9.9.25

Um epitáfio em Paris

 


«Em França caiu mais um primeiro-ministro. A queda não nasceu de conspirações de bastidores nem de golpes parlamentares. Foi ele próprio a traçar o desfecho, oferecendo-se a uma moção de confiança que não tinha como sobreviver. Sabia que ia perder e perdeu. O discurso, porém, foi feito como se fosse epitáfio. Um homem que sobe à tribuna já de joelhos, mas que escolhe cair de pé.

Disse Bayrou: “A submissão à dívida é a mesma que a submissão às armas”. Palavras densas, carregadas de solenidade, lançadas a uma sala onde já ninguém as podia escutar. O eco perdeu-se logo ao nascer. O que ficou, depois da votação, foi o inventário imediato: quem sucede, quem negocia o Orçamento, quem recolhe a força da jogada. O aviso morreu no mesmo instante em que foi proferido.

O essencial morreu logo ali, no silêncio que se seguiu, porque já não há gramática comum para sustentar um aviso. Quem fala de dívida fala de tempo — de gerações futuras, de riscos acumulados, de responsabilidades invisíveis —, mas a política europeia habituou-se a viver sem esse horizonte. A dívida alonga-se como anestesia, a defesa fica sempre para amanhã, as reformas reduzem-se a slogans. O presente estende-se como uma tenda frágil onde todos cabem por uns instantes, mas que cede à primeira rajada.

Repare-se: em França, a fúria popular não se inflamou tanto pelo défice ou pelos números, mas pelo gesto prosaico de cortar dois feriados. Isso bastou para expor o que se tornou intolerável: a ideia de pagar hoje para preparar o amanhã. Bayrou caiu porque falou a língua do tempo longo num continente que já só reconhece o imediato.

A contradição é gritante. A Europa fala de autonomia estratégica, mas não sabe de onde virá o esforço. Promete gastar mais em defesa porque a guerra na Ucrânia lhe mostrou o preço da dependência, mas não quer admitir que cada euro posto nos tanques será retirado das escolas, dos hospitais, das pensões. Durante décadas, foi possível viver no conforto de delegar essa função nos Estados Unidos, libertando recursos para o seu vasto Estado social. Agora que esse arranjo se esgota, descobre-se o impasse: a ambição de se proteger exige cortes que nenhuma democracia em crise de confiança parece disposta a assumir.

Por isso a moção de Bayrou tem a textura de um epitáfio. O que disse não é novo. O que o tornou insuportável foi a lembrança de que o futuro cobra sempre juros. Mas o Parlamento, ocupado com sucessões e alianças, fechou-se à advertência. A política europeia já não vive na gramática da prudência. Vive na gramática da gestão de humor público. O ciclo é curto, o horizonte estreito, e nesse encurtamento a própria ideia de reforma transformou-se em veneno.

Entretanto, os espaços vazios vão sendo ocupados. A direita radical não cresce tanto por virtude, cresce porque se alimenta desse vazio de reformas, desse medo de pedir sacrifícios. Oferece urgência sem projeto, inimigos fáceis em vez de escolhas difíceis. O círculo fecha-se: o medo de perder poder impede reformas; a ausência de reformas gera raiva; a raiva alimenta populismos; e os populismos tornam reformas ainda mais impossíveis.

O gesto de Bayrou é trágico porque expôs essa espiral sem saída. Caiu não apenas pela sua fragilidade, mas pela fragilidade do tempo que habita. Falou de dívida como quem fala de guerra, de gerações futuras como quem fala de herança moral. Mas encontrou um auditório que só reconhece urgências imediatas: salários, preços, feriados. A tragédia é dupla: a queda de um homem e a queda da própria escuta.»


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