9.9.21

Para nossa eterna vergonha

 


«A saída desordenada da comunidade internacional do Afeganistão e a devolução gratuita do poder aos Talibãs é uma vergonha para a comunidade internacional e uma tragédia para os milhões de afegãos que se envolveram no processo de mudança política, social e cultural do país nos últimos 20 anos. Em situação particularmente vulnerável estão as mulheres que estudaram, trabalharam e exerceram cargos públicos. Penso especialmente nas 270 juízas: essas “infiéis” que ousaram sentar-se em frente de homens, olhá-los com autoridade e julgá-los pelos seus actos. Têm a cabeça a prémio. Ninguém sério acredita nas promessas de tolerância daqueles tresloucados barbudos com pensamentos medievais que consideram as mulheres sub-humanas e já andam por todo o lado armados com metralhadoras a matar e perseguir.

A discussão dos aspectos geopolíticos e geoestratégicos da retirada unilateral dos Estados Unidos, da irrelevância dos seus aliados e da impotência de organizações internacionais é importante, mas deixo-a para os especialistas. É sempre possível encontrar boas razões para justificar más acções. A verdade que mais me importa sublinhar é a do falhanço moral indesculpável da comunidade internacional, que abandonou pessoas a quem tinha dado esperança e incentivado a correr riscos com base em promessas de protecção que não cumpriu. É fácil agora culpar os Estados Unidos, mas não podemos apagar a responsabilidade dos outros países envolvidos no processo de estabilização do Afeganistão – entre os quais Portugal, que mandou para lá milhares de militares, deixou lá vidas e gastou milhões de euros.

De acordo com o documento “Out of the Shadows, Onto the Bench: Women in Afghanistan´s Justice Sector” da International Development Law Organization, só nos primeiros 10 anos de presença internacional no Afeganistão, as mulheres com licenciatura em direito atingiram 18% e constituíam 19,3% dos advogados, 9,4% dos procuradores e 8,4% dos juízes. Todas essas pessoas foram apanhadas de surpresa e estão agora em risco. Basta ver o que dizia a juíza presidente do tribunal de recurso para crimes de corrupção, Anisa Rasolli, em 11 de Junho deste ano: “Acredito que o sistema judicial Afegão está a recuperar a decência. Se a situação actual se mantiver, estou optimista quanto ao futuro do judiciário no Afeganistão”. Enganou-se. Dois meses depois a comunidade internacional tinha saído, o presidente afegão fugido, as Forças Armadas entregado as armas e os Talibãs tomado conta do país.

Nos dias da debandada caótica, daquelas cenas horríveis que vimos no aeroporto de Cabul, apenas umas poucas juízas puderam fugir do país com as famílias. Ninguém se lembrou de as considerar prioritárias. Que se saiba, 9 conseguiram refugiar-se no Reino Unido e umas duas dezenas noutros países, com o apoio de diversas organizações internacionais, nomeadamente as que representam juízes e juízas. Foi constituído um grupo ad-hoc de pessoas com contactos no terreno e nas entidades nacionais e internacionais relevantes para coordenar o processo de evacuação dessas mulheres e suas famílias. Há países dispostos a conceder vistos – Portugal é um deles, segundo declarações públicas de responsáveis do governo. E há condições de acolhimento que as associações internacionais e nacionais de juízes podem assegurar.

No entanto, a situação é ainda incerta e não consente optimismos. As juízas estão escondidas em casas de familiares. Os contactos pessoais (telefone, email e zoom) são muito difíceis. Os países que se disponibilizaram a conceder vistos hesitam agora por causa do problema logístico de terem encerrado as suas representações diplomáticas em Cabul e não poderem emitir e entregar pessoalmente esses documentos. (…) Uma tarefa ciclópica de êxito incerto. É essencial que todos nos sobressaltemos agora para que amanhã não nos venha a pesar na consciência a morte daquelas mulheres que abandonámos para nossa eterna vergonha.»

.

0 comments: