24.8.24

Enterrar o mito do colonialismo suave

 


«O PÚBLICO resolveu contrariar o espírito da silly season com duas grandes reportagens sobre o racismo em Angola e Moçambique durante a época colonial.

Sem esgotar o tema, tarefa impossível, estas reportagens dão pistas para reflexão impossíveis de ignorar. Evitando o militantismo e o sensacionalismo, o que ali é testemunhado abala irremediavelmente a estabilidade do mito do “colonialismo suave” português.

O mito do colonialismo suave português, infundido eficazmente desde inícios do século XX, perdura até hoje na nossa sociedade, como uma anestesia colectiva que nos permite um confortável alheamento face a uma sucessão de factos incómodos da nossa história, uma história feita da narrativa de glórias mais ou menos verosímeis para nos redimir da mediocridade do presente. Há verdades na construção deste mito, mas são sempre meias-verdades.

O colonialismo português foi diferente do holandês, do inglês, do francês, do alemão ou do italiano, mas estes também foram diferentes entre si, e diferente de um mau não quer dizer bom. Portugal promoveu heróis populares negros, como o Duo Ouro Negro, o Eduardo Nascimento ou o galáctico Eusébio, o que é verdade e foi simbolicamente importante à época, mas não permite que se confunda a aceitação individual com o racismo abstrato, tendo estas promoções seletivas sido um importante instrumento de política externa do Estado Novo. No mundo existiam brancos e pretos, e os portugueses criaram os mulatos, o que é mais ou menos verdade, não faltando as mais exaltadas odes à mestiçagem e a este suposto espírito universalista português, esquecendo que de facto a crua realidade é que muita da mestiçagem é fruto da violação e da subjugação da mulher indígena, havendo um anátema terrível sobre os mestiços filhos de pai preto e mãe branca. Estes são apenas alguns dos tópicos distorcidos, geralmente acompanhados do relato de um ou outro preto numa esplanada de Lourenço Marques ou num cinema de Luanda.

Acredito em muitos relatos bem-intencionados de gente que viveu nas maiores cidades do Ultramar e que recorda uma evolução e maior e mais humana partilha do espaço com os nativos. Acredito que as populações urbanas mais jovens e mais cultas começassem a trilhar um caminho de redução da discriminação. Acredito que, no contacto com o caso particular, a relação humana entre diferentes fosse criando os laços afectivos naturais, que levam a maior consideração do outro e respeito. Acredito, enfim, que tenha havido um grande número de patrões brancos amicíssimos dos seus criados pretos, mas não conheço um caso de patrões pretos com criados brancos. Tudo isto é muito pouco face a tudo o que não deixamos que perturbe o mito de sermos bons colonizadores. Não há bons colonizadores.

Esta catarse colectiva importa, porque a verdade importa e só a verdade faz justiça. Sim, qualquer potência colonial é devedora de desculpas históricas aos povos que colonizou. Sem teatralidade, sem esquecer o contexto histórico, que não desculpa, mas explica muita coisa, essencialmente, sem dividir mais. Estes momentos só servem se forem momentos de crescimento, de reflexão crítica, mas criativa e criadora. Em suma, se conseguirem fortalecer mais os laços entre os povos em causa e não fomentar a divisão. A este propósito, tivemos recentemente declarações de enorme sabedoria do Presidente de Angola, João Lourenço, em profundo contraste com as do Presidente português, num momento pouco edificante de adesão à agenda divisionista e revanchista de uma corrente agitadora e minoritária.

Regresso onde comecei, estas reportagens do PÚBLICO não nos dizem nada que nós intimamente não saibamos, mas têm o profundo mérito de nos confrontar com discursos ordenados e na primeira pessoa, com uma narrativa bem estruturada e coerente. Não há como escapar. Não, não foi um colonialismo suave. Não, não foi bom, a não ser para a potência colonial. Não, não devemos continuar a perpetuar uma mentira que nos impede de crescer enquanto povo.»


1 comments:

António Alves Barros Lopes disse...

Hão-de me dizer onde estão os brancos no governo de Angola.
E ao mesmo tempo onde estão os índios no governo dos EUA.