«Uma das guerras culturais em que a direita radical é mais débil é a de mudar a história, censurando e cancelando alguns aspectos, recriando o passado e tentando criar uma história ideológica e política que não suporta o mínimo de escrutínio factual, logo, científico. É uma política que, dos EUA de Trump à Rússia de Putin, se tornou uma componente essencial da propaganda legitimadora da direita, que tem à cabeça o problema de não ter outra história que não seja terrível e que, por muito que se esforcem, é inaceitável pela opinião pública democrática.
O problema da direita radical portuguesa é da mesma natureza: ninguém se atreve a glorificar às claras Salazar, ou a ditadura do Estado Novo, ou a Guerra Colonial. Sem história, com uma memória sinistra, há que encontrar mecanismos de falsificação/substituição que criem momentos épicos que sirvam a propaganda política.
Não é que não tentem. Alguns tentam glorificar o Estado Novo com uma espécie de escola assente em variantes da tese de “como era bom Mussolini porque fazia chegar os comboios a tempo”, e há, como é óbvio, uma minoria muito minoria que acha que o que precisamos é de um novo Salazar, mas nem num caso nem noutro tiveram ou têm muito sucesso. O 25 de Abril permanece ainda uma memória politicamente viva, por boas razões, e a tese mussoliniana dos comboios defronta praticamente não só toda a historiografia portuguesa, como a consciência de que, entre 1926 e 1974, se viveu, com excepção da URSS, a mais longa ditadura da Europa, com todo o seu cortejo de violências, iniquidades e corrupção. Uma e outra coisa são suportadas pela ciência da história e pela moral cívica e democrática. E, por isso, esta guerra cultural não foi vencida pela direita radical.
O que é que sobra quando se perde na opinião? Usar a força do Estado e do poder político para não só impor um “passado” fictício, aceitável a quem não tem passado apresentável, como usar esse exercício para a luta política e ideológica. É o que revela a resolução do Conselho de Ministros sobre o 25 de Novembr
o.
É o 25 de Novembro comemorável? Sem dúvida, se for o que aconteceu e não a falsificação que por aí passa como sendo história. Querem fazê-lo? Muito bem, desde que os “heróis” sejam Costa Gomes, Melo Antunes, Ramalho Eanes, Vasco Lourenço, o Grupo dos Nove, Mário Soares, o PS, e não só Jaime Neves, mas também. Que se fale dos dois golpes, o de 25 da ala esquerdista das Forças Armadas, e o de 26 com a tentativa de ilegalizar o PCP. Ambos têm um papel histórico essencial, que é, mais do que consolidar a democracia, evitar a guerra civil em Portugal. Não foi a “comuna de Lisboa”, nem a acção do PCP que foram os grandes riscos do 25 de Novembro, foi o choque com os militares esquerdistas, ligados ao Comando Operacional do Continente (Copcon) e a alguns sectores gonçalvistas (mas não a todos), que, se tivesse expressão armada significativa, teria provocado um conflito que arrastaria os civis e seria particularmente destrutivo, inclusive para a democracia. Nessa contenção participou o PCP, que, como de costume, tem sempre um pé dentro e outro fora, mas o de dentro foi muito relutante, e rapidamente vieram os dois para fora. Há documentação histórica suficiente e estudos sólidos que negam a ideia do 25 de Novembro como um “golpe do PCP”, mas esta mistificação terá sem dúvida um papel nas comemorações.
Mas, se a 26 de Novembro se ilegalizasse o PCP, teríamos igualmente um conflito próximo de uma guerra civil, que, repito, seria igualmente destrutivo para a democracia. Foi isso que a acção militar conduzida pelo Presidente da República, com a sua cadeia de comando eficaz, impediu, e foi isso que homens como Melo Antunes travaram ao defenderem a democracia plural e a inclusão dos comunistas no sistema. Querem homenagear o 25 de Novembro? São estes homens a honrar e a direita radical quer excluí-los.
A resolução ministerial tem muita coisa de inaceitável. Uma é ter-se entregue ao CDS, via ministro da Defesa, as comemorações. Porque é que uma comemoração desta natureza tem a ver com a “Defesa”, não só pelo topo, mas também pela composição dos seus órgãos? Depois, quando se começa a falsificar a história, vai-se cada vez mais longe. Por que razão as primeiras eleições democráticas são as de 1976, e não as eleições cruciais de 1975, aquelas que mais corresponderam à vontade dos portugueses e cujos resultados foram fundamentais para mostrar que, uma coisa era a “rua”, outra o voto? É este manto de legitimidade eleitoral que explica tudo, do Grupo dos Nove à repressão da revolta esquerdista de 25 de Novembro. Eu percebo por que razão “desaparecem” as eleições de 1975: não se pode andar a dizer que havia uma “ditadura” no PREC e admitir que as eleições foram totalmente livres. Ao desvalorizar a eleição de 1975, a direita radical junta-se a todos os que, na época, se incomodaram com os seus resultados, a começar pelo PCP.
Não é muito difícil de perceber pela resolução que o 25 de Novembro é equiparado ao 25 de Abril, e que no processo de consolidação da democracia lhe é dado um papel que não teve. Se quisermos ver os passos para essa consolidação, o 25 de Novembro faz parte, mas também a descolonização, as eleições de 1975, a Constituição, a alternância da AD de 1979-1980, o fim do pacto MFA-Partidos, e a eleição do primeiro Presidente civil, Mário Soares, ou seja, os anos entre 1974 e 1985. Demorou tanto tempo, foi tumultuária, conflitual, teve avanços e recuos? O que é que se esperava depois de 48 anos de ditadura e uma guerra colonial em curso?
Perguntem sobre isso à novel Comissão.»