima e de mais umas tantas minudências, e não tem saudades de belos tempos vividos.



Avec des cathédrales pour uniques montagnes / Et de noirs clochers comme mâts de cocagne / Où des diables en pierre décrochent les nuages / Avec le fil des jours pour unique voyage / Et des chemins de pluie pour unique bonsoir / Avec le vent de l'est écoutez-le vouloir / Le plat pays qui est le mien.
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O cheguismo está em todo o lado. Oxalá o povo acorde!

 


«Vivemos tempos perigosos, em que discursos de ódio e exclusão se normalizam no meio do desespero de quem trabalha, paga impostos e continua sem conseguir pagar uma casa ou pôr comida na mesa. É nesse vazio — onde o Estado falha e a empatia desaparece — que o cheguismo cresce. O perigo, obviamente, não está no imigrante, nem no pobre, nem no que é diferente. O perigo está no cinismo político que perpetua a injustiça para colher votos fáceis.

Tenho a sorte de ser filho de quem sou: pais com uma visão humanista da sociedade, católicos praticantes, mas fiéis ao primado da razão, do conhecimento e da ciência. Defensores acérrimos da liberdade e da dignidade de todos os indivíduos — todos, sem exceção, independentemente do local onde nasceram ou da condição social e económica em que vieram ao mundo. Com nove filhos, jamais lhes passaria pela cabeça que as pessoas fossem avaliadas pela cor da pele, pela forma como se vestem ou pelo que comem, pela religião que professam ou pela absoluta descrença no religioso. Para os que me educaram pelo exemplo, as pessoas sempre foram avaliadas pela capacidade que têm de se dar aos outros. Afinal, como pode alguém querer afirmar-se cristão cometendo a blasfémia de contrariar a máxima do Criador? Existimos todos à Sua imagem e semelhança.

Partilhando a visão do mundo, não fui abençoado pela fé dos meus pais. Sou agnóstico; não procuro no divino as explicações ou as soluções para as coisas terrestres. Sou crente na democracia, na política como espaço de justiça. Influenciado pela social-democracia e democracia-cristã dos meus pais, cresci a saber que o racismo e a xenofobia não pertencem nem à esquerda nem à direita — são apenas o território onde medra a desumanidade. À esquerda e à direita, há gente por engano, por desatenção, até por cansaço, que os impede de mudar de lado. Mas quem decide abraçar a forma mais cobarde de combater o medo — usando-o contra o outro — define-se como pessoa.

Em véspera de eleições, este é o problema das barracas em Loures e do modo como cada um olha para a decisão política de destruir o único teto daquelas famílias. Ser do PS não exige nem mais nem menos daquele autarca do que se exigiria a qualquer outro. Mas, quando as ações se aproximam da lógica do Chega, há algo profundamente errado. E ele não está sozinho: há políticos em vários partidos desejosos de surfar a onda do cheguismo. Fazem tudo o que acham que os pode levar à vitória. E talvez estejam certos — o povo, por vezes, foi cúmplice dos seus próprios carrascos. Não tenho dúvidas: nas atuais circunstâncias, se, em vez de imigrantes dos PALOP, estivéssemos a falar de pobres portugueses brancos, nenhuma barraca iria abaixo sem uma solução digna à vista. E bem. Porque essa era — e é — a decisão correta.

Só na Área Metropolitana de Lisboa há mais de três mil famílias a viver em 27 bairros de barracas. Ninguém escolhe viver assim. A maioria destas pessoas trabalha. Há poucos anos, conseguiam pagar renda. Hoje, vivem encurraladas num dos países da Europa com os salários mais baixos… e com os custos mais altos em habitação e alimentação. Querer culpar toda esta gente pela situação em que se encontra é, repito, o grau zero da política.

Sejamos optimistas, um dia o povo acorda e percebe que não é com o cheguismo — esteja ele no Chega, no PS, no PSD ou noutro partido qualquer — que se criam sociedades mais justas. Bem pelo contrário: com o cheguismo perpetua-se a pobreza e a injustiça, responsabilizando sempre os mais vulneráveis. É para isso que serve o racismo e a xenofobia. No meio do caos, não falta quem queira criar a perceção de que a culpa é das vítimas.

________________________________________ P.S. Sobre a Iniciativa Liberal A convenção da IL só não foi um acontecimento sem história porque Cotrim resolveu dar-nos meia história com a ponderação que está a fazer. Está a contar com o excelente resultado que teve há um ano, nas Europeias, mas uma coisa é votar em quem pretende cumprir o mandato, e outra, bem diferente, é votar (ou não votar) em quem se apresenta apenas para cumprir calendário e tentar evitar o declínio do partido.

A IL queria crescer e estagnou; a tendência será a de minguar até à irrelevância de um partido com saudades do seu ideólogo (Carlos Guimarães Pinto) e excessivamente dependente do seu melhor performer (João Cotrim Figueiredo). Depois de se colocar na sombra do êxito eleitoral de Montenegro, nas Legislatrivas, e de se entregar a coligações sem sentido em muitas autarquias, a Iniciativa Liberal caminha para se tornar no futuro CDS, diluído na AD.»


20.7.25

Um par

 


Par excepcional de candeeiros Art Deco, em vidro moldado prensado, com pés hexagonais em bronze níquel fosco. Paris, 1930.
Louis Hettier & Calixte Vincent, Vidraçaria Hanots.

Daqui.

Candidatos das direitas?

 


Venham mais cinco. Votos espalhados por muitos a bem da Nação.

20.07.1969 – A Lua

 




Longe dos pobres

 


«Houve um tempo em que os autarcas se orgulhavam de distribuir chaves em vésperas de eleições. E só demoliam barracas como epílogo do realojamento. Sentiam que isso lhes rendia votos. Hoje sentem que a demolição de barracas habitadas lhes dá votos. Porque antes se valorizava a competência de quem resolvia problemas da comunidade, hoje valoriza-se a suposta coragem de punir os infratores, “doa a quem doer”. Apesar de, como disse Helena Roseta, ser forte contra os fracos demonstrar grande fraqueza. Nunca algum autarca imaginou que pôr mais de 60 crianças ao relento podia ser popular. Mas talvez seja. E isto não é um retrato do que se tornou a política. É um retrato do que nos estamos a tornar.

Portugal já conheceu as barracas. Herdou-as da ditadura e erradicou-as com um programa de realojamento que, apesar de repetir os erros de que o resto da Europa já se arrependera, pretendia enfrentar o problema. A ninguém passou pela cabeça pôr-se a discutir a legalidade das barracas. As barracas, os sem-abrigo e as famílias a viver em parques de campismo não estão a regressar porque temos mais gente. Somos pouco mais do que éramos, apenas mais estrangeiros e menos nacionais. Elas estão a regressar porque centenas de milhares de casas foram desviadas para funções não habitacionais e o Estado é incapaz de construir outras, como fez há 20 anos, apesar de ter o dinheiro do PRR. No mesmo dia das demolições de Loures, os jornais noticiavam que comprar e arrendar casas implica uma taxa de esforço superior a 50% em 75 municípios e que há quase 250 mil casas vazias, fora do mercado de arrendamento ou venda. Quando o Governo do PS tentou forçar a entrada dessas casas no mercado, foi destratado como chavista e comunista. E Moedas juntou-se à manifestação do alojamento local. Foi tudo revertido e, no primeiro trimestre deste ano, os preços da habitação subiram 18,7%, três vezes mais do que a média europeia.

Os mesmos que colocaram um edital às 18h de sexta-feira para demolir barracas na segunda-feira de manhã, fugindo ao escrutínio judicial, enchem a boca com a lei. Mas ninguém mete um requerimento para viver na miséria. A barraca é construída porque chove na cabeça e faz frio. Por isso a Constituição não trata a habitação como um carro. O apelo do segundo populista inventado em Loures foi transmitido pela sua vice: que aquelas pessoas regressassem aos concelhos de origem. Da “reimigração” externa passamos para a interna, onde cada concelho fortifica as suas fronteiras contra a invasão da pobreza. É este o ar do tempo, tão graficamente revelado no pogrom de Torre-Pacheco. Neste tempo, o político não tem de ter competência para resolver os problemas, tem de ter coragem para punir. Maus autarcas, como Ricardo Leão, usam o chicote porque não trataram da cenoura. Sabem quem vai, entre a miserável taxa nacional de execução do PRR para a habitação, distribuir mais casas na Área Metropolitana de Lisboa? Isaltino Morais. Com todos os seus defeitos, não o ouvem agora, como não o ouviram durante os tumultos, a distribuir insultos pelos pobres. Tem trabalho para mostrar.

Assistimos à gentrificação das periferias, que recebem a classe média expulsa da capital. Sabendo-se que o metropolitano vai chegar a Loures (o que valorizará o concelho), ninguém quer ficar com a fava: os pobres, que vão sendo expulsos para cada vez mais longe dos lugares onde trabalham. O que o mercado não fizer, porque a construção da barraca foge à sua lógica, fazem os caterpillars. Com o aplauso dos que não os querem por perto.

O Estado social era o cimento de uma aliança entre classe média e pobres que nascia de uma ideia de comunidade de que os mais ricos sempre se autoexcluíram. Perante o seu declínio induzido, a classe média já não põe as suas fichas em serviços públicos e cidades que funcionem. Quer, para se precaver, o seguro de saúde, o colégio privado, bairros que sejam condomínios, onde os problemas não chegam. E ficar longe da lepra dos pobres, que a pode infetar a qualquer momento. É o sonho americano que leva ao subdesenvolvimento sul-americano. Na lógica meritocrática, o pobre não falha por culpa da comunidade, como estava implícito ao modelo social em que acreditávamos, mas por culpa própria. Seja nacional ou imigrante, o pobre é um criminoso em potência. Assim sendo, não é o Estado social que lida com ele, é o Estado policial, única alternativa para manter a ordem. Não é por acaso que a extrema-direita só fala de polícia e a IL apresentou a lei contra os “ocupas”, tão distante dos problemas atuais. Precisam de conter os estragos da sociedade que defendem. Oferecem a única linguagem útil na selva que sempre desejaram.»