«Depois das exibições securitárias, criticadas pela Provedoria de Justiça e para as quais a comunicação social tem dado o seu forte contributo (segundo o Observatório de Segurança e Defesa da SEDES, o número de crimes registados pelas autoridades diminuiu 1,3% neste século, enquanto subiu 130% nas primeiras páginas dos principais jornais) e do encontro quase perfeito com o Chega na política de imigração (combatendo instrumentos fundamentais para a integração), o governo quer retirar das aprendizagens essenciais da disciplina de cidadania e desenvolvimento tudo o que tenha a ver com sexualidade e saúde sexual e reprodutiva.
Não vou debater a contradição entre a ideia de que as outras culturas se devem integrar nos “nossos valores” ao mesmo tempo que se diz que a escola não deve transmitir valores e educar, que isso é do foro privado e familiar. Quando interessa, os valores são comunitários, quando deixa de interessar, são do foro privado. Só que a escola não é apenas lugar onde se recebem conhecimentos científicos, é lugar de construção de comunidade. Mas o que aqui está em questão é um pouco mais básico do que isto: saúde pública e cuidado mínimo.
Sei onde se fazia a educação sexual na geração dos nossos pais: os homens iam às “meninas”, as mulheres esperavam pelo casamento. Sei onde se recebia educação sexual na minha geração: em conversa de amigos, revistas “especializadas” e em informação de emergência quando uma amiga ou namorada tinha de fazer um aborto clandestino. Sei onde se faz hoje: na Internet e a ouvir influencers. Com raríssimas exceções, nunca foi nem é em casa. Estou disponível para debater o modelo da disciplina de cidadania (mais do que os conteúdos, a forma e a formação de quem a dirige), mas seria mais fácil se o debate não recuasse décadas. Sobretudo quando aumenta a violência no namoro e a misoginia entre os jovens rapazes.
Tenho, se me permitem o palpite, todas as dúvidas que esta opção tenha vindo do ministro da Educação. Porque o próprio tinha prometido, no início do mês, que nenhum dos 17 temas que até agora deviam ser abordados ao longo da escolaridade obrigatória iria desaparecer. Pelo timing e a coerência tática, a opção parece-me vinda de cima. Para responder ao ruido das redes sociais e da extrema-direita, não de preocupações transmitidas pelas escolas.
Sentindo que o PS está nas lonas e incapaz de ir à luta em qualquer debate, Montenegro quer fazer o pleno e destrunfar o Chega. A aproximação é tal, que o primeiro-ministro já deixou de fazer a equivalência entre a extrema-esquerda e a extrema-direita, para a fazer entre o Chega e o PS, dizendo que o seu “não é não” era para os dois. Que não havia, portanto, uma separação civilizacional entre o PSD e a extrema-direita. Até inventou um Ventura que, acabado de ler nomes de crianças no parlamento, se estaria a moderar.
Já nem debato o oportunismo e a falta de valores de um sobrevivente. Fico-me pela tática. Não destrunfa coisa alguma. A cada nova vitória, o Chega trará novo tema, continuando a dominar a agenda. E se dominar a política é dominar a agenda, Ventura é rei e senhor.
Até ver, isto dá jeito momentâneo ao governo, porque assim nos põe a falar de tudo, menos de saúde e habitação, os dois problemas que mais preocupam o País. Mas, a longo prazo, continua a deslizar o país para a direita, até nem o PSD conseguir acompanhar. Ou talvez consiga. Essa é a incógnita que sobra: até onde está disposto a ir Montenegro? Qual é o seu limite? Suspeito que seja o seu próprio poder. Não mais do que isso.»

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