«Há muito que evito ir à Baixa de Lisboa, mas, neste dia, resolvi arriscar. E inevitavelmente encontrei o que receava: na Rua das Portas de Santo Antão, uma multidão de turistas segue um guia que debita para um microfone com alto-falante as suas sábias curiosidades sobre o local. Apenas metade do seu rebanho o ouve, mas todos os outros transeuntes, incluindo os que estão nas esplanadas, são obrigados a suportar o assédio sonoro. No meio da confusão, passam bicicletas de serviços de entrega de comida e trotinetas ziguezagueiam na zona pedonal. Numa esquina, vários “vendedores ambulantes” oferecem abertamente marijuana a quem passa.
Nas outras ruas do famoso Centro Pombalino, nem sombra de lojas com tradição; em vez disso, três lojas de bugigangas, um kebab, um expresso-lab, estúdios de tatuagens e de unhas, bistrôs, lojas de fast-food, barbearias, hotéis, algumas lojas vazias, cadeias de marcas internacionais e, ao longe, no cais, um cruzeiro monstruoso, erguendo-se sobre todos os edifícios.
Atravessar as ruas é impossível, o trânsito insuportável com filas permanentes em que cada segundo carro é um TVDE e, pelo meio, dezenas de tuk-tuks, mais o toque insistente do eléctrico porque os outros veículos estão a bloquear os carris. Afinal, a célebre Lisboa é isto? Sim, infelizmente, actualmente é.
Em cidades como Amesterdão, Veneza, Barcelona ou Dubrovnik há muito se reconheceu que, embora este tipo de turismo de massas e de baixo custo possa aumentar o PIB, ele tem um impacto negativo, tanto no quotidiano dos habitantes locais e na qualidade dos serviços dessas cidades quanto na sua cultura e no seu carácter genuíno.
Já em Lisboa, os decisores políticos, independentemente da sua orientação, continuam a apostar incondicionalmente em “mais turismo”. Por exemplo, a câmara municipal acaba de aprovar mais dois novos hotéis. A nível nacional, o secretário de Estado do Turismo declarou que o Governo espera que, em 2033, o turismo represente 20% do PIB e gere 56 milhões de euros de receitas e 1,2 milhões de empregos. O que nunca é mencionado nestes cálculos milionários são os custos directos e as externalidades dessas receitas, nem quem beneficia dos seus lucros, nem quantos dos empregos são sazonais e precários, dependendo, em muitos casos, de mão-de-obra imigrante.
É incompreensível que a política de turismo em Portugal continue a ser determinada por pessoas de vistas curtas e gananciosas, indiferentes às consequências negativas já bem identificadas e que estão a ser combatidas em várias outras cidades, como Amesterdão e Paris. Até organizações reconhecidas, como a OCDE, já alertaram para os efeitos negativos da sobrecarga turística. Segundo o economista e professor do ISCTE Ricardo Paes Mamede, “alguns dos problemas decorrentes de um crescimento excessivo do turismo são evidentes e bem conhecidos de toda a população. A OCDE alerta para aspectos como as pressões sobre os preços do alojamento (...), sobre as infra-estruturas e os serviços colectivos (traduzindo-se, por exemplo, na sobrelotação dos transportes públicos ou na acumulação de lixo nas zonas mais frequentadas) e sobre o ambiente (aumentando a poluição e pondo em causa a sustentabilidade dos ecossistemas e a biodiversidade)".
Mas voltemos à descaracterização de Lisboa e à sua transformação em Disneylândia. A proliferação das lojas de bugigangas, com 1-2 vendedores asiáticos mas desertas de clientes, é outra chaga aberta no coração da cidade. Que, por trás destas lojas de fachada, existe um negócio totalmente diferente, é óbvio. Só às autoridades competentes, desde a AIMA, à Autoridade de Inspeção do Trabalho (ACT), à Segurança Social (SS) e à AT, é que tudo parece normal. Lojas com localização privilegiada e rendas elevadíssimas, com vários empregados ao balcão, e que não geram receitas significativas são realmente a coisa mais natural do mundo, certo? Porque haveriam as entidades de levar a cabo uma fiscalização concertada?
E que dizer dos produtos dessas “lojas”? Alguns nem sequer têm a indicação obrigatória de origem e, quando têm, são, na maioria dos casos, fabricados na China (ou PRC). Ou seja, artesanato supostamente português, “recordações de Portugal”, feitas por mão-de-obra barata na Ásia, para ser vendido como quinquilharia barata, apesar dos custos de transporte.
Com a uniformização do centro histórico, tudo se torna cada vez mais parecido com o que existe nos países de origem dos turistas, até que estes se comecem a perguntar, afinal, porque vir a Lisboa?
É extremamente triste assistir à alienação das cidades e dos seus centros históricos por governos e autarquias, sem a preocupação de garantirem que as cidades se mantêm habitáveis, primeiro para os seus habitantes e depois para os visitantes.
É verdade que tem razão quem pergunta: mas sabe como era a Baixa de Lisboa há 20 anos? Sem dúvida, ninguém quer voltar a esse tempo de prédios fantasmagoricamente degradados. Mas dar rédea solta a esta evolução, com base no lema “o mercado resolve tudo”, está a tornar as cidades num cenário oco e a desprovê-las de alma, ao expulsar os seus habitantes para as periferias.
Há que aprender com os bons exemplos, e eles existem. É o caso de Viena, onde o desenvolvimento da cidade é feito no interesse dos seus habitantes, com uma visão de longo prazo. Cerca de metade da população vive em habitações sociais ou noutras formas de habitação subsidiadas e não faltam investidores privados que queiram construir estes apartamentos. Não é por acaso que Viena é regularmente classificada como uma das cidades mais habitáveis do mundo. E nem por isso a capital austríaca deixou de ser uma das cidades mais atractivas para turistas.
Basta haver vontade e visão. Infelizmente, as últimas medidas anunciadas pelo Governo apontam para o contrário.»