11.9.21

11 de Setembro

 


Eduardo Galeano, Los hijos de los días
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11.09.1973 - Chile




Era já uma tradição: todos os anos, nesta data, Luis Sepúlveda publicava um texto no Facebook e eu trazia-o para aqui. O último (este) é de 2019 por razões óbvias: o maldito covid levou-nos LS alguns meses depois.


«Hoy...

Lo que me queda, Compañero, es el "metal sereno de tu voz" mientras el más hermoso sueño era ametrallado en las calles de Chile y, por última vez nos recordabas nuestro compromiso con el futuro y tu determinación de no rendirte.

Lo que me queda, Compañero, es la memoria, el recuerdo indeleble de mis hermanos que permanecieron contigo o muy cerca de ti combatiendo en La Moneda, los edificios aledaños, los cordones industriales y las barriadas populares.

Lo que me queda, Compañero, sobre el dolor, la bronca, el olor a sangre y pólvora, es el honor de haber estado junto a ti durante el tiempo que integré el GAP, ese "Grupo de Amigos Personales" encargados tu seguridad, y que tan bien supo definir "Eugenio":

”A diferencia de lo que son hoy día los servicios de seguridad, cuyo objetivo es la destrucción, nuestra misión era la de protección de un hombre que encarnaba las esperanzas de un pueblo y que era el único que garantizaba que ese proceso iniciado el 4 de septiembre siguiera adelante. Nuestro único delito fue dejar de pensar en nosotros como individuos, y estar dispuestos a dar la vida por Allende”.

Hoy, lo que me queda, Compañero Presidente, es el orgullo que tal vez ya no importe a nadie, pero que sigue ahí, latiendo, entre la piel y la camisa.»

Luis Sepúlveda no Facebook
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Dever de solidariedade

 


Este texto de JORGE SAMPAIO foi publicado na véspera de ele ser internado no Hospital de Santa Cruz. Apela, numa espécie de testamento, para um «dever de solidariedade» em muitos domínios, com uma especial incidência no recente drama do Afeganistão e, de um modo especial, das mulheres afegãs.

 
«Os dramáticos atentados do 11 de Setembro originaram manifestações de veemente repúdio à escala mundial e desencadearam uma intensa cooperação internacional, na qual Portugal se integrou desde a primeira hora, e cujo objectivo primordial era a luta contra o terrorismo por forma a garantir uma segurança internacional duradoura. A intervenção militar no Afeganistão, em 2001, inscreveu-se neste contexto e foi um exercício legítimo perante o direito internacional. O sucesso militar então alcançado foi significativo, com a derrota do regime taliban e a aniquilação das forças da Al Qaeda e dos seus aliados.

Mas, subjacentes aos ataques do 11 de Setembro, havia objectivos políticos e ideológicos, como sejam o de atiçar a discórdia e o ódio entre o Ocidente e o Islão, que, a meu ver, exigiam uma resposta forte de natureza não militar. A iniciativa da Aliança das Civilizações, lançada pelas Nações Unidas em 2006 - depois da problemática, contestada e danosa invasão e ocupação militar do Iraque e da multiplicação de atentados à bomba contra civis em vários países, designadamente ocidentais - era, a meu ver, a resposta certa para promover o diálogo de civilizações, uma cultura da tolerância, do conhecimento e respeito mútuos e uma coexistência pacífica entre os povos com base no direito internacional e na protecção dos direitos humanos. Lamentavelmente, apesar da bondade dos seus fundamentos e da sua ambiciosa agenda, esta iniciativa nunca dispôs dos meios humanos e financeiros de que necessitava para desempenhar cabalmente a sua missão, para além de o seu enquadramento institucional pelo sistema das Nações Unidas ter sido lento, insuficiente e pouco expressivo no terreno. Lembro-me particularmente bem de uma diligência que efectuei na minha qualidade de Alto Representante da Aliança das Civilizações para persuadir os EUA a aderir a esta iniciativa, durante a qual o embaixador Z. Khalizad (agora o Enviado Especial dos EUA para o Afeganistão) me interpelou, entre o irónico e o céptico, repetindo a célebre frase but how many divisions has you got, Sir? (Mas quantas divisões militares tem o Senhor?).

De qualquer forma, o que pretendo sublinhar é que as duas primeiras décadas deste século XXI nos trouxeram já matéria de sobra para reflexão urgente – reflexão por parte da comunidade internacional (e quem diz comunidade internacional, diz Estados, organizações internacionais como o as Nações Unidas e as suas agências e as organizações regionais, de que quero destacar a União Europeia e a NATO por nos serem especialmente próximas e pelo seu peso decisivo nas dinâmicas internacionais), mas também a nível das sociedades e do exercício da cidadania, ou seja por parte dos cidadãos, das organizações da sociedade civil, fundações, empresas, comunidade académica, associações e actores vários, etc.

Há urgência em dar resposta aos desafios de longo prazo que são comuns a toda a humanidade, quer seja no plano das alterações climáticas, da revolução digital, dos desequilíbrios mundiais, das desigualdades ou da instabilidade e conflitualidade crescentes em certas regiões que ameaçam a paz global. Há pois urgência em forjar novos consensos para promover um processo de desenvolvimento sustentável, mais equitativo e mais solidário. Há ainda urgência em relançar a confiança na cooperação multilateral, nos processos de diálogo, mediação, concertação e negociação, na diplomacia preventiva. Há depois urgência em mobilizar mais esforços para uma actuação concertada, sobretudo em contexto humanitário.

Não podemos ignorar que o século XXI tem sido marcado por sucessivas crises humanitárias que atingem milhões de pessoas, agravando as suas condições de vida e exacerbando a sua vulnerabilidade – especialmente das crianças, mulheres e idosos - ou originando movimentos maciços de populações que ficam à mercê de redes criminosas de toda a espécie. Urge reforçar respostas coordenadas a este desafio que é global, mas que se declina sempre no plano local, motivado por uma variedade de factores que vão dos conflitos aos desastres naturais, passando pelas pandemias ou pelas alterações climáticas.

As novas crises que surgem e que nos são presentes através de imagens avassaladoras que os media disponibilizam praticamente em tempo real não podem ter o efeito pernicioso de fazer esquecer crises mais antigas e prolongadas ou conflitos enquistados, frequentemente apelidados de “congelados”. Não podemos responder às crises humanitárias ao sabor de modas ou ignorá-las por razões de cansaço, enfado ou indiferença. A crise síria, no Iémen, no Haiti, no Tigray, no Sudão, no Sudão do Sul, na Somália, em Cabo Delgado ou a actual situação no Afeganistão, para citar apenas alguns exemplos, atingem homens, mulheres, jovens e crianças com a mesma gravidade, igual força e idêntica desesperança. Importa intervir sempre no completo respeito pelos princípios da humanidade, neutralidade, independência e imparcialidade, subjacentes à actuação humanitária, seja em que domínio, sector ou local se trate, sob pena de desacreditar e inviabilizar os propósitos e resultados pretendidos.

O programa de bolsas de estudo para estudantes sírios, com o objectivo de contribuir para dar resposta à emergência académica que o conflito na Síria criara, deixando milhares de jovens para trás sem acesso à educação, foi lançado em 2013 pela Plataforma Global para os Estudantes Sírios, a que tenho a honra e o gosto de presidir, inscrevendo-se neste contexto humanitário. Entretanto, a Plataforma foi alargando o seu âmbito de actuação para além da crise síria, e hoje trabalha na criação de um Mecanismo de Resposta Rápida para o Ensino Superior nas Emergências (RRM). Neste contexto, está agora a ser preparado, para além de um reforço do programa de bolsas para estudantes sírios, libaneses e outros, um programa de emergência de bolsas de estudo e de oportunidades académicas para jovens afegãs.

Aproveito, assim, esta tribuna para lançar um apelo a todos parceiros da Plataforma – às entidades oficiais, às instituições do ensino superior, centros de estudos e investigação, bem como empresas, fundações, outras organizações e particulares - para que colaborem sempre mais connosco, e disponibilizem apoios, oportunidades académicas e profissionais, estágios e vagas para estes jovens oriundos de sociedades atingidas por conflitos e crises humanitárias que carecem de protecção e que só buscam poder seguir em frente no encalço dos seus sonhos. A experiência que reunimos nos últimos 7 anos com a integração de estudantes sírios tem mostrado o quanto esta tem sido duplamente benéfica, não só para os estudantes, que assim encontram um horizonte de futuro para as suas vidas, como para as comunidades de acolhimento que desta forma se renovam, dinamizam e reforçam o seu potencial criativo, produtivo e de inovação. E mesmo que assim não fosse, nunca seria demais recordar que a solidariedade não é facultativa, mas um dever que resulta do artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos - Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. Façamos uma vez mais prova de que sabemos estar à altura das nossas responsabilidades.»

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10.9.21

62 foi assim


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Sampaio e a Crise Académica de 1962



 

Por meia dúzia de meses, vai falhar as comemorações do 60º aniversário da Crise Académica de 62. Mas no 50º ainda estava óptimo.

(Almoço na Cantina Velha)
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Jorge Sampaio

 


Partiu um homem bom e um grande amigo. Adeus, Jorge.
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Afeganistão 2020


 

As Memórias do Facebook mostram-me que estas mulheres estavam a fazer o exame de acesso à universidade há um ano, à torreira do Sol e com respeito da distância social por causa da pandemia. Certamente que se lembram agora deste dia com sabor a um paraíso quase perdido
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9.9.21

Do fundo do baú (16)

 



Nos 50 anos desta canção.
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Entretanto no Afeganistão

 


«Há dias, um talibã do Afeganistão foi questionado, em entrevista, sobre a importância do uso do hijab (véu islâmico) e respondeu da seguinte maneira: - "Você compra um melão já talhado ou intacto? Claro que compra o intacto. Uma mulher sem o hijab é como um melão talhado". »
 
Alexandre Guerreiro no Twitter
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O «Menino Guerreiro» a merecer o título

 



«Santana Lopes recolhe a maioria das intenções de voto numa sondagem do ICS/ISCTE para o Expresso e para a SIC para a eleição para a presidência da Câmara Municipal da Figueira da Foz, podendo “roubar” a liderança da autarquia ao PS.

De acordo com esta recolha de opinião, o agora independente Santana Lopes tem 47% das intenções de voto podendo voltar a liderar uma autarquia que já presidiu entre 1997 e 2001.»
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Para nossa eterna vergonha

 


«A saída desordenada da comunidade internacional do Afeganistão e a devolução gratuita do poder aos Talibãs é uma vergonha para a comunidade internacional e uma tragédia para os milhões de afegãos que se envolveram no processo de mudança política, social e cultural do país nos últimos 20 anos. Em situação particularmente vulnerável estão as mulheres que estudaram, trabalharam e exerceram cargos públicos. Penso especialmente nas 270 juízas: essas “infiéis” que ousaram sentar-se em frente de homens, olhá-los com autoridade e julgá-los pelos seus actos. Têm a cabeça a prémio. Ninguém sério acredita nas promessas de tolerância daqueles tresloucados barbudos com pensamentos medievais que consideram as mulheres sub-humanas e já andam por todo o lado armados com metralhadoras a matar e perseguir.

A discussão dos aspectos geopolíticos e geoestratégicos da retirada unilateral dos Estados Unidos, da irrelevância dos seus aliados e da impotência de organizações internacionais é importante, mas deixo-a para os especialistas. É sempre possível encontrar boas razões para justificar más acções. A verdade que mais me importa sublinhar é a do falhanço moral indesculpável da comunidade internacional, que abandonou pessoas a quem tinha dado esperança e incentivado a correr riscos com base em promessas de protecção que não cumpriu. É fácil agora culpar os Estados Unidos, mas não podemos apagar a responsabilidade dos outros países envolvidos no processo de estabilização do Afeganistão – entre os quais Portugal, que mandou para lá milhares de militares, deixou lá vidas e gastou milhões de euros.

De acordo com o documento “Out of the Shadows, Onto the Bench: Women in Afghanistan´s Justice Sector” da International Development Law Organization, só nos primeiros 10 anos de presença internacional no Afeganistão, as mulheres com licenciatura em direito atingiram 18% e constituíam 19,3% dos advogados, 9,4% dos procuradores e 8,4% dos juízes. Todas essas pessoas foram apanhadas de surpresa e estão agora em risco. Basta ver o que dizia a juíza presidente do tribunal de recurso para crimes de corrupção, Anisa Rasolli, em 11 de Junho deste ano: “Acredito que o sistema judicial Afegão está a recuperar a decência. Se a situação actual se mantiver, estou optimista quanto ao futuro do judiciário no Afeganistão”. Enganou-se. Dois meses depois a comunidade internacional tinha saído, o presidente afegão fugido, as Forças Armadas entregado as armas e os Talibãs tomado conta do país.

Nos dias da debandada caótica, daquelas cenas horríveis que vimos no aeroporto de Cabul, apenas umas poucas juízas puderam fugir do país com as famílias. Ninguém se lembrou de as considerar prioritárias. Que se saiba, 9 conseguiram refugiar-se no Reino Unido e umas duas dezenas noutros países, com o apoio de diversas organizações internacionais, nomeadamente as que representam juízes e juízas. Foi constituído um grupo ad-hoc de pessoas com contactos no terreno e nas entidades nacionais e internacionais relevantes para coordenar o processo de evacuação dessas mulheres e suas famílias. Há países dispostos a conceder vistos – Portugal é um deles, segundo declarações públicas de responsáveis do governo. E há condições de acolhimento que as associações internacionais e nacionais de juízes podem assegurar.

No entanto, a situação é ainda incerta e não consente optimismos. As juízas estão escondidas em casas de familiares. Os contactos pessoais (telefone, email e zoom) são muito difíceis. Os países que se disponibilizaram a conceder vistos hesitam agora por causa do problema logístico de terem encerrado as suas representações diplomáticas em Cabul e não poderem emitir e entregar pessoalmente esses documentos. (…) Uma tarefa ciclópica de êxito incerto. É essencial que todos nos sobressaltemos agora para que amanhã não nos venha a pesar na consciência a morte daquelas mulheres que abandonámos para nossa eterna vergonha.»

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8.9.21

Do fundo do baú (15)

 


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Mulheres afegãs

 


O mínimo que podemos fazer é mostrá-las, com esta força incrível.

Mais imagens AQUI.
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Debate Fernando Medina / Carlos Moedas

 


Não votarei em nenhum dos dois, mas tentei ver e ouvir, atentamente, o debate de ontem na TVI. Em nada fiquei esclarecida e passei a «ver» os protagonistas como dois gatos assanhados a tentarem apanhar a mesma meada de lã sem conseguirem agarrar correctamente nenhuma das pontas. Foi mesmo doloroso porque este país já assistiu a muitos debates civilizados e até esclarecedores.

Só me resta uma consolação: Carlos Moedas talvez possa regressar à Gulbenkian ou ao seu Alentejo, mas não vai correr o risco de ser atropelado numa ciclovia a caminho da Praça do Município, em Lisboa, nos próximos anos. Para pior já basta assim.
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Pela democracia global, marchar, marchar

 


«Os atuais acontecimentos no Afeganistão, além das suas implicações internas ou, quando muito, bilaterais, estão igualmente relacionados com o tema da democracia global, colocando no centro do debate aquela que, afinal, é a pergunta chave: como implantar a democracia em todas as sociedades e regiões? O presidente norte-americano Joe Biden justificou a saída dos EUA do Afeganistão com uma afirmação brutal, que parece responder a tal pergunta. Disse ele (cito de memória): - "Se os afegãos não querem travar esta luta, não seremos nós a fazê-lo!".

Será, como já se apressaram alguns a concluir, que os EUA deixarão de ser os "polícias do mundo" e, sobretudo, irão abandonar efetivamente a estratégia inaugurada por Reagan e desenvolvida por Bush de "impor a democracia à força de balas e canhões"? Será preciso ver para crer.

O facto é que a frase de Biden é idêntica a outras frases já proferidas por outros altos responsáveis norte-americanos nas últimas décadas. O então secretário de Estado John Kerry, por exemplo, afirmou em 2013 e 2015, que não havia "solução militar" para a Síria. No passado mês de agosto, o representante dos EUA para o Afeganistão, Zalmay Khalilzad, disse a mesma coisa em relação ao referido país, antecipando a saída das tropas americanas da região. Porém, o facto de, por vezes, os dirigentes americanos darem mostras de "cair na real", não demonstra que a maior potência imperial da nossa época esteja disposta a abandonar as suas políticas... imperialistas. Não seria isso, afinal de contas, uma contradição?

É aconselhável não esquecer que persistem as pressões dos setores internos e externos interessados na guerra. O complexo industrial-militar norte-americano, desde logo, não é nenhum fantasma e muito menos uma "invenção comunista": existe mesmo, como reconheceu o ex-mercenário e autor Sean McFate, em entrevista recente a este jornal (14 de agosto de 2021). Entretanto, mais patéticas ainda são as "pressões" dos diferentes órfãos europeus (políticos, analistas, jornalistas e outros) que continuam a lamentar-se, por todos os meios, por causa do abandono do Afeganistão por parte dos EUA.

De facto, há por aí malta que continua a sonhar com a necessidade de recorrer a guerras para salvar a "democracia liberal" (?). É óbvio que, em certos momentos da história, a guerra é imprescindível para impedir a tirania global, como aconteceu na 2.ª Guerra Mundial. Não tenho, também, qualquer relutância em admitir a necessidade de medidas militares (inteligência, ataques dirigidos, guerras mais ou menos localizadas) para conter todas as formas de terrorismo e não apenas o islâmico. Isso é uma coisa. Outra é tentar impor a democracia em todo o mundo à base de intervenções militares ou golpes de estado, mais ou menos "primaveris".

Além do mais, tal estratégia tem-se revelado de uma ineficácia confrangedora. Atendo-me unicamente às "primaveras árabes", a única que teve um relativo sucesso foi a da Tunísia, por uma razão simples: foi a única verdadeiramente genuína e com visão do "dia seguinte" (o que fazer depois de derrubar a ditadura). Todas as outras foram um rotundo fracasso, tendo resultado em ditaduras ainda mais ferozes ou, então, na destruição pura e simples de países relativamente desenvolvidos e prósperos.

O título desta crónica é, pois, enganador: a implantação da democracia global não pode ser feita, como alguns defendem, com novas cruzadas. Não pode tão pouco ser assumida como "missão" por um único país, mesmo que seja a maior potência mundial. Assim, não tenho grandes expectativas em relação à anunciada cimeira da democracia anunciada pelos Estados Unidos, a não ser saber se Joe Biden quer realmente inaugurar uma nova página ou apenas voltar à "América de Bush".

Por fim, e como o que está em jogo é a "democracia global", onde para a ONU?»

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7.9.21

Do fundo do baú (14)

 


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Brasil, 7 de Setembro

 



O Brasil será de novo «uma cidade a cantar a evolução da liberdade».
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Um dia perigoso para a democracia brasileira



 

«Hoje, a base de apoio bolsonarista vai para as ruas. Esperam-se grandes manifestações. É o dia da independência do Brasil e, para o Presidente Jair Bolsonaro, um momento para pôr em causa dois dos três pilares do poder democrático: o judicial e o legislativo. E paira sobre a democracia brasileira a ameaça de um golpe.

Inicialmente, as manifestações tinham como principal argumento a defesa do voto impresso. Desde 1996 que há voto eletrónico e desde 2000 que ele foi generalizado. Foi esse mesmo voto eletrónico que deu a vitória a Bolsonaro. Na altura, o agora Presidente não o considerou suspeito. Perante o seu desempenho na pandemia e as péssimas sondagens, Bolsonaro apostou em alegações infundadas de que o voto eletrónico facilitaria a fraude. E que ao recusar recuar no modo de votação, só porque o Presidente um dia acordou e achou que ele tinha deixado de ser fiável, a maioria dos deputados tornava evidente a vontade de falsear as próximas eleições. Eleições que ele sabe que provavelmente perderá.

Como em tudo, Bolsonaro segue o guião de Trump, que fez do voto por correspondência um fantasma contra a legitimidade de umas eleições que sabia perdidas. Tinha o mesmo objetivo, manter mobilizada uma base de apoio fanatizada, que o defenda investigações judiciais e lhe garanta o domínio sobre o seu espaço político, pela recusa da verdade democrática do voto. No dia em que a Câmara dos Deputados chumbou esta emenda constitucional, foi feita uma parada militar em Brasília, deixando uma mensagem subliminar sobre o futuro da democracia se esta não se vergar à vontade do Presidente.

A isto junta-se a investigação que está a ser feita pelo Supremo Tribunal Federal (STF) às centrais de produção de fake news, que envolvem a Presidência. Os apoiantes de Bolsonaro acreditam que a produção industrial, organizada e financiada de notícias falsas faz parte do exercício da liberdade de expressão e exigem a destituição de vários juízes do STF. Supremo Tribunal de Justiça e Tribunal Federal Eleitoral estão na mira dos que explicitamente defendem uma intervenção militar. O desafio à integridade de órgãos judiciais, com ameaças à segurança de magistrados, já levou alguns bolsonaristas à prisão.

Bala, Boi e Bíblia são os três pilares que sustentam o poder político de Bolsonaro. Defensores de uma linha radical securitária e de acesso generalizado de civis às armas de fogo; produtores agropecuários contra os direitos dos trabalhadores e a defesa do ambiente; e líderes evangélicos ultraconservadores foram determinantes para o golpe contra Dilma Rosseff, uma das poucas políticas brasileiras que não foi submersa em escândalos de corrupção. Foram determinantes para a eleição de Bolsonaro quando a direita tradicional se suicidou no governo de Temer. Agora, tentam destruir os pilares fundamentais da democracia, pondo em causa as funções do poder judicial e a credibilidade das eleições. E assim continuarão, pelo menos até haver uma alternativa ao regresso de Lula da Silva.

Quem acha que a extrema-direita pode ser integrada no sistema democrático tem aqui mais uma lição, como se não bastassem cem anos de História. Nos EUA, a sua passagem pelo poder acabou com a invasão do Capitólio e a democracia norte-americana só resistiu porque mais de dois séculos de vida lhe deram alguma robustez. Robustez que não tem, nem de perto nem de longe, no Brasil. A frágil democracia brasileira vive dias perigosos. Não por uma parte dos brasileiros se manifestar, mas porque a agenda destas manifestações é a do esmagamento dos valores democráticos para a sua perpetuação no poder. As ameaças têm sido cada vez mais explicitas.

A extrema-direita usa a democracia contra a democracia. Usa a liberdade para suprimir a dos outros. Usa a liberdade de expressão para calar pelo medo os que ousem resistir-lhe. Pela sua natureza, não pode governar em democracia. Pode existir, porque a superioridade da democracia é permitir que os seus inimigos se mostrem. Mas deve ser combatida quotidianamente, sem alianças, cedências ou concessões. Porque, chegada ao comando da Nação, tudo fará para destruir a ponte que lhe deu acesso ao poder. É isso que se está a tentar no Brasil. Nisto, é igual em todo o lado.»

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6.9.21

Do fundo do baú (13)

 


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Hoje, chegou a vez a Jean-Paul Belmondo

 

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Olhei para um calendário e confirmo que não estamos no dia 1 de Abril

 



«O ex-presidente da Comissão Europeia e o antigo PM italiano apoiam Carlos Moedas na candidatura à presidência da CML.»

Importam-se de repetir? Compraram um visto gold de residentes nesta cidade e não foi anunciado?
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Talvez as mulheres desistam de Deus

 


«Afeganistão: lentamente vamo-nos esquecer, é sempre assim. Esmagadas pelo arbítrio, amputadas da voz, da liberdade, da igualdade, do acesso às decisões de poder. Elas não podem. Porque não nasceram homens. Tão-somente.

Completamente absurdo, desumano. Em nome de "Deus", seres humanos completamente iguais, física e espiritualmente, são segregados porque nasceram ou assumiram uma qualquer diferença.

O Afeganistão? Não apenas. Um mundo moldado por um "Deus", ou deuses, onde o poder físico ancestral se cristalizou, ao longo dos séculos, num mandato imutável: a capacidade exclusiva de, apenas eles, interpretarem Deus (ver o extraordinário texto de ontem do padre Anselmo Borges neste jornal).

Estamos aqui: Deus só se deixa interpretar, de forma oficial, nas cúpulas de poder religioso, apenas por cabeças que incluem cromossomas XY. Como poderá Ele ter a liberdade/ousadia de dizer que não é assim?

O mundo mudou. Somos contra o racismo, a xenofobia, a desigualdade. Mas aceitamos que o poder mais fático do mundo não seja alvo de uma resposta social clara: é inaceitável a segregação religiosa.

Pensemos adiante: uma mulher Papa? Nem Francisco consegue um primeiro passo - ordenar mulheres. Não tem força para tal, como se viu no balão de ensaio chamado Amazónia. Eles mandam no Vaticano, em Riade ou Teerão, no ortodoxismo católico e em quase todo o lado, à exceção dos anglo-saxónicos protestantes. Não está nos seus horizontes olharem para a nova realidade do planeta: homens e mulheres iguais. Almas iguais, incorpóreas. Sem X nem Y.

O poder destas ordens reinantes espalha-se sempre pelos interstícios do invisível. As pessoas mais respeitáveis da sociedade fazem parte do sistema e não ousam questionar-se, umas mulheres aceitam o status quo, outras afastam-se ou submetem-se. Exato: a submissão. A tal homilia que a Conferência Episcopal Portuguesa recomenda de três em três anos - para que elas não ousem. Regozijem-se no privilégio da diferença. Aceitem ser o que são. Inferiores nos direitos. Porque está "escrito". E elas aceitaram, século após século.

Século XXI. Mudar? Lutar? Talvez as mulheres estejam a desistir de Deus.

Mulheres na História rebelaram-se e foram mortas. Ou trouxeram nova luz e foram santas. Mas não há meio termo. É entre a loucura inaceitável da voz de Deus na voz de uma mulher ou o silêncio sepulcral de uma Humanidade que amputa uma possível primavera existencial, mais repleta de fraternidade e solidariedade, através da máquina de ajuda aos pobres e excluídos.

No Afeganistão elas vão morrer para ser livres. No Ocidente desperdiçamos a liberdade de lutar pela igualdade. A religião parece não valer o esforço. As sacrossantas igrejas expulsam-nas antes mesmo de acederem à porta - não as deixam entrar como iguais. Eternamente Marias Madalenas. Até ao dia em que não fique pedra sobre pedra. Tantos monumentos vazios, tanta voz assassinada.

Em Cabul constituir-se-á a Resistência. Elas vão derrotar os talibãs. O tempo joga a seu favor. Elas já são da era da comunicação e unirão desesperos. Não estão sós e precisam dos nossos sinais de apoio. As trevas são pesadas, mas um pequeno raio de luz derrota toda uma noite. No Ocidente, no entanto, pode nem sequer chegar a haver uma tentativa de mudar as trevas de um certo cristianismo, o que é em si mesmo histórico. A segunda queda de Roma já faz parte da agenda.

Uma saída: seria tempo de se considerar intolerável que as mulheres sejam audiência passiva e ornamentadoras de santos. Chega de iconoclastia misógina. Deus também pode ser mulher.»

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5.9.21

Do fundo do baú (12)

 


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Pois, nunca fiando

 

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Dantes é que era bom?

 


1950

O Artigo 8º da «Postura» da Câmara Municipal de Lisboa é magnífico: 
«Quando não haja monta-cargas adequado ao transporte simultâneo de volumes e pessoas, será facultado o uso do ascensor aos serviçais que se dirijam a qualquer pavimento acima do segundo e desde que se apresentem decentemente vestidos e não transportem volumes que, pelas suas dimensões, peso e natureza, possam danificar a cabine ou impregná-la de cheiros incomodativos.»
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As crianças e a política de rendimentos

 


«Não há crianças pobres, há sim famílias pobres. Temos centenas de milhares de jovens adultos - que são mães e pais - que não obtêm rendimentos suficientes para saírem da pobreza.

São desempregados sem proteção, trabalhadores sem um mínimo de segurança no emprego e muitos não precários que auferem salários baixíssimos. Entretanto, a falta de infraestruturas capacitadas para prestar aos idosos os serviços de que estes carecem representa um esforço acrescido para as famílias e limita o desenvolvimento de solidariedades intergeracionais.

O primeiro-ministro (PM) anunciou no Congresso do Partido Socialista, no quadro de uma mensagem que valorizou o "Estado Social", um conjunto de medidas dirigidas à melhoria das condições de vida das crianças, nomeadamente através da criação de mais lugares nas creches, de benefícios fiscais a jovens adultos, da melhoria do abono de família e de apoios pontuais às famílias carenciadas. São compromissos positivos que se saúdam. Todavia, o PM persistiu no erro de confundir políticas que mitigam sofrimento e condicionalismos das crianças, com políticas estruturais capazes de resolver o problema. O combate à "pobreza infantil" e a melhoria sustentada das condições das crianças exigem mexer em conteúdos fundamentais da política de rendimentos, desde logo políticas de emprego e salariais.

As crianças nascem hoje numa sociedade que lhes pode propiciar ativos bem mais significativos que aqueles que tinha para a minha geração ou para a dos meus filhos mais velhos: uma esperança de vida bem maior, melhores infraestruturas, proteção e condições de socialização, melhor acesso a direitos fundamentais. Esse progresso resultou, fundamentalmente, da evolução das condições e capacidades do Estado e da valorização e dignificação do trabalho. Uma sociedade que dispõe de meios excecionais para produzir riqueza, que tem condições para prosseguir avanços tecnológicos, científicos e outros, propiciadores da sua melhor organização e funcionamento, não pode condescender com a pobreza.

Alguns dirigentes de confederações patronais, perante o mais ténue sinal de preocupação do poder político com as políticas sociais e laborais comprovadamente causadoras da pobreza e face a uma ligeira pressão para que se melhore a qualidade do emprego, logo gritam aqui-d"el-rei que estão a "diabolizar as empresas e os empresários e não olham para a economia". Afinal, que economia e que sociedade defendem?

Um Estado moderno é um Estado social de direito democrático, onde a dimensão do social não se separa do económico e é tida como mais-valia para este, e onde o direito é respeitado em todos os seus campos, designadamente no do trabalho. O "Estado social" é um compromisso coletivo que o poder político deve evidenciar sempre, até porque a sua existência não depende apenas da "vontade política". A sua construção e viabilidade obriga a todos, designadamente aos atores económicos, nos setores privado, público e social. E, hoje, é por demais evidente a necessidade de uma recuperação que é, intrinsecamente, socioeconómica.

Não se retiram crianças da pobreza continuando desprotegidos os estratos sociais e as famílias a que elas pertencem. O bom funcionamento do sistema de relações laborais e a existência de equilíbrios para a negociação coletiva continuam, por certo, a ser instrumentos eficazes para combater a pobreza.»

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