9.8.24

Tresanda a fim de regime

 


«Do bárbaro esfaquea¬mento de três crianças em Southport nasceu uma onda de boatos, a que hoje chamamos fake news por se assemelharem cada vez mais a verdades, tal a sofisticação industrial com que são produzidas. O alvo foram os muçulmanos, novos judeus da Europa, que podem ser insultados e coletivamente culpados sem o risco do degredo intelectual para onde justamente lançamos os antissemitas. Por imposição da lei, a identidade do agressor, menor de idade, foi protegida. Isso chegou para que se espalhasse que se tratava de um imigrante indocumentado requerente de asilo que constaria de uma lista de observação de terroristas islâmicos, mentira que atingiu rapidamente dezenas de milhões de reações nas redes. Para a campanha orquestrada de desinformação contribuíram figuras como Tommy Robinson, fundador da English Defence League, Andrew Tate, um influencer extremista, e Nigel Farage.

Da mentira viral nada espontânea nasceram manifestações violentas manipuladas pela extrema-direita, com ataques a mesquitas e fogo posto num hotel que abrigaria refugiados. Para travar a onda de desinformação, a identidade do criminoso de 17 anos foi divulgada. Filho de ruandeses, nasceu em Cardiff e não é muçulmano. No fim, a resposta do Governo trabalhista à violência foi propor a generalização do reconhecimento facial, fazendo avançar um pouco mais a política securitária tão ao gosto da extrema-direita, que tem uma vitória política, fruto da desordem que ela própria provocou. Brilhante!

Quem pense que há espontaneidade nestas ondas de desinformação deve prestar atenção ao bullying sobre Imane Khelif, uma pugilista que nasceu mulher — com útero e vagina — e sempre se identificou como tal. Tem apenas uma produção anormal de testosterona, no que não se distinguirá da baixa produção de ácido láctico de Michael Phelps ou da altura incomum de Manute Bol. A prova contra Khelif é o facto de ter sido desqualificada pela Associação Internacional de Boxe, que não é reconhecida pelo COI e é acusada de irregularidades desde que é liderada pelo russo Umar Kremlev — o regime de Putin empenhou-se nesta campanha. A provocadora mensagem da abertura dos Jogos Olímpicos não terá sido estranha a esta contraofensiva.

O poder da mentira não resulta apenas da “polarização das nossas sociedades”. Tem nomes e responsáveis que continuam a acumular poder. Enquanto a Europa e os EUA resistem militarmente a Putin, entregam as suas democracias a sinistros sociopatas como Elon Musk. Enquanto este deixa que o antigo Twitter sirva para a propagação do ódio, como aconteceu neste caso, anuncia que a “guerra civil é inevitável” no Reino Unido. Um presságio que é um desejo, porque a expansão do seu poder depende de democracias cada vez mais frágeis. Ainda assim, as culpas não se ficam pelas redes sociais. No Reino Unido, jornais como o “Daily Mail” trabalham há anos para a islamofobia e o racismo. O medo é um bom negócio.

As ondas de fake news não são desordenadas e caóticas. Não resultam da “polarização”, sendo a culpa de todos e de ninguém. Resultam de uma ofensiva organizada pela extrema-direita contra as democracias. Sim, há mentiras de todas as cores. A novidade são os poderosos instrumentos e a enorme quantidade de dinheiro ao serviço das mentiras de uma dessas cores. Não é por acaso que Trump escolheu um homem com fortes ligações a Silicon Valley para seu vice. Não é por acaso que Musk, que considera Kamala “literalmente uma comunista”, garantirá um forte apoio à campanha trumpista. O novo capital tem uma velha ideologia.

Com medo da acusação de censura, os governos não impõem às redes sociais as regras de responsabilização empresarial que se aplicam a todos os outros meios. Paralisada por dentro pelos seus inimigos, a democracia é mansa perante quem a ataca. Tivemos um bom exemplo doméstico há uma semana. Rui Fonseca e Castro, candidato de extrema-direita às eleições europeias, avisou que ia impedir o lançamento de um livro infantil sobre identidade de género, em Idanha-a-Nova. Assim o fez, na companhia de “gorilas” que entraram na sala a gritar “acabou!”, como se fossem a verdadeira autoridade e deixando claro para quem lhes queira seguir o exemplo que milícias políticas podem impor a lei. Ninguém foi apanhado de surpresa. O ex-juiz já o tinha feito no Porto e anunciou nas redes sociais quando e onde o voltaria a fazer. A GNR estava à espera, mas não o deteve. Preferiu tirar a autora da sala. Não só não travou o crime como, na prática, garantiu a sua eficácia. Como no Reino Unido, premiou-se o infrator. Porque a democracia sente-se fraca e teme os seus inimigos. Tresanda a fim de regime.»


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