«Os partidários do referendo à despenalização da morte assistida são sinceros: não é que queiram genuinamente o referendo, alguns até defenderam recentemente o contrário, mas este serve para tentar empatar a decisão do Parlamento. Quem nunca antes se lembrou da superioridade da democracia referendária e agora lhe tece hinos é também quem critica as propostas de despenalização da morte assistida porque têm liberdade a mais (o “homicídio a pedido”) e liberdade a menos (a “decisão pelos médicos”). Tudo confusão, tudo jogo político, tudo taticismo.
Contra o taticismo, há princípios. Primeiro: os direitos das pessoas não se referendam. Se se tivesse referendado o direito ao voto das mulheres quando as sufragistas lutavam contra o patriarcalismo atávico, ou o direito à greve quando o patronato o recusava com violência bruta, toda a dificuldade ao seu reconhecimento teria prevalecido. Segundo: o que se decide no reconhecimento de um direito não é só se sim ou não, é sobretudo como. O que está em causa na despenalização da morte assistida não é sim ou não à eutanásia em abstrato, mas sim em que condições concretas e detalhadamente enunciadas pode a antecipação da morte a pedido de alguém ser despenalizada. Esta minúcia e este rigor exigidos para um tratamento sério de uma questão complexa não cabem numa pergunta de referendo.
Ao contrário da agitação dos taticismos desesperados, creio que deve prevalecer a serenidade e o rigor. O debate sobre a despenalização da morte assistida existe há muito tempo em Portugal. Ao legislador cabe agora a responsabilidade de decidir por uma lei que amplie o espaço da tolerância e não permita que o preconceito condene quem não quer a um sofrimento inútil. Este é o momento de decidir: escolhemos a prepotência de impor a todos um modelo de fim de vida que é uma violência insuportável para muitos ou, recusando imposições, decidimos respeitar a escolha de cada pessoa sobre o fim da sua vida?
Só uma lei elaborada com o rigor, a prudência e sentido de equilíbrio pode responder com seriedade a um desafio tão complexo. É esse passo civilizacional que podemos dar nos próximos dias: respeitar a possibilidade de antecipação da morte daqueles a quem a doença e o sofrimento insuportável impedem uma vida digna aos seus olhos e, com garantias de rigor e controlo, definir as condições em que essa decisão pode ter lugar. Sim, alargar o campo da tolerância é uma questão de dignidade.»
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