Este texto de Fernando Rosas (Público de hoje, 5/9/2012, sem link) inscreve-se na polémica em curso entre os historiadores Manuel Loff e Rui Ramos (com outros intervenientes pelo meio...). Os artigos de Loff podem ser lidos neste blogue, os outros «andam por aí», não por aqui.
Não era minha intenção intervir na polémica que neste jornal tem oposto os historiadores Rui Ramos (RR) e Manuel Loff (ML), a propósito dos conteúdos sobre a História do século XX da de que o primeiro é, respectivamente, autor e co-autor. E não o faria, se o inacreditável artigo de Filomena Mónica (FM) publicado nestas colunas (1/8) a tal me não tivesse obrigado.
Permitam-me que comece por situar a questão, tal como a vejo: é ou não científica e civicamente relevante discutir criticamente os pontos de vista que enformam a versão da História política do século XX subscrita por RR? Eu acho que sim. Porque é um texto bem escrito, porque teve ampla divulgação e, sobretudo, porque é matéria que se prende umbilicalmente com a forma como pretendemos legitimar o presente e fazer o futuro. No meu entender, foi precisamente isso que, à sua maneira e no seu estilo assertivo, mas onde não vislumbro nada de insultuoso ou pessoalmente difamatório para o criticado, julgo que Manuel Loff pretendeu fazer. Na realidade, essa parte da História de Portugal de RR, no seu modo corrente e aparentemente desproblematizador, no seu jeito de discurso do senso comum superficial e para o “grande público”, é um texto empapado de ideologia. Uma ideologia que faz passar a visão da I República como um regime ditatorial, “revolucionário” e de “terror”, por contraponto a um Estado Novo ordeiro e desdramatizado, quase banalizado na sua natureza política e social, transfigurado em ditadura catedrática, em regime conservador moderado e aceitável, apesar de um ou outro abuso. Essa visão — em vários aspectos semelhante ao próprio discurso propagandístico do Estado Novo sobre a I República e sobre si próprio — carece, a meu ver, de qualquer sustentação histórica. E, talvez por isso mesmo, convém salientá-lo, não é subscrita, ao que me parece, por uma significativa parte de historiadores e investigadores que, com diferentes perspectivas, trabalham sobre este período.
O que julgo intelectualmente inaceitável é que alguns dos candidatos do costume a sacerdotes do “pensamento único” venham ameaçar com a excomunhão do seu mundo civilizado quem não aceitar o que eles parece quererem transformar numa espécie de cartilha ”normalizadora” do salazarismo e da sua representação histórica. Peço licença para dizer que, como historiador e como cidadão, não me intimidam. E por isso vamos ao que interessa.
É bem certo que a I República, e já várias vezes o escrevi, não foi, obviamente, uma democracia nem política, nem socialmente, sobretudo no sentido moderno do termo. Com o seu liberalismo oligárquico, com as suas perseguições políticas (sobretudo na sua primeira fase contra as conspirações restauracionistas) e principalmente sociais (contra o movimento operário e sindical), foi um regime de liberdade frequentemente condicionada, à semelhança da maioria dos regimes liberais da Europa do primeiro quartel do século XX. Mas com o ser isso tudo, foi um sistema imensamente mais liberal e aberto do que o Estado Novo da censura prévia, da proibição e perseguição dos partidos, dos sindicatos livres, do direito à greve e da oposição em geral, da omnipresença da polícia política e da violência arbitrária, da opressão quotidiana dos aparelhos de repressão preventiva e de enquadramento totalizante. E tenho para mim que isso não é banalizável ou “normalizável”. Nem histórica, nem civicamente. É por isso que os valores matriciais da I República puderam ser os da resistência à ditadura salazarista e enformaram, como referência, os constituintes democráticos de 1976.
Infelizmente, RR não compareceu a este debate. Refugiou-se sob o manto de uma pretensa intangibilidade moral, ou seja, de uma vitimização construída a partir, na realidade, da deturpação dramatizante das criticas do seu interlocutor. FM fez bem pior. Sem aparentar perceber nada de nada, veio à liça reclamar contra o facto de ML romper o consenso que ela acha que existia em torno do “terror republicano”, apodá-lo de “marxista leninista” e de “historiador medíocre” — quem falou de insultar? — sem discutir um único dos seus pontos de vista e confessando desconhecer e não querer conhecer a obra de ML! E embalou: a “deturpação de um texto”, diz FM, está na natureza dos comunistas e apela sem rebuço à censura do “seu” jornal contra tal gente. Isto tudo, claro está, porque, como se terá percebido, FM “gosta de controvérsia”...
Para mim, ao contrário, acho absolutamente necessário que RR e FM continuem a ter pleno direito à palavra. Pelo menos, isso mantém-nos atentos e despertos relativamente aos “demónios capazes de despertar o pior da cultura portuguesa” (António Barreto dixit)
.