13.9.25

Azul, mas este tinha escapado

 


Vaso de vidro Cobalt Papillion, de formato ovóide com pescoço afilado e borda alargada, decorado com sobreposição botânica prateada sobre fundo azul iridescente. Início do século XX.
Loetz.

Daqui.

Gaza

 


«O Exército israelita afirmou este sábado que mais de 250.000 habitantes de Gaza já abandonaram a cidade em direção ao sul do enclave devido aos bombardeamentos israelitas, às ordens de deslocamento forçado e à ameaça de uma invasão terrestre.»


Jean-Luc Godard

 


Três anos sem ele.

«Qu'est ce que je peux faire? J'sais pas quoi faire! Qu'est ce que je peux faire? J'sais pas quoi faire! Qu'est ce que je peux faire ? J'sais pas quoi faire!»



Moedas: Mentir como modo de vida

 


Falsificar o passado para “ganhar” o presente

 


«Uma das guerras culturais em que a direita radical é mais débil é a de mudar a história, censurando e cancelando alguns aspectos, recriando o passado e tentando criar uma história ideológica e política que não suporta o mínimo de escrutínio factual, logo, científico. É uma política que, dos EUA de Trump à Rússia de Putin, se tornou uma componente essencial da propaganda legitimadora da direita, que tem à cabeça o problema de não ter outra história que não seja terrível e que, por muito que se esforcem, é inaceitável pela opinião pública democrática.

O problema da direita radical portuguesa é da mesma natureza: ninguém se atreve a glorificar às claras Salazar, ou a ditadura do Estado Novo, ou a Guerra Colonial. Sem história, com uma memória sinistra, há que encontrar mecanismos de falsificação/substituição que criem momentos épicos que sirvam a propaganda política.

Não é que não tentem. Alguns tentam glorificar o Estado Novo com uma espécie de escola assente em variantes da tese de “como era bom Mussolini porque fazia chegar os comboios a tempo”, e há, como é óbvio, uma minoria muito minoria que acha que o que precisamos é de um novo Salazar, mas nem num caso nem noutro tiveram ou têm muito sucesso. O 25 de Abril permanece ainda uma memória politicamente viva, por boas razões, e a tese mussoliniana dos comboios defronta praticamente não só toda a historiografia portuguesa, como a consciência de que, entre 1926 e 1974, se viveu, com excepção da URSS, a mais longa ditadura da Europa, com todo o seu cortejo de violências, iniquidades e corrupção. Uma e outra coisa são suportadas pela ciência da história e pela moral cívica e democrática. E, por isso, esta guerra cultural não foi vencida pela direita radical.

O que é que sobra quando se perde na opinião? Usar a força do Estado e do poder político para não só impor um “passado” fictício, aceitável a quem não tem passado apresentável, como usar esse exercício para a luta política e ideológica. É o que revela a resolução do Conselho de Ministros sobre o 25 de Novembr

o. É o 25 de Novembro comemorável? Sem dúvida, se for o que aconteceu e não a falsificação que por aí passa como sendo história. Querem fazê-lo? Muito bem, desde que os “heróis” sejam Costa Gomes, Melo Antunes, Ramalho Eanes, Vasco Lourenço, o Grupo dos Nove, Mário Soares, o PS, e não só Jaime Neves, mas também. Que se fale dos dois golpes, o de 25 da ala esquerdista das Forças Armadas, e o de 26 com a tentativa de ilegalizar o PCP. Ambos têm um papel histórico essencial, que é, mais do que consolidar a democracia, evitar a guerra civil em Portugal. Não foi a “comuna de Lisboa”, nem a acção do PCP que foram os grandes riscos do 25 de Novembro, foi o choque com os militares esquerdistas, ligados ao Comando Operacional do Continente (Copcon) e a alguns sectores gonçalvistas (mas não a todos), que, se tivesse expressão armada significativa, teria provocado um conflito que arrastaria os civis e seria particularmente destrutivo, inclusive para a democracia. Nessa contenção participou o PCP, que, como de costume, tem sempre um pé dentro e outro fora, mas o de dentro foi muito relutante, e rapidamente vieram os dois para fora. Há documentação histórica suficiente e estudos sólidos que negam a ideia do 25 de Novembro como um “golpe do PCP”, mas esta mistificação terá sem dúvida um papel nas comemorações.

Mas, se a 26 de Novembro se ilegalizasse o PCP, teríamos igualmente um conflito próximo de uma guerra civil, que, repito, seria igualmente destrutivo para a democracia. Foi isso que a acção militar conduzida pelo Presidente da República, com a sua cadeia de comando eficaz, impediu, e foi isso que homens como Melo Antunes travaram ao defenderem a democracia plural e a inclusão dos comunistas no sistema. Querem homenagear o 25 de Novembro? São estes homens a honrar e a direita radical quer excluí-los.

A resolução ministerial tem muita coisa de inaceitável. Uma é ter-se entregue ao CDS, via ministro da Defesa, as comemorações. Porque é que uma comemoração desta natureza tem a ver com a “Defesa”, não só pelo topo, mas também pela composição dos seus órgãos? Depois, quando se começa a falsificar a história, vai-se cada vez mais longe. Por que razão as primeiras eleições democráticas são as de 1976, e não as eleições cruciais de 1975, aquelas que mais corresponderam à vontade dos portugueses e cujos resultados foram fundamentais para mostrar que, uma coisa era a “rua”, outra o voto? É este manto de legitimidade eleitoral que explica tudo, do Grupo dos Nove à repressão da revolta esquerdista de 25 de Novembro. Eu percebo por que razão “desaparecem” as eleições de 1975: não se pode andar a dizer que havia uma “ditadura” no PREC e admitir que as eleições foram totalmente livres. Ao desvalorizar a eleição de 1975, a direita radical junta-se a todos os que, na época, se incomodaram com os seus resultados, a começar pelo PCP.

Não é muito difícil de perceber pela resolução que o 25 de Novembro é equiparado ao 25 de Abril, e que no processo de consolidação da democracia lhe é dado um papel que não teve. Se quisermos ver os passos para essa consolidação, o 25 de Novembro faz parte, mas também a descolonização, as eleições de 1975, a Constituição, a alternância da AD de 1979-1980, o fim do pacto MFA-Partidos, e a eleição do primeiro Presidente civil, Mário Soares, ou seja, os anos entre 1974 e 1985. Demorou tanto tempo, foi tumultuária, conflitual, teve avanços e recuos? O que é que se esperava depois de 48 anos de ditadura e uma guerra colonial em curso?

Perguntem sobre isso à novel Comissão.»


12.9.25

A contrarreforma laboral pode unir os sindicatos?

 




Os mais poderosos

 


O Jornal de Negócios «elege» todos os anos as cinquenta personalidades com mais poder/influência em Portugal.

Porque a figura fica muito pequena, indico os 10 primeiros: Trump, Luís Montenegro, Christine Lagarde, Ursula von der Leyen, António Costa, Paulo Macedo, Pedro Soares dos Santos, Cláudia Azevedo, Xi Jinping, Marcelo Rebelo de Sousa.

Extraordinário, não é?
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Se clicar AQUI, verá os 50 deste ano.

Amílcar Cabral

 


Nasceu na Guiné (Bafatá), em 12 de Setembro de 1924, fez o liceu em Cabo Verde, veio mais tarde para Lisboa onde se licenciou em Agronomia. Em 1956 foi um dos fundadores do PAIGC, partido que liderou e que, em Janeiro de 1963 declarou guerra contra o colonialismo de Portugal. Dez anos mais tarde, em 20 de Janeiro de 1973, assassinaram-no em Conacri.

Foi precisamente em Conacri (1969) que esta entrevista teve lugar:




Quando o ridículo deixa de matar

 


«Nos momentos em que não ocupa um estúdio televisivo, dando asas ao controlo sobre o meio, conduzindo entrevistas perante o pasmo dos entrevistadores, pontuando o discurso com falsidades, e exibindo toda a sua vulgaridade, André Ventura passeia-se pelas redes sociais. O verbo é adequado. Ontem, irrompeu ufano num daqueles vídeos peripatéticos (no sentido aristotélico da expressão) que, enquanto abanam os ecrãs ao ritmo dos passos, alegadamente fazem maravilhas quanto ao alcance. O que nos disse desta feita o doutor André Ventura, PhD, caminhando pelos passos perdidos?

Enquanto nos fita olhos nos olhos, num close-up que confere intimidade à relação, interpela-nos, criando suspense: "Sabem o que é que o Parlamento português aprovou hoje?" Confesso, desconhecia, e fiquei interessado. "Uma deslocação do Presidente da República." Segue-se uma pausa dramatico-irónica acompanhada de interjeição: "Eh pá, eu tenho de olhar para isto para ter a certeza." Depois de ter olhado e ficado sem dúvidas, acrescenta Ventura: "Para ir com os nossos impostos, com o nosso dinheiro, à Alemanha, a um Bürgerfest, a um festival de hambúrgueres."

Esclarecimento: o Presidente da República desloca-se à Alemanha, a convite do homólogo, a uma Festa dos Cidadãos, que se realiza anualmente nos jardins da residência oficial do Presidente Federal, para honrar o trabalho voluntário e promover o envolvimento cívico. Portugal é o país convidado este ano e estão envolvidas nas atividades várias ONG portuguesas.

É surpreendente que nenhum dos 60 deputados do Chega (e a resma de assessores que os acompanha, "pagos com os nossos impostos") tenha tido o cuidado de googlar o que estava em causa, antes de chumbar a autorização para Marcelo Rebelo de Sousa se deslocar à Alemanha. Desde 1 de setembro, toda a informação está disponível no site da nossa embaixada em Berlim. Conclusão: a bancada parlamentar do Chega vota às cegas.

Há, contudo, uma atenuante. O projeto de resolução tinha um erro que pode ter traído os deputados. O termo Bürgerfest surge grafado sem trema, aproximando-se perigosamente de hamburger. Este equívoco inadmissível será responsabilidade política do presidente da Assembleia ou lamentável erro técnico dos serviços? Para já, não sabemos, mas talvez uma Comissão Parlamentar de Inquérito se possa dedicar à questão, apurando a verdade "doa a quem doer".

Se burger — sem trema — pode remeter para o universo lúgubre da fast-food norte-americana, também aqui há atenuantes. O nome dos populares hambúrgueres, que a hegemonia cultural estado-unidense levou ao mundo, não radica no termo inglês ham, mas num tipo de bife picado levado da cidade de Hamburgo, na Alemanha, para o Novo Mundo. Já bürger tem origem alemã, também se propagou e, entre nós, deu origem a burgo ou burguês — bastariam conhecimentos rudimentares de "marxismo cultural" para se estar ciente disto.

No passado, dizia-se que o ridículo matava. A expressão tem origem num tempo em que a exposição pública ao ridículo funcionava como um mecanismo de controlo social extremamente eficaz. Em sociedades baseadas na honra e na reputação, ser ridicularizado publicamente levava à perda de estatuto social e à exclusão dos círculos de poder. Vivemos hoje um tempo diferente, em que a vergonha deixou de ser um instrumento de regulação social.

Quando terminei este texto, o vídeo tinha sido apagado. A Internet não esquece e, afinal, talvez o ridículo ainda seja capaz de ferir. Mesmo que pouco.


11.9.25

Transparências

 


“Vaso Papagaio”, decorado com um papagaio aplicado e esmaltado, a descansar num ramo de carvalho.
Moser.

Daqui.

Chovia em Santiago

 



Burger? Não, não é fake

 




Chile, 11.09.1973

 


11 de Setembro de 1973 foi o dia em que o regime democrático do Chile foi derrubado por uma acção conjunta dos militares e outras organizações chilenas, com o apoio do governo dos Estados Unidos e da CIA.

Salvador Allende afirmou, bem antes desse dia, que estava a cumprir um mandato dado pelo povo em 1970 e que só sairia do palácio depois de o cumprir. Ou que o faria «com os pés para diante, num pijama de madeira». Assim aconteceu.

Depois, foi o que é conhecido: 30.000 chilenos foram assassinados durante o regime de Pinochet.

O bombardeamento de La Moneda:




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A esquerda, as presidenciais e a perigosa caminhada para a derrota

 


«O cenário das eleições presidenciais começa a consolidar-se e não traz boas notícias para a esquerda. Apesar da multiplicação de candidatos à direita – Marques Mendes, o provável candidato da IL, a provável candidatura de Ventura e ainda Gouveia e Melo, que aí se colocou desde o lançamento oficial da sua candidatura – Seguro não parece beneficiar da queda do almirante e da sua posição solitária no centro-esquerda. Pelo contrário, a sua solidão reduz este espaço a uma insignificância desproporcionada.

A esquerda acabou de passar pela maior derrota da história democrática portuguesa. Essa derrota tem efeitos profundos e perigosos. Como se tem visto, inclina o debate perigosamente para a direita em questões sensíveis como a imigração e deixa o governo totalmente solto para propor impensáveis contrarreformas laborais, sem temer as reações no seu flanco esquerdo.

Uma candidatura de esquerda deve mobilizar grande parte dos eleitores deste espaço, criando uma força que contamine o debate presidencial, impedindo que estas eleições não só confirmem a viragem à direita, como a reforcem perigosamente. Para isto, a função de um candidato não é puxar os eleitores de esquerda para a direita, o que apenas reforça este risco, é dizer o que deixou de ser dito e que continua a ter muitos partidários. O País não mudou, nas suas convicções mais profundas, tão radicalmente desde que o PS teve maioria absoluta. É o silêncio derrotado de parte do país que está a tornar hegemónico o que era marginal.

Por outro lado, uma candidatura à esquerda deve ambicionar disputar a segunda volta, que continua em aberto, percebendo a relevância do próximo mandato presidencial, quando a direita tem dois terços do parlamento e as duas regiões autónomas. Nunca a necessidade de pôr os ovos nos dois cestos foi tão evidente, perante o poder quase absoluto da direita. Um governo, uma maioria de dois terços e um Presidente podem criar as condições para um retrocesso irreversível.

O risco é acontecer à esquerda portuguesa o que aconteceu à italiana. Dissolvida no centro-direita, não tem representação institucional autónoma, apesar de existir na sociedade, em movimentos sociais, sindicais e culturais. Não deixou apenas de contar, deixou de querer contar.

Não é por qualquer embirração pessoalizada que considero que António José Seguro, o homem que se rendeu à direita no momento historicamente mais difícil da nossa democracia constitucional (em 2011) e que mostra repetir a incapacidade de ser claro e marcante em todos os temas difíceis, um mau candidato. São as próprias sondagens que mostram que Seguro reduz o espaço da esquerda.

Falar de divisionismo perante um candidato que, mesmo sozinho, não consegue animar o que deveria ser o núcleo duro do seu eleitorado natural é absurdo. As candidaturas de António Filipe e Catarina Martins são a inevitável consequência de um candidato que (legitimamente) se impôs, apesar de saber que nem a totalidade do minguado eleitorado do PS conseguiria atrair. Mas é óbvio que não resolvem o problema.

A verdade é que nem perante a colagem do PSD ao Chega, a perda de gás de Gouveia e Melo, a fragmentação da direita e a evidência de que Seguro não consegue aproveitar nada disto algum independente deu o passo em frente. Não foi por falta de tentativa de muita gente. Foi porque a esquerda está deprimida e o tipo de candidato que teria de avançar não é aquele que espera ser empurrado, mas o que mobiliza os que se sentem derrotados.

E porque a política é cada vez mais repulsiva para pessoas independentes e livres, que não querem ver-se arrastadas na lama. Sobretudo para os que fiquem no alvo da extrema-direita, que domina essa forma de fazer política. Sobram os que já cá estavam, já viram a sua vida virada do avesso e nada têm a perder. Este é um momento difícil para a esquerda, em que só avançam os corajosos. Escasseiam os que acumulem essa coragem com capacidade de mobilizar o voto. Apesar de serem mais precisos do que nunca.»


Mariana Mortágua, ontem

 


10.9.25

Cachepot

 


Cachepot verde “Loetz Diana”, Arte Nova, decorado com uma libélula. Cerca de 1895.

Daqui.

Flotilha, novo ataque

 


Daqui.

Jorge Sampaio

 


Quatro anos sem ele. Se ainda cá estivesse, sofreria muito com o estado do mundo e do país.

Se a verdade o torna incoerente, Moedas mente. Sempre

 


«Nada, do que sabemos até hoje sobre o acidente no ascensor da Glória, nos dá razões para pedir a demissão de Carlos Moedas. Nada, nas respostas políticas e no debate público que da última semana, dá razões para Carlos Moedas se atirar furiosamente à oposição. E, no entanto, tem sido esse o caminho traçado pelo “moderado” que compara os seus adversários políticos a assassinos (não há outra interpetração possível para “sicário”) e insulta a memória de alguém que, não estando entre nós, não se pode defender.

A questão que se coloca é por que razão, minutos depois de criticar o “aproveitamento político” de uma tragédia (e de ir a correr para um Conselho de Ministros performativos para a aproveitar), o presidente da Câmara de Lisboa escolhe esse caminho contra Alexandra Leitão, cuja contenção contrasta com o comportamento do candidato Moedas contra Medina, há quatro anos. Tenho ouvido que este “não é o verdadeiro Carlos Moedas”. Este é o Carlos Moedas de sempre, pelo menos desde que se candidatou à Câmara de Lisboa. A imprensa e o País é que lhe dedicaram pouca atenção e escrutínio.

Para quem não se lembra, foi assim que Moedas reagiu à polémica da pala da Jornada da Juventude. Foi assim que se comportou quando, ainda mal tinha tomado posse, colocou na imprensa que o PS tinha chumbado o orçamento da Câmara (uma falsidade só possível de espalhar porque a reunião é à porta fechada). Foi assim na campanha eleitoral, quando inventou que tinham morrido, em 2019, 26 pessoas nas ciclovias de Lisboa (foram zero). O guião não muda: sempre que se sente acossado, Moedas cita factos alternativos e inventa inimigos externos para poder animar a sua base e polarizar o debate, fazendo-se de vítima.

Há quatro anos que Carlos Moedas cultiva uma relação fugidia com a verdade. Sabe que o pode fazer porque, não tendo uma oposição camarária com o mesmo acesso quase ilimitado à imprensa, é a sua história que tem vencimento. O que Carlos Moedas não percebeu é que uma coisa é torcer com sucesso os números da habitação, Plano de Drenagem, centros de saúde ou transportes deixados em obra ou com contrato assinado por Fernando Medina, outra, bem diferente, é inventar um passado alternativo para Jorge Coelho.

A necessidade de enlamear a imagem de Coelho, (chamou a isto “honrar a sua memória”), não foi uma escolha, foi uma necessidade. Moedas é refém do que disse há quatro anos, quando exigiu a demissão de Fernando Medina (hoje afirma que Medina foi informado sobre os e-mails para a embaixada Rússia, o que também é falso). Mas, ao imperativo ético que então traçou, tendo Jorge Coelho como modelo, responde agora com um “aqui ninguém foge”. O que antes era sinónimo de exigência, hoje seria sinal de cobardia.

Como o fato ético de Coelho era ótimo para Medina mas não lhe convém a ele, precisou inventar um passado alternativo, dando a entender que, ao contrário dele, o falecido ministro sabia dos riscos de derrocada da ponte e nada fez (como Medina saberia dos mails). Relatório do LNEC, comissão parlamentar, auditorias realizadas e processo judicial que se seguiu... nada corrobora a tese. Para quem diz que “não tem pensado em eleições”, Moedas mostrou que está disponível para descer baixo para proteger a sua imagem eleitoral.

Não acho que Carlos Moedas se deva demitir. Disse o mesmo sobre Medina, no caso dos emails para a embaixada russa, e serei dos poucos a não defender o exemplo de Jorge Coelho. Pelo contrário, acho que estabeleceu um precedente impossível de replicar (no momento atual, então, será sempre visto como uma assunção de culpa) e que só serve para normalizar a desresponsabilização política.

Digo-o mesmo depois de Moedas, numa das leituras evolutivas que vai fazendo sobre responsabilidade política, ter dito que se demitiria se fosse provado que a despesa com a manutenção dos ascensores tinha descido durante o seu mandato. Não só esta diminuição já foi provada, relativamente aos últimos três anos, como o Plano de Atividades e Orçamento da Carris para 2025 estipula uma diminuição de 43,3% no investimento com a “Manutenção e reparação de autocarros e elétricos”.

Os voláteis critérios do autarca de Lisboa interessam pouco para esta análise e menos ainda a poucos dias das eleições. O relatório conhecido ao sucedido, mesmo que muito preliminar, não aponta o dedo à operação ou manutenção do veículo. Também não se sabe que Carlos Moedas tenha sido alertado para o risco inerente ao ineficaz sistema de segurança do ascensor. O que sabemos é pouco e convém não disparar “mais rápido do que a própria sombra”. Liderando o único acionista da empresa, há uma responsabilidade política evidente, mas essa avaliação compete aos lisboetas. Que, por acaso do calendário, vão a votos daqui a um mês.

Mas há, para além do balanço destes desgraçados quatro anos, uma avaliação a fazer do comportamento de Carlos Moedas na última semana. Mentir é o seu padrão, como é o padrão de Ventura e de Sócrates. Não é uma falha à verdade. É um comportamento continuado, descarado e consciente que, aliás, se mantém, quando insiste que o seu caso é diferente do de Coelho, como fez ontem. Como Moedas mente mais quando está mais ansioso, seria bom instalar um polígrafo nos Paços do Concelho. O próximo mês promete.»

Daniel Oliveira

9.9.25

Moedas mentiu

 


«Além do ex-primeiro-ministro António Costa, assinam a nota Alberto Martins, Augusto Santos Silva,Eduardo Ferro Rodrigues, Guilherme Oliveira Martins, Luís Capoulas Santos e Nuno Severiano Teixeira.

Estes antigos ministros justificam ter subscrito esta nota por uma questão de "dever".

"Não podendo Jorge Coelho defender-se, é nosso dever defender a sua memória", frisam.»

Daqui.


Adeus Lisboa

 


09.09.1973 – A dois dias do golpe no Chile

 


No dia 9 de Setembro de 1973, José Toribio Merino, comandante-chefe da Armada do Chile e membro da Junta do Governo durante os 16 anos que durou a ditadura militar, escreveu uma carta aos generais Gustavo Leigh e Augusto Pinochet, na qual é indicada a data e a hora para o golpe de Estado de 11 de Setembro:

9/Sept/1973 
Bajo mi palabra de honor, el día 'D' será el 11 de setiembre y la hora 'H', la hora 6. Si ustedes no pueden cumplir esta fase con el total de las fuerzas que mandan en Santiago, explíquenlo al reverso. El Almirante Huidobro - vea usted, señor Presidente, ¡qué apellido! -"está autorizado para tratar y discutir cualquier tema con ustedes. – Les saluda con esperanza y comprensión, 
Merino
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Drone na Flotilha

 


«O barco que encabeça a Flotilha Global rumo a Gaza e onde viaja, entre outros, a Mariana Mortágua foi atingido por um drone. Um barco com bandeira portuguesa 🇵🇹e que está em missão humanitária. Todos estão bem, o barco será reparado e a viagem seguirá. O governo português já condenou o ataque?»
Catarina Martins em legenda a este vídeo.





Um epitáfio em Paris

 


«Em França caiu mais um primeiro-ministro. A queda não nasceu de conspirações de bastidores nem de golpes parlamentares. Foi ele próprio a traçar o desfecho, oferecendo-se a uma moção de confiança que não tinha como sobreviver. Sabia que ia perder e perdeu. O discurso, porém, foi feito como se fosse epitáfio. Um homem que sobe à tribuna já de joelhos, mas que escolhe cair de pé.

Disse Bayrou: “A submissão à dívida é a mesma que a submissão às armas”. Palavras densas, carregadas de solenidade, lançadas a uma sala onde já ninguém as podia escutar. O eco perdeu-se logo ao nascer. O que ficou, depois da votação, foi o inventário imediato: quem sucede, quem negocia o Orçamento, quem recolhe a força da jogada. O aviso morreu no mesmo instante em que foi proferido.

O essencial morreu logo ali, no silêncio que se seguiu, porque já não há gramática comum para sustentar um aviso. Quem fala de dívida fala de tempo — de gerações futuras, de riscos acumulados, de responsabilidades invisíveis —, mas a política europeia habituou-se a viver sem esse horizonte. A dívida alonga-se como anestesia, a defesa fica sempre para amanhã, as reformas reduzem-se a slogans. O presente estende-se como uma tenda frágil onde todos cabem por uns instantes, mas que cede à primeira rajada.

Repare-se: em França, a fúria popular não se inflamou tanto pelo défice ou pelos números, mas pelo gesto prosaico de cortar dois feriados. Isso bastou para expor o que se tornou intolerável: a ideia de pagar hoje para preparar o amanhã. Bayrou caiu porque falou a língua do tempo longo num continente que já só reconhece o imediato.

A contradição é gritante. A Europa fala de autonomia estratégica, mas não sabe de onde virá o esforço. Promete gastar mais em defesa porque a guerra na Ucrânia lhe mostrou o preço da dependência, mas não quer admitir que cada euro posto nos tanques será retirado das escolas, dos hospitais, das pensões. Durante décadas, foi possível viver no conforto de delegar essa função nos Estados Unidos, libertando recursos para o seu vasto Estado social. Agora que esse arranjo se esgota, descobre-se o impasse: a ambição de se proteger exige cortes que nenhuma democracia em crise de confiança parece disposta a assumir.

Por isso a moção de Bayrou tem a textura de um epitáfio. O que disse não é novo. O que o tornou insuportável foi a lembrança de que o futuro cobra sempre juros. Mas o Parlamento, ocupado com sucessões e alianças, fechou-se à advertência. A política europeia já não vive na gramática da prudência. Vive na gramática da gestão de humor público. O ciclo é curto, o horizonte estreito, e nesse encurtamento a própria ideia de reforma transformou-se em veneno.

Entretanto, os espaços vazios vão sendo ocupados. A direita radical não cresce tanto por virtude, cresce porque se alimenta desse vazio de reformas, desse medo de pedir sacrifícios. Oferece urgência sem projeto, inimigos fáceis em vez de escolhas difíceis. O círculo fecha-se: o medo de perder poder impede reformas; a ausência de reformas gera raiva; a raiva alimenta populismos; e os populismos tornam reformas ainda mais impossíveis.

O gesto de Bayrou é trágico porque expôs essa espiral sem saída. Caiu não apenas pela sua fragilidade, mas pela fragilidade do tempo que habita. Falou de dívida como quem fala de guerra, de gerações futuras como quem fala de herança moral. Mas encontrou um auditório que só reconhece urgências imediatas: salários, preços, feriados. A tragédia é dupla: a queda de um homem e a queda da própria escuta.»


8.9.25

Sicários

 


Os ricos no autocarro

 


«Bastava a qualquer candidato autárquico ou presidencial ficar durante uma manhã, tarde ou noite numa paragem de autocarro para saber exatamente o que é isto do "país real" e do que ele necessita. Nesse país, que está longe das praias da Comporta e do "triângulo dourado" do Algarve, estão as empregadas de limpeza a regressar de um dia de trabalho, os idosos que se deslocam para ir ao médico, os estudantes a caminho de mais um dia de escola e os inúmeros trabalhadores, de vários setores, que não podem ou não querem depender de um carro, todos os dias.

"Um país desenvolvido não é aquele onde os pobres têm carro, é aquele onde os ricos andam de transporte público". A frase pode ser encontrada em várias páginas da Internet dedicadas à mobilidade ativa e sustentável. A expressão foi usada por Enrique Peñalosa, antigo autarca da capital colombiana, Bogotá, numa TED Talk, em 2013. Mas, em quantos países podemos constatar que é uma realidade? Certamente, não o é em Portugal. (…)

Caros candidatos, está na hora de andarem de autocarro. Não por uma lógica castigadora para verem o que o povo sofre, mas para perceberem o que falha no "país real". O país onde sair 15 minutos mais tarde do trabalho significa chegar uma hora mais tarde a casa, porque os horários dos transportes são inflexíveis. Ou, no pior dos cenários, ser um cidadão que vive fora das áreas metropolitanas ou trabalha por turnos e não tem outra forma de se deslocar, sem ser de carro. É que isto de viver no "país real" não é fácil. Exige paciência e força nas pernas para esperar pelo autocarro.»

Na íntegra AQUI.

Marcelo e Moedas

 


Elevador da Glória: Moedas, o seu futuro e os “sicários” de Alexandra Leitão

 


«Numa altura em que o vice-presidente da Câmara de Lisboa, Filipe Anacoreta Correia, veio oferecer a sua cabeça numa bandeja, caso seja preciso arranjar um rosto para a culpa, Marcelo afirmou o óbvio: “Quem quer que exerça um cargo político é politicamente responsável pelo exercício (…). Quem está à frente de uma instituição pública responde politicamente por aquilo que aconteça de menos bem, mesmo que sem culpa nenhuma.”

“Não vale a pena discutir se há responsabilidade política, porque há.” É curioso que tenha sido o Presidente da República a dizer o básico quando uma boa parte dos responsáveis políticos andaram a titubear, sabe Deus porquê.

E, no entanto, Carlos Moedas recusa ter “responsabilidade política” e diz que só se demitirá caso seja provado que tomou alguma decisão que tenha conduzido à tragédia. Não houve erro humano, diz. Mas como não houve erro humano? Citando Marcelo Rebelo de Sousa, quantas pessoas precisam de morrer?

Moedas – que diz, com alguma lata, que “não pensa nas eleições neste momento” – fez um ataque à candidatura do PS de Lisboa, “um bloco de esquerda que se radicalizou”, acusando Alexandra Leitão, a sua principal opositora, de ter um discurso “dissimulado”, porque não pede a sua demissão e tem um discurso moderado, mas manda “os seus sicários” fazerem-no.

Revoltado com a “politização de uma tragédia”, Moedas politiza a tragédia, radicalizando o discurso com a palavra "sicários". Fui ao Priberam e o sinónimo que aparece é "assassino contratado". Será difícil responder ao mesmo nível metafórico.

Na entrevista à SIC Notícias, Carlos Moedas esforçou-se por distinguir este caso do Russiagate, quando pediu a demissão de Fernando Medina. É evidente que as situações não são comparáveis. Mas como é que Carlos Moedas achava, na altura, que um presidente da Câmara de Lisboa se devia demitir mesmo estando em causa “erros técnicos” e anunciava que vinha para “fazer política de forma diferente”, e tem agora outra posição? Porque “politiza”, naturalmente.

Tanto Marcelo Rebelo de Sousa como o secretário-geral do PS, José Luís Carneiro, acham que quem decidirá sobre as responsabilidades políticas de Moedas serão os eleitores de Lisboa. Marcelo registou que os portugueses também o fizeram com Luís Montenegro relativamente ao caso Spinumviva nas últimas eleições legislativas.

Esta ideia de referendar a responsabilidade política em eleições tem um problema: faz com que ela desapareça, como por encanto, se os eleitores derem um novo mandato a Carlos Moedas.

Uma vitória da AD em coligação com a Iniciativa Liberal lavará tudo mais branco do que os detergentes, com o risco de nunca mais ninguém falar do assunto, como aconteceu no caso Spinumviva, e só acordarmos para o tema dos riscos dos elevadores de Lisboa outra vez se acontecer nova tragédia.

Uma outra consequência é o risco de uma derrota de Moedas estar intimamente ligada ao Elevador da Glória. A campanha vai, portanto, centrar-se no Elevador da Glória e é pouco para o debate sobre Lisboa.

É verdade que o caso Spinumviva, relativamente ao qual o PS e o Chega tinham tantas perguntas antes das eleições, foi considerado “arquivado” pelos dois maiores partidos da oposição. Uma vitória de Carlos Moedas fará com que não mais se fale das infra-estruturas de Lisboa?

O mais estranho é que, para a carreira política de Carlos Moedas, o mais útil era mesmo demitir-se. O presidente da Câmara de Lisboa é um activo do PSD e, quando Luís Montenegro deixar o cargo de presidente do partido, será um dos nomes mais do que prováveis na batalha da sucessão.

Assumir as responsabilidades políticas agora, retirando-se das eleições (subia Gonçalo Reis), ia protegê-lo para o futuro, no caso de não se provar que a Câmara de Lisboa tinha contribuído para a tragédia. Arriscar uma derrota agora dificulta as suas ambições políticas. Moedas fez a pior escolha possível para si próprio – mas ele lá sabe.»


7.9.25

Hoje é verde

 


Vaso de vidro iridescente, Arte Nova, Áustria. Início do século XX.

Daqui.

Flotilha, hoje

 


Manuel Bandeira

 


07.09.1975 – Quem se lembra dos SUV

 


Os SUV (Soldados Unidos Vencerão) – uma auto-organização política de militares, clandestina, que se definia com «frente unitária anticapitalista e anti-imperialista» – apresentaram-se «embuçados por razões de segurança» numa conferência de imprensa realizada no Porto e transmitida pelo Rádio Clube Português , em 7 de Setembro de 1975.

Organizaram desfiles em várias cidades, mas julgo que nenhum teve a dimensão do de Lisboa, em 25 de Setembro, com apoio de partidos como o MES, a LCI, a UDP e o PRP. Centenas de soldados fardados, acompanhados por representantes das comissões de trabalhadores e de moradores e por uma verdadeira multidão, subiram do Terreiro do Paço até ao Parque Eduardo VII, onde teve lugar um comício. No fim deste, foram desviadas dezenas de autocarros da Carris, que levaram quem quis até ao presídio da Trafaria, de onde, pelas 2:00 da manhã, foram libertados dois militares que se encontravam detidos, precisamente por terem distribuído panfletos de propaganda da manifestação.

Para se perceber um pouco mais do que estava em causa, vale a pena ler o MANIFESTO com que os SUV se apresentaram, precisamente nesse 7 de Setembro.
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As autárquicas e a normalização do Chega

 


«Vivi umas férias abusivamente longas cercada por cartazes de André Ventura. Dispenso sair da toca no querido mês de agosto, vivi Castro Marim e Moledo, Carrapateira e Sintra, Odeceixe e Aveiro (luxos à mão num país pequeno) e Ventura perseguiu-me. Ele tinha avisado – o Chega vai ter candidatos às autárquicas de 12 de outubro em todos os municípios do país – e como a matéria prima, pobre e escassa a nível nacional, é ainda mais pobre e escassa a nível local, Ventura tirou o coelho da cartola, clonou-se a si próprio, criou a ilusão de que o candidato às 308 câmaras é ele, e basta ir para fora cá dentro para ter uma experiência alucinante. O André está em todo o lado. Vai limpar isto tudo. E supera-se na arte de enganar o pagode.

Há nisto uma fragilidade que o político de que se fala não esconde. No seu predileto registo de vítima, tenta disfarçar a penúria de quadros, diz que “é difícil em muitas zonas do país”, porque “muitos candidatos [do partido] são atacados, ameaçados, condicionados” e “muito boa gente, infelizmente, não quer ou não sente condições de poder dar a cara" (Tadinhos!). Mas também há nisto (e há sobretudo) uma turbina que vai mudar, agora sim, os alicerces do mapa político. Começou nas legislativas, quando o Chega venceu em 60 concelhos. Mas o grande salto na implementação nacional do partido está projetado para outubro e confrontará o sistema com a morte das linhas vermelhas. Pedro Duarte, o ex-ministro que trocou o Governo pela candidatura da AD ao Porto, já perdeu os complexos - “Linhas vermelhas não fazem sentido nas autarquias”. E não tarda até que muita boa gente, da AD, do PS, e até do PCP, esteja em condições de subscrever um abaixo-assinado com esse título.

Imagine uma câmara da margem sul do Tejo ganha pelo PS ou pelo PCP, mas onde os cartazes de Ventura conseguem disputar poder e eleger vereadores. O que faz a esquerda? Diz que não fala com aqueles senhores porque não são gente decente nem confiável e arrisca deixar a autarquia bloqueada? Ou percebe que a paralisia lhe pode ser politicamente fatal e senta-se à mesa com os indecentes? No fundo, o que Montenegro está a viver a nível nacional para grande escândalo de alguma esquerda que ainda não percebeu o que aí está (claro que o segundo maior partido a nível nacional deve poder eleger juízes para o Tribunal Constitucional), é exatamente o que AD, PS e PCP vão ser desafiados a viver a nível local.

"Governar Sintra com o Chega? Não ponho limites, não tenho linhas vermelhas. Escolherei os competentes”, dizia por estes dias o candidato da AD a Sintra. Marco Almeida faz nos arredores de Lisboa o que Pedro Duarte faz no Porto e isto chama-se ceder à realidade. Em Sintra, o segundo município mais populoso do país, a vox populi não acha impossível Rita Matias ganhar. Nas freguesias da costa vicentina pejadas de imigrantes, a conversa de Ventura é manteiga no pão. No Algarve, no Alentejo e na Península de Setúbal estamos conversados, o mapa passou a azul nas legislativas e isso não se reproduz tal qual mas não desaparece em autárquicas. E no Norte, onde a direita conservadora tratou melhor de si, o combate da nova direita vai mais atrasado, mas Pedro Duarte lá saberá porque é que assinou o funeral das linhas vermelhas. O Chega, às costas de Ventura, vai ganhar câmaras mas vai, sobretudo, alargar a malha de norte a sul e o mercado a disputar é imenso. Estão em jogo 308 executivos camarários, mais de 3 mil freguesias, outras tantas assembleias municipais, num puzzle gigantesco a que concorrem milhares de cidadãos e é certinho que, mesmo com o risco de haver larápios na rede, o polvo do Chega vai crescer.

Há autarcas socialistas que viram o filme há muito tempo, quando recusaram deixar a Ventura o monopólio de temas que sabem tocar a vida das pessoas, seja o impacto social de uma imigração mal controlada, sejam os limites do Estado social. E o líder do Chega, mal ganhou as eleições nacionais com a ascensão a segundo maior partido, focou-se no combate que sabe ser decisivo: "Vamos ter bons autarcas para resolver os vossos problemas, de violência, de insegurança, de imigração e de mama do Estado, ao pé das vossas casas". Bons autarcas, nem pagamos para ver. O pessoal político de um partido não se compra no supermercado e há quatro anos foi o que se viu – o Chega elegeu 19 vereadores, que foram caindo como tordos com acusações de falta de democraticidade interna, e o partido falhou a implementação local. Mas isso foi há quatro anos, quando a maratona de Ventura ainda não tinha ultrapassado o PS no ranking nacional. Agora, já sentado à mesa dos grandes, o partido ganha poder de atração, ainda tem que recorrer sobretudo a deputados para se candidatar às eleições locais mas vai descobrindo novos artistas convidados e joga forte com a certeza de que é no poder local que as raízes se consolidam. O político nacional aparece na TV a sair de carros pretos, o político local está próximo, cruza-se na rua e no café, pára para ouvir queixas e passa a mexer cordelinhos, a gerir dinheiros, a mover influências, a ter verdadeiro poder.

Ventura chamou a este combate “o último degrau” e traduziu para quem não tenha percebido: “Antes de conseguirmos mudar este país como tanto queremos a nível nacional, nós temos de o conseguir governar a nível local”. Um partido unipessoal é uma doença ainda sem cura anunciada, não será desta que o Chega conseguirá ultrapassar a poderosa dupla que tem governado a Associação Nacional de Municípios, mas quando não se acha impossível Rita Matias morder os calcanhares à vitória em Sintra, não vale a pena ter ilusões.

PS e PCP ainda disfarçam de papo cheio, mas já não se livram do pão que o Diabo amassou. Há um processo de normalização em curso do venturismo. Seja bem-vindo ao Outono quente.»

Ângela Silva
Newslleter do Expresso