Ana Gomes também considera que Vitalino Canas “não tem perfil”, e vê com preocupação a sua “ligação ao mundo dos negócios". "É muito estranho que a proposta para o Tribunal Constitucional implique uma redução do número de mulheres", acrescentou ainda a ex-eurodeputada socialista.»
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22.2.20
A falta que a vergonha faz
«Se há coisa que o episódio Marega não foi é lamentável. Pelo contrário, o maliano, ao abandonar o campo, devolveu alguma vergonha à sociedade portuguesa e a vergonha faz falta para que sejamos capazes de nos mantermos civilizados. Para já, nos estádios de futebol.
Não partilho grandes otimismos antropológicos, pelo que reconheço que o processo civilizacional depende sempre mais da nossa capacidade coletiva de controlar impulsos negativos (à cabeça a violência e a propensão hobbesiana para nos matarmos uns aos outros, mas, naturalmente, também o racismo) do que propriamente de uma convergência — que não devemos, contudo, parar de buscar — em torno de princípios morais partilhados. Norbert Elias, sociólogo de origem alemã, explicou, no ano de 1939, o “processo civilizacional” precisamente através da forma como as pessoas aprenderam a controlar os seus impulsos. Por isso mesmo, as nossas sociedades dependem de tabus, limites e vergonha para operarem. São os mecanismos sociais de repressão que nos tornam civilizados.
Luso-tropicalismo e brandos costumes à parte, Portugal é um país com mais racismo do que gostamos de reconhecer o que aliás é sugerido pelos inquéritos europeus e comprovado quotidianamente. Concedo, aliás, que o que tem feito diferença para a sociedade portuguesa é a narrativa sobre a nossa capacidade de integração e de aculturação que, apesar de tudo, inibe o racismo institucional.
A questão está aí: a vergonha de se ser racista está a dissipar-se — como a vergonha em relação a muitas outras posições moralmente inaceitáveis. Ao ponto de, pela primeira vez em 45 anos de democracia, termos uma representação parlamentar declaradamente racista. Há poucos sinais tão significativos de que perdemos coletivamente a vergonha do que termos dado, pelo sufrágio, reconhecimento institucional e, depois, consequência desse primeiro passo, maior reconhecimento mediático a um oportunista que cavalga o racismo.
O problema não está tanto nos estádios de futebol — até porque vamos ao futebol para “nos portarmos mal”, em busca de um espaço onde autocontrolamos menos as emoções. O drama é outro: a partir do mundo do futebol está-se a disseminar uma cultura em que se perde a vergonha que limita(va) comportamentos que não tolerávamos socialmente. Sinal dos tempos, hoje o futebol — território privilegiado das emoções — ocupa de forma quase hegemónica o prime-time dos canais noticiosos (num paradoxo com consequências previsíveis) e, acima de tudo, normalizámos o insulto como mecanismo de argumentação no espaço público. A crescente expressão de racismo — que era tabu — é apenas representação de uma tendência mais vasta. Devemos estar, por isso, agradecidos a um emigrante da África francófona. Com o seu gesto corajoso, veio devolver alguma vergonha à sociedade portuguesa. E a falta que ela nos faz.»
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Os bispos ignorantes que temos
«Cultura necrófila»? Mas já não se ensina português nos seminários?
NECROFILIA: Acto de violar cadáveres, utilização de cadáver para saciar desejos sexuais; uso de cadáver com finalidade sexual. Atracção sexual mórbida por cadáveres.
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21.2.20
Vasco Pulido Valente (1941-2020)
Claro que o conheci quando era ainda o «Vasquinho» para muitos dos mais próximos e andava já pelos corredores de O Tempo e o Modo, pelos da Faculdade de Letras a acabar a licenciatura com algumas angústias e pelas casas de vários amigos comuns.
Está tudo dito sobre os seus percursos, deixo aqui o primeiro texto (bem inocente…) que publicou em O Tempo e o Modo (Abril de 1963), três meses depois de este ser lançado.
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Eutanásia: e agora?
«“Embora a vida não seja referendável”, foi o secretário da Conferência Episcopal Portuguesa, Manuel Barbosa que o disse. Tem razão a cúpula da igreja: direitos fundamentais dos cidadãos não devem ser referendados, devem ser assegurados. A proposta de referendo é assim feita por quem não concorda com ela, com o intuito exclusivo de suspender o processo legislativo normal e democrático. Para a liderança da igreja católica, os fins justificam os meios, mesmo que os meios ponham em causa o dogma central da religião: a vida é dada por Deus e ninguém pode dispor dela – nem uma consulta popular o poderá fazer. O referendo à despenalização da eutanásia não faz sentido nem sequer para quem o propõe.
“Foi um debate muito participado por todos os quadrantes político-partidários, religiosos, sociais. Agora seguem o seu curso as iniciativas parlamentares”. As palavras são do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em 2018. Tem razão o Presidente, os movimentos “a favor” ou “contra” percorreram o país com debates, nos últimos 4 anos (desde que os projetos-lei foram apresentados), cumprindo o seu dever cívico de participação. A Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida esteve em todos os distritos a debater o tema. O PÚBLICO já aqui deu conta que desde 1995 tem havido propostas, debates, projetos sobre o tema. Vinte e cinco anos, portanto. É difícil encontrar tema tão debatido neste país.
Sabemos que falta agora a palavra de Marcelo Rebelo de Sousa. Poderá usar o veto político, obrigando o parlamento a reconfirmar a votação. Mas o Presidente enfrenta um dilema: quando se candidatou, garantiu que não utilizaria o veto político para afirmar as suas convicções pessoais e que este só dependerá da “análise que fará do estado da situação da sociedade portuguesa”. Ora se vetar, será apenas pelas suas convicções pessoais, pois todos os estudos de opinião realizados nos últimos anos mostram, de forma inequívoca, que a sociedade portuguesa deseja a despenalização da morte assistida. Quebrar uma promessa eleitoral a menos de um ano da sua reeleição coloca Marcelo Rebelo de Sousa numa posição difícil.
Aprovados os projetos-lei na generalidade, posto de lado um referendo que não faz sentido para ninguém e após o longo debate feito, este é o tempo de pensarmos no futuro. Como se consensualizam os projetos-lei aprovados na especialidade? O que fica de fora e o que é acrescentado? E depois, como se aplica a lei? Que mecanismos devem ser criados para garantir que os cidadãos que se encontram nas situações clínicas agora aprovadas, podem efetivamente ter acesso à antecipação da sua morte? E quem (e como) fiscaliza a aplicação da lei? Este é o debate que interessa agora e que não pode ficar apenas entregue aos deputados e aos técnicos, requer também a participação de todos.»
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20.2.20
Gratidão
Para com todos os que votaram «SIM» à despenalização da Morte Assistida. Especialmente para com João Semedo e José Manuel Pureza que me representaram e que tanto trabalharam para que isto acontecesse.
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Despenabilização da morte assistida
Esta tarde, pouco depois das 15h.
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A minha angustiante liberdade
«Não ensino a ninguém como viver a sua religião ou as suas convicções mais íntimas. Quanto a isso, sempre defendi a maior das liberdades. É por isso que me oponho ao laicismo mais radical que tenha visões uniformizadoras da República. O papel do Estado fica-se, nesta matéria, pelo dever de defender os cidadãos que estejam limitados na sua liberdade (conceito sempre difícil de definir e sempre em disputa política) pelas escolhas de terceiros e em transmitir valores que podem ou não ser aceites por cada indivíduo. Não ensino a ninguém e, por isso, exijo igual humildade dos outros.
Sou ateu e posso dizer que uma das desvantagens de o ser é a crença de que a minha vida me pertence. Sim, desvantagem. Não há nada mais solitário e angustiante do que esta liberdade. Vivo com ela sem qualquer certeza de que seja o que me convém. Pelo contrário, tenho a crescente convicção que a religião, qualquer coisa que me ligue ao passado e ao futuro e ao transcendente, me daria muito mais conforto. Por isso, não olho de forma sobranceira para os que encontraram a paz no engano, na fé ou na descoberta - chamem-lhe o que quiserem – de que há um sentido da sua vida que os transcende. Olho com um misto de estranheza e inveja. Mas as coisas são como são e a fé dos outros não se força em mim.
O respeito que tenho pelas convicções dos outros é o respeito que exijo para as minhas convicções, na medida em que as deles e as minhas não afetem a liberdade de ninguém. E a regulamentação da eutanásia tem tudo a ver com isto. Tem cada ser vivente todo o direito em acreditar que a vida não lhes pertence e não lhe cabe decidir que há um momento em que ela já não está a ser vivida. Têm outros, religiosos ou não, o direito a pensar o oposto. Têm uns o direito de recusarem participar no ato misericordioso de pôr fim a um sofrimento sem fim nem sentido para quem o sofre e outros de considerarem que esse gesto é a derradeira e mais generosa das compaixões. Importante é que os valores dos envolvidos sejam respeitados.
É claro que tudo isto tem de ser temperado. Nenhum valor é absoluto. Nem o da vida – por isso rejeitamos, ao contrário do que sucedia no passado, a obstinação terapêutica –, nem a liberdade – por isso pomos limites. A eutanásia só pode acontecer quando o doente está perante um sofrimento intolerável, um estado terminal, uma doença grave incurável. E tem de haver uma intervenção externa enquadrada na lei para que se garanta que a escolha é consciente, livre, informada e reiterada. No respeito pela liberdade e as convicções de todos. O menos mau possível numa vida em sociedade. Permitindo que eu viva a minha angustiante e solitária liberdade sem afetar as invejáveis convicções dos outros. O voto desta quinta-feira não afetará as convicções de ninguém. A proibição da eutanásia afeta as minhas.»
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19.2.20
Eutanásia – 25 anos de discussões
São necessários mais 25 anos? Lá para 2045 já estará tudo esclarecido? Mas que país…
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Um pontapé no racismo
«O que essas pessoas não percebem é que aquilo que foi extraordinário na noite de dia 16 de fevereiro não foi o facto de um conjunto de grunhos vociferarem uma data de insultos racistas; mas o facto de um jogador não ter aceite a situação como normal. Marega colocou a dignidade acima do silêncio que tem permitido a manutenção do racismo como forma de expressão tolerada nas ruas, televisões e estádios de Portugal. O seu ato mostrou como é intolerável uma situação que, de tão frequente, as pessoas não notavam. Vou reformular: nós brancos raramente notamos o racismo, porque não somos diariamente sujeitos a ele. O ato de Moussa Marega quebrou esse manto da invisibilidade consentida por muitos.
A “tolerância” mascara o conflito social e minimiza a luta na conquista dos próprios direitos. Se disséssemos em 1 de dezembro de 1955 a Rosa Parks, a mulher negra que na cidade de Montgomery se recusou a dar o lugar sentado no autocarro a um branco, como mandavam as regras da segregação, que ela procurava “tolerância”, ter-nos-ia mandado bugiar. O seu gesto, que lhe custou a prisão, provocando um conflito onde só havia sujeição, era a afirmação de um direito, não de tolerância. “Estou cansada de ser tratada como uma pessoa de segunda classe”, disse ela ao condutor.»
Nuno Ramos de Almeida
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A discussão sobre a eutanásia no mundo começou assim
«No início dos anos 70, uma mulher de 78 anos, residente na pequena localidade rural de Noordwolde, no norte da Holanda, sofreu um derrame cerebral. Ficou surda, paralisada de um lado, não conseguia falar sempre que queria e estava presa à cadeira no lar de idosos onde teve de ser internada - de outra forma caía ou para a frente ou para os lados. Em 1971, essa mulher pediu à filha, médica de medicina geral na mesma cidade, que a ajudasse a morrer. E Truus Postma injetou na mãe 200 miligramas de morfina, um bocadinho mais de morfina do que habitualmente. Os donos do lar contactaram a polícia e a decisão tomada pelos Postma (o seu marido, Andreas, também era médico, e defensor da eutanásia) chegou da pequena cidade a todo o mundo.
“Eu conheci a Truus. A mãe dela estava extremamente doente, estava muito debilitada e há muito tempo que tinha feito a filha prometer que se ficasse acamada, sem conseguir fazer absolutamente nada, sem poder comunicar, sem noção de onde estava, a ajudava a morrer. Truus apenas cumpriu essa promessa”, conta ao Expresso Rob Jonquiere, que se tornou presidente da primeira sociedade pró-eutanásia da Holanda, A Associação da Eutanásia Voluntária da Holanda, nascida em 1973, ano em que Truss Postma foi chamada a tribunal. Afinal ela tinha assassinado a mãe, segundo a lei vigente na altura. Hoje Jonquiere é diretor da Federação Mundial da Associações do Direito a morrer (WFRtDS), da qual faz parte a organização portuguesa Direito a Morrer com Dignidade.
Truss Postma não foi ilibada, isso não seria possível, mas foi condenada a uma semana de prisão, com pena suspensa, e ficou “à experiência” como médica outros 12 meses, apesar de isso na realidade não interferir na sua prática médica. “Foi a forma que os juízes encontraram de mostrar que não estavam totalmente contra o que ela fez. Mas tinham de, de alguma forma, mostrar que ela agiu contra a lei. Na sentença ficou logo patente a base da lei que haveria de ser adotada mais de três décadas depois”.
O caso teve repercussões gigantescas - e cristalizou um conceito que ainda é utilizado na defesa da eutanásia na Holanda. “Criou-se o conceito de etnosfera entre médico e doente, uma coisa inviolável, uma decisão mútua e discutida que ainda hoje, ao contrário do que as pessoas pensam, se mantém. Nenhum médico propõe uma injeção letal sem estudar o assunto e jamais a eutanásia aparece como sugestão do médico”, diz Jonquiere. Jornais de todo o mundo quiseram saber o que pensavam os holandeses, os seus médicos e as pessoas que tinham um dia sido pacientes do casal Postma. “O que aconteceu foi que muito mais gente do que anteriormente pensávamos estava de acordo com o que a Truus fez. Nos jornais e na rua as pessoas diziam coisas como: ‘quem me dera ter uma médica como ela’”, continua. Truss morreu a 24 de dezembro de 2014, com 87 anos.
Em resposta ao alvoroço mediático, o casal escreveu uma carta aberta, que mencionava as cartas pessoais que tinham recebido de pessoas de todo o país: “Das muitas cartas que nos chegaram, o que fica claro é que há muita gente a sofrer de forma inumana sem qualquer perspetiva de melhoria. Tem de haver uma outra forma”, lê-se num artigo académico de Tony Sheldon, médico norte-americano, sobre o caso.
No início dos anos 80, um outro médico aceita terminar a vida de um paciente. Entrega-se de imediato à polícia e também é ilibado, mais ou menos nas mesmas condições. O Ministério da Saúde holandês decide que não pode tratar este procedimento como sucessivos casos isolados e pede um estudo anónimo junto de todos os médicos do país. “Confirmou-se o que Truss já me tinha dito, que muita gente o praticava, mediante condições restritas e em segredo”. O processo legislativo começou aí, mas demorou mais de 20 anos até ser um assunto político.
Rob Jonquiere considera que o caso da médica que aceitou eutanasiar a mãe mostrou que a sociedade holandesa como um todo “estava culturalmente disposta a aceitar esta forma de morrer - a aceitação das enfermidades é ‘normal’ para nós”.
Mas pede atenção para que não se confunda a questão recentemente levantada pela esquerda libertária holandesa (principalmente o partido D66) de que toda a gente com mais de 70 anos deveria ter acesso a um comprimido para poder acabar com a vida com o alargamento da lei da eutanásia: “Os oponentes dizem que é um problema, que é uma rampa deslizante, mas não é porque não é eutanásia, não é administrado pelo médico e não tem nada a ver com a relação inquebrável entre médico e doente”.
Ainda não se sabem exatamente os contornos da lei que será proposta mas fala-se em treinar pessoas que não sejam médicos e que possam passar a tal receita do comprimido para evitar que os médicos possam dizer que não - muitos diriam. “Isso é um mundo que já não tem nada a ver com a nossa lei da eutanásia, não se misture. Se isso chegar a ser aceite, será uma lei à parte”, diz.
Na experiência que adquiriu ao longo de décadas na prática da medicina, Jonquiere garante que a vida de um doente que sabe que pode escolher a altura de morrer melhora muito depois de essa certeza lhe ser dada. “Eles pensam: ‘Se isto se tornar muito mau eu posso morrer’. E a sua qualidade de vida melhora bastante, porque esse medo da forma como se morre, da agonia, desaparece. Só um terço das pessoas que já têm a eutanásia assegurada vão para a frente com ela. As pessoas não querem morrer”.»
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18.2.20
E quanto ao Tribunal Constitucional…
«A geringonça acabou mesmo e (mais uma) prova disso é que o PS não está a tentar nenhum acordo com o Bloco de Esquerda, como fez em 2016, para a escolha dos juízes do Tribunal Constitucional. Nem mesmo quando está em causa a substituição de Maria Clara Sottomayor, que tinha sido uma escolha do BE saída desse último entendimento. O Bloco de Esquerda confirma que não houve contactos da parte do PS nesse sentido, mas não vê motivos para o PS fazer diferente desta vez. Em todo o caso, espera para ver: “Quando houver nomes, logo se vê”.
Nessa altura, o PS entendeu-se com o PSD (porque é preciso maioria de dois terços para aprovar os juízes indicados pelo Parlamento), mas também com o Bloco de Esquerda, já que corriam os tempos da geringonça e António Costa concedeu ao partido liderado por Catarina Martins a possibilidade de escolher um dos juízes da sua quota. (…)
Tendo em conta que saem dois juízes da quota da esquerda, entram dois do mesmo lado, mas desta vez sem o Bloco sentado à mesa das negociações com o PS. Foi isto mesmo que confirmou o Observador junto de fonte da direção parlamentar socialista que, quando questionada sobre se os socialistas ainda iam sentar-se com o BE para a escolha destes juízes, respondeu prontamente que “não”, que se trata de “uma nova legislatura”, onde já não há qualquer acordo escrito entre as partes, e esta é “uma escolha do PS”.»
P.S. – Para eventuais distraídos: a nova composição do TC pode ser muito importante se / como / quando uma lei aprovada pelo Parlamento sobre a despenalização da morte assistida vier a lá chegar.
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Os direitos não obrigam a nada, a sua ausência é que nos limita!
«A não punição da eutanásia, em circunstâncias especiais e clinicamente definidas, exige um debate sério e não demagógico, dissecando todos os argumentos com dignidade e respeito pelas opções de cada ser humano. Trata-se de um debate civilizacional que não pode mais ser adiado em nome da dignidade e do respeito pelo sofrimento humano.
Apesar dos avanços da medicina e dos cuidados paliativos prolongarem a vida para o dobro da idade de há um século atrás, não podemos ignorar que há pessoas para quem o diagnóstico é, infelizmente, irreversível e que estão em enorme sofrimento. Não podemos ignorar que há limites que a medicina não resolveu!
Não podemos, em nome da dignidade da pessoa humana, negar o direito a desistir, quando alguém se encontra numa situação de doença irreversível, em grande sofrimento e com perda de autonomia. O que se pretende fazer é conferir o direito à pessoa para ter liberdade, em circunstâncias muito precisas e devidamente acompanhadas e testadas clinicamente, e um espaço de decisão legalmente reconhecido quanto à sua própria morte.
Se viver é um direito e proteger a vida é um dever do Estado, que ninguém pode contestar, contesta-se que seja negado o direito à renúncia de uma vida quando o próprio considera que a sua vida não tem a dignidade necessária para prosseguir. Não respeitar esse direito, quando o próprio o quer usar, com regras estritamente definidas, em estado de consciência e de forma reiterada, é defender uma cultura de imposição que contraria a dignidade da pessoa humana constitucionalmente garantida.
Defender a descriminalização da morte assistida é defender a vida e defender que se respeitem as escolhas de cada ser humano. É defender uma cultura que não oprima as opções do indivíduo, quando, de uma forma consciente, informada e reiterada, pede para que a sua morte física inevitável, em sofrimento incomensurável e extremo, com lesões definitivas ou doença incurável e fatal, seja abreviada. Trata-se de ajudar num ato, em certas e definidas circunstâncias, que resulta em absoluto de uma decisão individual, livre e esclarecida.
Quando se sente que a autonomia e as experiências físicas e emocionais estão postas em causa, não é justo negar a alguém o direito a não querer estar nessa situação.
Alega-se que existem muitas formas de controlar a dor. Mas os efeitos secundários destes fármacos são por vezes tão intoleráveis como a dor que querem controlar. Mas não é só uma questão de dor, é uma questão de qualidade de vida. Ter mais vida com perda de qualidade é algo que muitas pessoas não querem, e esse direito não lhes pode ser negado!
Com esta Lei não se pretende impor a ninguém que, mesmo reunidas essas circunstâncias todas, recorra à eutanásia, mas sim que não seja negado o direito a quem a ela quiser recorrer.
Esta Lei não impede ninguém do acesso aos cuidados paliativos, que deverão continuar a ser ampliados com acesso universal a quem deles necessitar. Esta Lei apenas pretende descriminalizar quem, em certas circunstâncias bem definidas, quiser recorrer à eutanásia para travar um sofrimento horrendo ou uma vida sem autonomia e dignidade. Os direitos não nos obrigam a nada, a ausência deles é que nos limita!
É da mais elementar justiça, tal como já aconteceu com a despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez, pôr termo a uma situação de ilegalidade, onde se ajudem as pessoas a morrer, às escondidas e sem qualquer controlo, à margem da lei, com riscos de denúncia e consequências profissionais gravíssimas.
Como dizia João Semedo, a doença é que tira a vida, não é a eutanásia!»
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17.2.20
Dar ou não palco a um racista
Embora Miguel Sousa Tavares tenha rebatido sistematicamente as afirmações de André Ventura, é mais do que discutível, na minha opinião, que a TVI lhe tenha dado hoje palco, numa longa entrevista durante o telejornal. É isso que ele quer: estar sozinho de um dos lados da barricada, ser o único contra tudo e contra todos.
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Isto, sim, é bom jornalismo
Bento Rodrigues na SIC Notícias.
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Cuidados paliativos, morte assistida e peixe frito
O argumento segundo o qual um país só devia descriminalizar o suicídio assistido e a eutanásia depois de ter assegurado uma cobertura de cuidados paliativos no país lembra-me sempre uma velha anedota.
Bate à porta um pobrezinho.
- Minha senhora, dá-me qualquer coisinha que estou cheio de fome?
- Gosta de peixe frito de véspera?
- Se gosto!
- Então venha cá amanhã que acabei de o fritar agora.
O pobrezinho morreu de fome nessa noite.
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Marega no país que o merece
«Sou do país em que, ainda há meses, uma varina, no Lavadouro da Afurada, frente à cidade do Porto, abanava as ancas e o avental, suspirava "ó o Marega...", e gritava: "Coisa mai linda não há!" E eu, sinceramente admirado: o Marega, lindo? A varina rapou do jornal O Jogo e beijou-o todo na fotografia da capa. Sou o miúdo que passeava com a mãe pela Avenida dos Aliados, 1958. Cruzou-se connosco um anjo negro vestido como um príncipe, reconheci-o. Empanquei, vidrado: Miguel Arcanjo, o defesa central do clube que nem era o meu, mas o do meu pai, o Porto. Ele pôs-me a mão na cabeça, a minha mãe sorriu-me e sorriu-lhe, eu continuava nas nuvens. Mas ainda disse: "Ele também é de Angola...", a minha mãe não lia o Ídolos do Desporto. E ficaram a falar da nossa terra, eles; eu guardando no cabelo o afago.
Sou do país que foi ensinado pelo mulato Mário Coluna. No campo mandava ele, era ele o senhor de todos, de todos e também dos mais brancos que ele, quando nos estádios de toda a Europa quase não havia jogadores negros e certamente nenhum capitão não branco, só ele. Também ainda assisti ao silêncio religioso que precedia um livre de Eusébio, na Luz, mesmo daqueles de 30 metros, que exigiam a fé que só emprestamos aos nossos heróis. Sou herdeiro do lugar, ainda antes - anos 30 e Nuremberga fazia leis celeradas - Portugal se fez país de futebol, à boleia do duelo entre dois amigos goleadores, o sportinguista Peyroteo, branco africano, e o benfiquista Espírito Santo, negro lisboeta.
Enfim, sou mais um de tanta, tanta gente grata que se confirmou como pai ou irmão, em todo o caso inequívoco eterno admirador de um rapaz de rastas e trapalhão, negro como noite luminosa que surgiu numa tarde chuta caralho. Obrigado, obrigado, Eder para todo o sempre... Então, quero dizer que sou desses, das pessoas decentes que, das cores, posso ser minucioso em têxtil, mas sobre pele sou daltónico. Em primeiro lugar, porque sim, e acabou a conversa.
E, em segundo lugar, segue explicação extra porque temos de ser piedosos com os imbecis profundos: a sério, meu, és racista com negros e em Portugal, e é num estádio de futebol que tu o vais proclamar? Vais declarar a inferioridade deles, aqui, neste país tão conhecedor de personagens de lenda, por onde passaram as fintas do Dinis Brinca na Areia, tonitruaram os chutos do Matateu, deslizou a elegância do Jordão e, já agora, o Marega iludiu tanto adversário fingindo-se falso lerdo? Os negros, inferiores! - e vais dizê-lo na ópera onde eles são tenores? Meu, metes as mãos pelos pés e isso em futebol é falta.
Experimenta gritar-lhes que eles nunca irão à Lua - pelo menos, exemplos a desdizê-lo eles, por enquanto, não têm... Mais prudente foste quando, estou a adivinhar-te, cabelo seboso, marreco, a cheirar da boca e com ramela deves ter passado a noite dos Óscares a rosnar para o televisor: "És feio como o caraças, Brad Pitt!" Ao menos, aí, escolheste o teu quarto solitário para insultar, escapando ao sorriso sarcástico, se te ouvissem, de todas as mulheres com quem já te cruzaste na vida. Mas não, ontem, foste para um estádio de futebol expor a tua lamentável inveja contra um negro.
E no Minho! Onde um clube já há 60 anos tinha três irmãos negros na equipa, João, Jorge e Fernando Mendonça, três senhores. Um deles, o médico Jorge Mendonça, seria fundador do sindicato dos Jogadores de Futebol de Espanha e artista saudoso no Atlético de Madrid e no Barcelona... Passam-se décadas e dobra-se o século, e ontem, em Portugal, um futebolista negro marcou um golo aos 71 minutos, em Guimarães. E contra o maliano Marega houve estes sons: "Macaco!" e "chimpanzé!". Por palavras e também guinchos e sons guturais de símios. Quer dizer, considerando que o futebol foi criado há 157 anos e sabendo-se que o último antepassado comum dos macacos e homens viveu há 28 milhões anos, segundo as claques do Vitória de Guimarães Marega precisa de esperar, façam as contas, 27999847 anos para ele perceber o que é o association football. Antes, levas com cânticos: Ô-ô-ô-chimpanzé... Ô-ô-ô-macaco...
O futebolista Marega enxofrou-se e levou com o cartão amarelo do árbitro. Marega pediu para sair do campo. Da bancada da claque: "Macaco!" Marega continuou enxofrado e a querer sair do campo. Daquela bancada da claque: "Chimpanzé!" Volto à minha tese: depois de tanto ano com os negros a demonstrar que são tão bons, tão maus e tão assim-assim quanto os brancos, houve, no estádio de Guimarães, ontem, uns sub-humanos a serem o que são.
Quanto aos homens vi-os de dois tipos. Árbitros de cabeça perdida, dirigentes e treinadores de cabeça perdida, adeptos (dos dois clubes) de cabeça perdida, comentadores televisivos de cabeça perdida, polícias de cabeça perdida e jogadores do Vitória e do FCP de cabeça perdida, isso de um lado. Do outro, vi o Marega, outra vez enganando-nos com as aparências, gesticulando e gritando, e serenamente fazendo o que havia para fazer: assim não jogo.
Ah, se Pinto da Costa se levantasse e se fosse embora da bancada de honra! Ah se o guarda-redes do Guimarães abandonasse o campo agarrado ao companheiro adversário! Ah se o árbitro Luís Godinho rasgasse o cartão amarelo e o vermelho também, e mostrasse a Marega o cartão branco, o de fair-play, como há dias outro árbitro mostrou a um jogador infantil e nobre, que o avisou ser falso um penálti contra o adversário! Ah se a multidão saísse do estádio quando o Marega entrou no balneário! Ah se o presidente do Guimarães chorasse! Ah se um radialista relatasse: "Marega saiu e eu calo-me"! Ah se os gestos claros e límpidos de Marega causassem a vaga que mereciam...
Esta noite eu teria sonhado com a mão do Miguel Arcanjo a dizer-me olá, e não sonhei. Mas o Marega que apareça estes dias pela Afurada e haverá uma varina a beijá-lo e a resgatar-nos.»
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16.2.20
Reflexão nos dias que passam
Há pessoas que saem de partidos (ou de igrejas), mas que nunca conseguem que esses partidos (ou essas igrejas) saiam delas.
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A eutanásia deve ser referendada? (Não)
«Os partidários do referendo à despenalização da morte assistida são sinceros: não é que queiram genuinamente o referendo, alguns até defenderam recentemente o contrário, mas este serve para tentar empatar a decisão do Parlamento. Quem nunca antes se lembrou da superioridade da democracia referendária e agora lhe tece hinos é também quem critica as propostas de despenalização da morte assistida porque têm liberdade a mais (o “homicídio a pedido”) e liberdade a menos (a “decisão pelos médicos”). Tudo confusão, tudo jogo político, tudo taticismo.
Contra o taticismo, há princípios. Primeiro: os direitos das pessoas não se referendam. Se se tivesse referendado o direito ao voto das mulheres quando as sufragistas lutavam contra o patriarcalismo atávico, ou o direito à greve quando o patronato o recusava com violência bruta, toda a dificuldade ao seu reconhecimento teria prevalecido. Segundo: o que se decide no reconhecimento de um direito não é só se sim ou não, é sobretudo como. O que está em causa na despenalização da morte assistida não é sim ou não à eutanásia em abstrato, mas sim em que condições concretas e detalhadamente enunciadas pode a antecipação da morte a pedido de alguém ser despenalizada. Esta minúcia e este rigor exigidos para um tratamento sério de uma questão complexa não cabem numa pergunta de referendo.
Ao contrário da agitação dos taticismos desesperados, creio que deve prevalecer a serenidade e o rigor. O debate sobre a despenalização da morte assistida existe há muito tempo em Portugal. Ao legislador cabe agora a responsabilidade de decidir por uma lei que amplie o espaço da tolerância e não permita que o preconceito condene quem não quer a um sofrimento inútil. Este é o momento de decidir: escolhemos a prepotência de impor a todos um modelo de fim de vida que é uma violência insuportável para muitos ou, recusando imposições, decidimos respeitar a escolha de cada pessoa sobre o fim da sua vida?
Só uma lei elaborada com o rigor, a prudência e sentido de equilíbrio pode responder com seriedade a um desafio tão complexo. É esse passo civilizacional que podemos dar nos próximos dias: respeitar a possibilidade de antecipação da morte daqueles a quem a doença e o sofrimento insuportável impedem uma vida digna aos seus olhos e, com garantias de rigor e controlo, definir as condições em que essa decisão pode ter lugar. Sim, alargar o campo da tolerância é uma questão de dignidade.»
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