«Os dramáticos atentados do 11 de Setembro originaram manifestações de veemente repúdio à escala mundial e desencadearam uma intensa cooperação internacional, na qual Portugal se integrou desde a primeira hora, e cujo objectivo primordial era a luta contra o terrorismo por forma a garantir uma segurança internacional duradoura. A intervenção militar no Afeganistão, em 2001, inscreveu-se neste contexto e foi um exercício legítimo perante o direito internacional. O sucesso militar então alcançado foi significativo, com a derrota do regime taliban e a aniquilação das forças da Al Qaeda e dos seus aliados.
Mas, subjacentes aos ataques do 11 de Setembro, havia objectivos políticos e ideológicos, como sejam o de atiçar a discórdia e o ódio entre o Ocidente e o Islão, que, a meu ver, exigiam uma resposta forte de natureza não militar. A iniciativa da Aliança das Civilizações, lançada pelas Nações Unidas em 2006 - depois da problemática, contestada e danosa invasão e ocupação militar do Iraque e da multiplicação de atentados à bomba contra civis em vários países, designadamente ocidentais - era, a meu ver, a resposta certa para promover o diálogo de civilizações, uma cultura da tolerância, do conhecimento e respeito mútuos e uma coexistência pacífica entre os povos com base no direito internacional e na protecção dos direitos humanos. Lamentavelmente, apesar da bondade dos seus fundamentos e da sua ambiciosa agenda, esta iniciativa nunca dispôs dos meios humanos e financeiros de que necessitava para desempenhar cabalmente a sua missão, para além de o seu enquadramento institucional pelo sistema das Nações Unidas ter sido lento, insuficiente e pouco expressivo no terreno. Lembro-me particularmente bem de uma diligência que efectuei na minha qualidade de Alto Representante da Aliança das Civilizações para persuadir os EUA a aderir a esta iniciativa, durante a qual o embaixador Z. Khalizad (agora o Enviado Especial dos EUA para o Afeganistão) me interpelou, entre o irónico e o céptico, repetindo a célebre frase but how many divisions has you got, Sir? (Mas quantas divisões militares tem o Senhor?).
De qualquer forma, o que pretendo sublinhar é que as duas primeiras décadas deste século XXI nos trouxeram já matéria de sobra para reflexão urgente – reflexão por parte da comunidade internacional (e quem diz comunidade internacional, diz Estados, organizações internacionais como o as Nações Unidas e as suas agências e as organizações regionais, de que quero destacar a União Europeia e a NATO por nos serem especialmente próximas e pelo seu peso decisivo nas dinâmicas internacionais), mas também a nível das sociedades e do exercício da cidadania, ou seja por parte dos cidadãos, das organizações da sociedade civil, fundações, empresas, comunidade académica, associações e actores vários, etc.
Há urgência em dar resposta aos desafios de longo prazo que são comuns a toda a humanidade, quer seja no plano das alterações climáticas, da revolução digital, dos desequilíbrios mundiais, das desigualdades ou da instabilidade e conflitualidade crescentes em certas regiões que ameaçam a paz global. Há pois urgência em forjar novos consensos para promover um processo de desenvolvimento sustentável, mais equitativo e mais solidário. Há ainda urgência em relançar a confiança na cooperação multilateral, nos processos de diálogo, mediação, concertação e negociação, na diplomacia preventiva. Há depois urgência em mobilizar mais esforços para uma actuação concertada, sobretudo em contexto humanitário.
Não podemos ignorar que o século XXI tem sido marcado por sucessivas crises humanitárias que atingem milhões de pessoas, agravando as suas condições de vida e exacerbando a sua vulnerabilidade – especialmente das crianças, mulheres e idosos - ou originando movimentos maciços de populações que ficam à mercê de redes criminosas de toda a espécie. Urge reforçar respostas coordenadas a este desafio que é global, mas que se declina sempre no plano local, motivado por uma variedade de factores que vão dos conflitos aos desastres naturais, passando pelas pandemias ou pelas alterações climáticas.
As novas crises que surgem e que nos são presentes através de imagens avassaladoras que os media disponibilizam praticamente em tempo real não podem ter o efeito pernicioso de fazer esquecer crises mais antigas e prolongadas ou conflitos enquistados, frequentemente apelidados de “congelados”. Não podemos responder às crises humanitárias ao sabor de modas ou ignorá-las por razões de cansaço, enfado ou indiferença. A crise síria, no Iémen, no Haiti, no Tigray, no Sudão, no Sudão do Sul, na Somália, em Cabo Delgado ou a actual situação no Afeganistão, para citar apenas alguns exemplos, atingem homens, mulheres, jovens e crianças com a mesma gravidade, igual força e idêntica desesperança. Importa intervir sempre no completo respeito pelos princípios da humanidade, neutralidade, independência e imparcialidade, subjacentes à actuação humanitária, seja em que domínio, sector ou local se trate, sob pena de desacreditar e inviabilizar os propósitos e resultados pretendidos.
O programa de bolsas de estudo para estudantes sírios, com o objectivo de contribuir para dar resposta à emergência académica que o conflito na Síria criara, deixando milhares de jovens para trás sem acesso à educação, foi lançado em 2013 pela Plataforma Global para os Estudantes Sírios, a que tenho a honra e o gosto de presidir, inscrevendo-se neste contexto humanitário. Entretanto, a Plataforma foi alargando o seu âmbito de actuação para além da crise síria, e hoje trabalha na criação de um Mecanismo de Resposta Rápida para o Ensino Superior nas Emergências (RRM). Neste contexto, está agora a ser preparado, para além de um reforço do programa de bolsas para estudantes sírios, libaneses e outros, um programa de emergência de bolsas de estudo e de oportunidades académicas para jovens afegãs.
Aproveito, assim, esta tribuna para lançar um apelo a todos parceiros da Plataforma – às entidades oficiais, às instituições do ensino superior, centros de estudos e investigação, bem como empresas, fundações, outras organizações e particulares - para que colaborem sempre mais connosco, e disponibilizem apoios, oportunidades académicas e profissionais, estágios e vagas para estes jovens oriundos de sociedades atingidas por conflitos e crises humanitárias que carecem de protecção e que só buscam poder seguir em frente no encalço dos seus sonhos. A experiência que reunimos nos últimos 7 anos com a integração de estudantes sírios tem mostrado o quanto esta tem sido duplamente benéfica, não só para os estudantes, que assim encontram um horizonte de futuro para as suas vidas, como para as comunidades de acolhimento que desta forma se renovam, dinamizam e reforçam o seu potencial criativo, produtivo e de inovação. E mesmo que assim não fosse, nunca seria demais recordar que a solidariedade não é facultativa, mas um dever que resulta do artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos - Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. Façamos uma vez mais prova de que sabemos estar à altura das nossas responsabilidades.»
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