«No curto período de um mês, os portugueses souberam de duas boas notícias sobre a sua ciência e as suas qualificações: a 9 de Julho uma equipa de professores e investigadores do Instituto Superior Técnico colocou em órbita um satélite feito do princípio ao fim com tecnologia nacional; e, já este mês, dados da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência deram conta que, numa década, o número de doutorados a residir no país aumentou 73%, chegando à muita razoável cifra de 43 mil. O modo indiferente como os cidadãos reagiram às novidades faz muito sentido. O discurso sobre o país moderno, que investiga, que inova, que dispõe da geração mais qualificada de sempre parece conversa soviética. Tanta ciência e tanto estudo serve, afinal, para quê, se os salários continuam baixos, se a economia permanece débil e o destino parece condenado à eterna e desesperada luta por uma casa para alugar ou dinheiro para o fim do mês?
Estamos perante o caso perfeito para ilustrar o paradoxo Montenegro, que, quando foi líder parlamentar do PSD no Governo de Passos Coelho, inventou a celébre máxima do país que estava melhor, apesar de os portugueses viverem pior. Na altura, com esforço e paciência, podia-se perceber o que o actual primeiro-ministro quis dizer, como hoje se compreende que Portugal seja um país muitíssimo mais moderno e competitivo, ainda que incapaz de o reflectir na qualidade de vida. Como princípio de conversa, porém, não faz sentido nenhum dizer que a ciência e a qualificação não servem para nada. Alguém conseguiria imaginar o que seria Portugal hoje com as suas qualificações de há 20 anos? Ou, concretizando, com apenas 21% da população activa com o ensino secundário (60% hoje), com 28% das pessoas entre os 30 e os 34 anos com licenciatura (50% hoje), com 500 estudantes a doutorarem-se em 2020 (quatro vezes mais, em 2022)?
Convém reconhecer o óbvio: os portugueses de hoje são muito melhores do que o seu país. Em muitos indicadores de qualificação, estamos ombro a ombro com os alemães, mas nem por sombras podemos reflectir essas competências na comparação da qualidade do Estado com a do Estado alemão e, ainda menos, no valor acrescentado da nossa economia se posta ao lado da economia da Alemanha. Por muito mais sábios e competentes que os portugueses sejam, as suas aspirações continuam a ser travadas por uma espécie de imposto cobrado pelos arcaísmos do antigamente. A qualificação dos donos das empresas é baixa e amarra-os à condição do velho patrão. A organização do Estado preserva o centralismo da Idade Média. A Justiça permanece “catatónica” em áreas cruciais como a da administração e do fisco.
A cada Governo que acontece, lá vai surgindo um milagre capaz de resolver o nó que ata o país. António Costa, justiça lhe seja feita, jamais reivindicou para si e para os seus ministros o privilégio do milagre. Na sua maneira ronceira de encarar o presente e o futuro, pedia calma. Se os países do Leste da Europa nos ultrapassam no PIB per capita, é porque tinham mais qualificações à partida e a coisa, mais tarde ou mais cedo, lá se havia de resolver. Montenegro, a bem dizer, segue um caminho parecido ao recusar a terapia do “choque”, fosse o de gestão de Durão Barroso ou o tecnológico de José Sócrates. Tem razão ao concentrar as energias no nó górdio do país – a sua economia débil. Mas fá-lo pela facilidade. Acha que mais vale baixar o IRC do que evitar que um processo administrativo se arraste 20 anos nos tribunais. Opções.
A boa notícia disto tudo é que se o presente é deprimente, o futuro pode ser melhor. Não há dúvida de que um país com mais licenciados, mestrados e doutorados tem trunfos redobrados. De resto, há alguns sinais de que esse futuro começa a aparecer. As exportações de bens com alto valor tecnológico têm crescido e já valem 4 mil milhões de euros. O número de patentes triplicou numa década. Há áreas de futuro, como a das ciências da vida ou a aeroespacial, em que se vão ganhando competências e mercado. Se o turismo domina e representou no ano passado quase metade do crescimento global da economia, há notícias de empresas formadas por jovens doutorados que apontam alternativas para a “armadilha do rendimento médio”, feita de salários baixos e do fabrico por subcontratação, que se esgotou.
Num estudo indispensável coordenado por Fernando Alexandre, hoje ministro da Educação, para a Fundação Francisco Manuel dos Santos (“Do Made in ao Create in”), explica-se que a saída dessa armadilha exige um modelo “baseado no conhecimento, onde a inovação ocupa um lugar central”. Sem tantos doutorados, esse modelo seria à partida uma miragem. Certo? Certo, mas com apenas 8% dos doutorados a trabalhar nas empresas (a média da União Europeia é 40%), é provável que o país avance na ciência pura e se atrase na transformação capaz de as levar a criar produtos de alto valor acrescentado, capazes de pagar salários altos e impostos suficientes para financiar o Estado social. Não é um problema dos doutorados, nem das empresas. É do contexto.
Saber como se acelera essa transição devia estar no centro do debate político e no cerne das reflexões sobre o PRR e o Portugal 2030, o programa do novo ciclo de fundos europeus. Marcelo Rebelo de Sousa tentou-o, ao exigir ao anterior primeiro-ministro que ousasse aplicar esse dinheiro não para recuperar o país da pandemia, mas para o reconstruir. Mas, já se percebeu, essa reconstrução exige uma energia que não se vê em lado nenhum. A fragilidade da situação política leva Governo e oposição a concentrarem-se nos assuntos de mercearia eleitoral. O Estado perdeu competências e capacidade para desenhar estratégias. A justiça não funciona. O trânsito nos portos é um pesadelo. E o ecossistema para o investimento empresarial e para a inovação continua desfavorável. A produtividade dos portugueses ronda 60% da dos alemães e não é por serem incompetentes ou preguiçosos.
Portugal terá por isso de continuar à espera que as transformações subterrâneas, naturais mas lentas, se processem. O seu maior problema é que, se enquanto país avançou para a modernidade, não foi o único. No ranking europeu da inovação, permanece entre os moderadamente inovadores, numa triste 19.ª posição. E, mais grave ainda, enquanto a UE avançou dez pontos percentuais depois de 2017, Portugal avançou apenas 4,3 pontos. Há quem não durma em serviço. Ou quem faça mais do que insistir na discussão sobre quem dá mais aos polícias ou mais corta nos impostos.»