19.3.22

Uma fotografia para a História

 


Em Lviv, um berço vazio por cada criança morta.
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Cantiga do fogo e da guerra

 



«Fiz este poema pelos meus dezoito anos. Começava então a praticar a poesia e a prosa, ambas com efeitos esparsos. Pensei, claro, na guerra que então se travava com os povos africanos que julgávamos ainda portugueses – e para onde eu sempre soube que não iria. Mas falava também das guerras em geral, e dos seus horrores e aproveitamentos. Um assunto que, como se constata, parece não ter fim.

O poema ganhou nova vida quando o Zé Mário Branco o leu e disse ‘quero musicar’. ´Faz favor’, respondeu a minha alegria e a minha aceitação. Está no seu primeiro disco, ‘Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.’ Vontade cumprida, e um poema enfim em casa própria.»

Sérgio Godinho no Facebook
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19.03.1968 – Mário Soares detido e deportado

 


Mário Soares foi deportado para S. Tomé, pouco depois de ter estado preso e incomunicável, durante três meses, pretensamente por ter fornecido a um jornalista do Sunday Telegraph informações relativas a um escândalo sexual que envolveu suspeitas de actos pedófilos por parte de várias figuras públicas – o chamado caso dos Ballet Rose. No fim de Fevereiro de 1968, conseguiu sair em liberdade na sequência de um pedido de habeas corpus.

Detido pela PIDE nesse 19 de Março, foi-lhe comunicado que partiria para S. Tomé no dia seguinte, por volta das onze horas da noite.

Mais informação AQUI.
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Razão, excitação, cansaço, desintoxicação

 


«Cobrir, em termos comunicacionais, uma guerra como a da Ucrânia é muito difícil. Implica novas regras de boa comunicação e deontologia jornalística, mantendo as antigas, adaptadas a um conflito com características inéditas. Muitas imagens da guerra actual parecem-se com outras relativamente recentes: bombardeamentos da faixa de Gaza e no Iémen, ataques na Bósnia, na Sérvia, na Líbia, na Somália, na Guerra do Golfo. Do mesmo modo, a presença da memória da II Guerra Mundial, principalmente na imagem das cidades devastadas sem distinção entre prédios “civis” e objectivos militares, parece também servir de comparação. Eu insisti no “parecem” porque penso que esta guerra tem características novas e problemas novos, todos muito centrados na comunicação social.

Há, para já, duas coisas que são novas, até porque a velha máxima de que a quantidade gera a qualidade é relevante, entendendo-se como qualidade não um conceito valorativo, mas uma nova forma de identidade, e que são: a presença maciça da comunicação social, produzindo ou incorporando na sua informação milhares de vídeos, e aquilo a que a CNN americana e a portuguesa chamam “breaking news”, ou seja emissões de quase 24 horas por dia sobre o mesmo assunto, com a excepção nacional, obviamente, do futebol.

Não sei quantos jornalistas estão na Ucrânia e nos países limítrofes, com excepção da Rússia onde não podem trabalhar a não ser clandestinamente, mas devem ser várias dezenas. Isso significa uma cobertura intensiva, desigual no seu valor e dependente do conhecimento, medo e comodismo do correspondente, e que tem sido muito centrada nos refugiados, numa primeira fase, e agora nas destruições civis. Por razões óbvias, as informações sobre a guerra propriamente dita são escassas e muito dependentes do acesso aos campos de batalha. Aqui não há jornalistas “embebidos” como na guerra do Golfo nas unidades militares, quer nas russas, quer nas ucranianas, e é também neste terreno que há muita desinformação dos dois lados. Sabemos pouco sobre a frente de batalha, mas isso é normal na condução de operações militares. O que é grave é que essa ignorância não pareça ser sentida como importante, no meio da multidão de imagens muito mais “populares”.

A transmissão principalmente nas televisões, o meio mais poderoso na sua comunicabilidade e empatia, de 24 horas por dia, levanta sérias questões de qualidade do jornalismo e da sua função de dar a todos, em democracia, informações rigorosas para poderem ter opinião e decidirem. Uma guerra é um tema emocionalmente forte, e 24 horas de guerra por dia presta-se a dois efeitos aparentemente contraditórios: um, um efeito de viciação; outro de cansaço. Quer num caso, quer noutro, o rastro comunicacional torna-se essencialmente emotivo e pouco racional, o que o deixa muito propício à manipulação. No contexto de mentalidade, cultural, social e política, actual torna-se mais um factor agravante da radicalização numa sociedade que já o é em demasia.

Numa democracia, as emoções têm um papel decisivo e tudo as favorece, enquanto a necessidade da razão tem uma vida difícil. As emoções moldam a opinião pública com facilidade, e a razão, não. A comunicação social, principalmente a televisão, que é claramente preponderante mesmo em relação ao papel das chamadas “redes sociais”, comunica facilmente a emoção, e com 24 horas em cima, com uma repetição sistemática de imagens fortes, esmaga a razão. Não podemos deixar que a razão se refugie apenas na reacção do medo, ele próprio uma emoção. O caso da discussão sobre a “zona de exclusão aérea” é um desses casos.

Podemos achar que toda esta imersão emotiva é por uma boa causa, a causa da indignação colectiva contra a violência agressiva de Putin e dos seus crimes, mas não basta ter uma boa causa, é preciso transformá-la em políticas democráticas, no contexto da vida pública em liberdade, e defrontar muitas questões que a emoção não só não cuida, como impede. Políticas de alianças e defesa, políticas energéticas, políticas de independência alimentar, políticas de emigração e refúgio, políticas face à pandemia, políticas externas para além do teatro europeu, políticas de liberdade e contra a censura, tudo numas circunstâncias em que a guerra actual mudou quase tudo. Tudo isto devia estar a ser discutido desde já, para além dos anátemas e da arregimentação, mas isso pode ser mau para as audiências, porque, quer por viciação, quer por cansaço, as pessoas não estão para aí viradas.

Mas sabem qual é alternativa? A alternativa é usar a superficialidade das emoções para fazer uma caça às bruxas, ou para fazer passar pseudo-argumentos que são uma patetice mas circulam. Como, por exemplo, dizer que os ucranianos estão a resistir aos russos porque como povo já tinham resistido à obrigatoriedade da vacinação. Os portugueses pelo contrário, como foram que nem cordeirinhos vacinar-se a mando do “Estado”, não levantariam um dedo se fossem invadidos pelos espanhóis. O desmame das “breaking news” vai ser complicado, mas é necessário.»

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18.3.22

Queridas TVs

 


Uma vaca voadora já tivemos. Mas porta-aviões, só os chineses...

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Alguém duvida?

 

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Oito anos sem José Medeiros Ferreira

 


A alguns dias da comemoração do 60º aniversário do Dia do Estudante de 1962, retomo um vídeo gravado por José Medeiros Ferreira em 2007. Nele, o Vice-Presidente da Pró-Associação da Faculdade de Letras de Lisboa em 62 fala da ruptura entre a Universidade e o regime, que a referida Crise significou, e relata alguns episódios relacionados com a proibição do Dia do Estudante de 24.03.1962.



Fonte do vídeo: «A Crise Académica de 62», Fundação Mário Soares, 2007 (dvd)
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O mundo está mais perigoso, mas não por eles serem loucos

 


«O discurso político sempre alimentou gangues inflamados, mesmo que agora a agressividade se expanda mais depressa pelas redes sociais. Trump não foi o primeiro a chegar ao poder na base da mentira e do insulto, muitos antes dele já haviam usado a mesma técnica, mas talvez tenha sido no nosso século quem a levou mais longe: nos comícios gritava-se “prendam Hillary”, e os seus apoiantes ainda acreditam na pretensa conspiração de democratas que sequestrariam crianças para rituais satânicos numa pizzaria em Washington.

Nesta deriva do discurso está a ser dado um novo passo, e não é pequeno, com a patologização dos adversários, que produz um efeito de agregação, mobilizando uma claque por via do ódio ao inimigo e desumanizando a outra parte. Junto os meus, ataco os outros, assusto os do meio, é a velha máxima da política-guerra. Por isso, o uso de designações patologizantes continuará sempre a ser feito por quem delas espera obter vantagem circunstancial. É assim no nosso mundo: tudo o que é simplificado tende a ser multiplicado. Mas, se este procedimento já é obscurantista quando coloniza o discurso banal, torna-se ainda mais absurdo quando é um instrumento de análise.

SÃO LOUCOS?

Putin está “seriamente doente”, escreve um cronista; está “paranoico, louco e raivoso”, diz uma cidadã russa imigrada. Ouve-se disto em todo o lado. O diagnóstico, mesmo que contrariado por alguns analistas, percorre avenidas no quotidiano desta guerra, e há muitos que entendem que se deve agravar a condenação do crime usando esse epíteto para carregar sobre o mandante. O efeito é paradoxalmente errado. Em primeiro lugar, porque obstaculiza a compreensão dos interesses que se movem em cada decisão guerreira, tornando-os obscuros e indecifráveis. Em segundo lugar, desculpabiliza a guerra com essa insanidade, retirando-a do domínio da racionalidade e até da responsabilidade (um louco pode ser responsabilizado?).

Em qualquer caso, a loucura não explica nem esta nem provavelmente nenhuma outra guerra moderna. Seria Hitler louco por precipitar a Guerra Mundial e depois conduzir o Holocausto? Seria Salazar louco por arrastar Portugal para uma Guerra Colonial sem solução? Ou, se se quiser, estaria Truman louco quando fez cair as bombas atómicas sobre Hiroxima e Nagasáqui, um ato militarmente inútil perante um adversário vencido, mas provocando uma tragédia desumana? Tais casos de escolhas exterminadoras evidenciam que estas guerras não foram o resultado de loucura, antes foram o resultado de cálculos segundo uma motivação estratégica ou um interesse próprio (a aniquilação genocida, a posição imperial, a demonstração de força). O mesmo se poderia perguntar da ocupação do Afeganistão pela NATO ou da Cimeira das Lajes: estariam loucos Bush ou depois também Aznar, Blair e Durão Barroso, mentindo para se precipitarem em guerras que viriam a perder? A desordem mental não tem qualquer valor explicativo para estas decisões.

É PIOR DO QUE A LOUCURA

A invasão da Ucrânia não resulta de um delírio de Putin. É função de um projeto que ele explicou claramente: restabelecer fronteiras do império czarista e corrigir o alegado erro da URSS na independência da Ucrânia. Confiante na superioridade militar e menosprezando um povo soberano que não reconhece, é evidente que Putin se enterrou numa guerra que só pode perder. Nenhum dos seus objetivos pode ser alcançado, e sairá disto numa posição enfraquecida. Em todo o caso, não foi a loucura que o determinou, mas sim um cálculo errado, que dá a vitória aos Estados Unidos. É pior do que a loucura irracional, é a vontade da guerra e da ocupação que conduz as tropas russas. Esta guerra é uma escolha, não é uma alucinação. É pior e faz do mundo um lugar mais perigoso.»

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17.3.22

Nossa Senhora em Lviv



 

Tudo o que tenha a ver com Fátima e Rússia anda ligado há mais de um século.

Em tempo de guerra, chegou há dois dias a Lviv, na Ucrânia, esta imagem de Nossa Senhora enviada pelo Santuário de Fátima. E Marcelo não foi lá levá-la? ‘Tá mal! Podia vir a gabar-nos de uma hipotética «vitória» da Ucrânia, sei lá…
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17.03.1945 – Elis Regina

 


Chegaria hoje aos 77 e morreu com apenas 36.
Viveu os «Anos de chumbo» da ditadura brasileira e não lhes passou ao lado, participando em vários movimentos culturais e políticos. Uma das suas canções – «O bêbado e o equilibrista» – funcionou como uma espécie de hino pela amnistia de exilados brasileiros.


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A estrada da vida

 


«Foi sobre o lago congelado de Ladoga que durante três invernos se fez o abastecimento da resistência soviética ao cerco nazi de Leninegrado, hoje São Petersburgo. Durou 30 meses e a rota do lago ficou conhecida como a "estrada da vida". A única.

Putin conhece bem a história, os seus pais são dos poucos casais que sobreviveram ao cerco nazi. Saberá por isso que perante a vontade dos ucranianos em resistir à sua "operação especial", Kiev encontrará certamente a sua "estrada da vida". O presidente russo sabe também que a Wehrmacht bateu em retirada ao 31º mês.

Fracassado o objetivo político de decapitar o governo democrático ucraniano e substituí-lo por um governo satélite do Kremlin, fracassado o objetivo militar de quebrar a coluna vertebral das Forças Armadas ucranianas, destruindo sua capacidade de resistir, resta-lhe o cerco, o bombardeamento indiscriminado, a supressão de civis pelas armas e pela fome. Resta-lhe o que os nazis fizeram a Leninegrado, assente no que o próprio fez em Grosny e Alepo, e hoje em Mariupol e Kharkiv. Resta-lhe ainda o arsenal nuclear para ameaçar a Humanidade.

Resta-lhe também o tipo de saída. E o que pode vender na televisão política de Moscovo como uma vitória. Porque para o mundo não haverá vitória alguma.

Do ponto de vista territorial, a questão é delicada, porque Putin não pode sair da Ucrânia apenas com o reconhecimento da Crimeia como espaço russo. Tenderá, por isso, a reclamar cada centímetro de terra conquistado. E este é um ponto vital da equação, na medida da disposição de Zelensky em abdicar da integridade territorial e a entregar a região de Donbass ou parte dela, em nome de uma paz mais rápida.

Outro ponto sensível será a questão dos alinhamentos internacionais. Porque é aqui que se joga o objetivo de "desmilitarização" anunciado pelo Kremlin. Hoje é tido como aceite a não entrada da Ucrânia na NATO. A Rússia, contudo, exigia também o "não alinhamento em blocos", e isto inclui a não adesão à União Europeia (que também contempla cláusulas de segurança mútua).

Este parece um custo político que Zelensky não pode acarretar. A revolução da Praça de Maidan fez -se em nome da adesão à UE. E a adesão ao clube europeu corporiza o futuro pelo qual Kiev inspirou os seus cidadãos a resistir. É a sua "estrada da vida".

Zelensky poderá sair com uma estrada europeia para oferecer e com uma auto-estima nacional imaculada, mas com menos terra. Putin poderá sair com mais terra, sem a NATO em Kiev, mas com a fronteira de Helsínquia alarmada e de porta aberta para a Aliança Atlântica.»

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16.3.22

Eu sou a chuva que lança a areia do Saara

 


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16.03.1974 – O falhanço das Caldas

 


Há 48 anos, o golpe falhado das Caldas foi um passo importante para a queda da ditadura.

Em 2014, por ocasião do 40º aniversário dos acontecimentos, o Diário de Notícias ocupou duas páginas com vários textos sobre «A coluna rebelde que Spínola e Costa Gomes impediram de ocupar o Aeroporto de Lisboa».

Clicar AQUI para ver, num post do ano passado, excertos de um destes textos, bem como a nota oficiosa difundida então pelo governo e o vídeo com as declarações de Marcelo Caetano sobre os acontecimentos, na sua última «Conversa em Família».
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Odessa, 12.03.2022

 



Música, sempre música.

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A coragem acordada da “burocrata” Ovsyannikova

 


«Já todos viram o vídeo. Uma produtora e jornalista do Canal 1, televisão estatal e principal fonte de informação para milhões de russos, cometeu a loucura de se exibir ao mundo e ao regime, mostrando, atrás da pivot do telejornal, um cartaz onde se lia: “Não acredite na propaganda. Eles estão a mentir.” E, em inglês, “Russians against the war”. Enquanto isso, gritava, “parem a guerra, não à guerra”. A pivot do telejornal tentou falar mais alto do que ela.

Disse “loucura”, na medida em que a coragem desmedida se aproxima sempre da alguma inconsciência. Mas o ato foi refletido. Marina Ovsyannikova gravou previamente um vídeo, que divulgou através da OVD-Info, em que expressa a sua vergonha por trabalhar numa máquina de propaganda do Kremlin e ter permitido a “zoombificação do povo russo”. Fez uma lista dos seus próprios silêncios, perante os abusos crescentes do opressor. E apelou a que todos os russos se juntassem aos protestos, com aquela vontade que têm os que seguem à frente e esperam, umas vezes com razão e outras sem ela, que uma multidão os acompanhe: “Só nós podemos parar esta loucura. Vá aos protestos. Não tenha medo. Eles não nos podem prender a todos.”

Ovsyannikova foi detida e já está em liberdade, com uma multa menor. Mas arrisca-se a uma pesada pena de prisão. E, quando os holofotes estiverem longe dela, à perseguição mais informal. Desde o início da guerra, quase 15 mil pessoas, incluindo crianças e idosos, foram detidas por participarem nos protestos. Mais de vinte meios de comunicação foram bloqueados pelo regulador ou optaram por encerrar. O Facebook e o Instagram também foram banidos (tratarei disso noutro texto, onde incluirei os nossos próprios abusos).

Pesará, para este gesto destemido de Ovsyannikova, o facto do seu pai ser ucraniano (a mãe é russa). Como temos observado, a comoção dos europeus com esta guerra distingue-se radicalmente da total indiferença que a maioria mostrou com outras em que os seus governos até participaram como invasores e agressores. Também nelas morriam pessoas concretas, com nomes e rostos e filhos, vítimas de crimes concretos. As guerras não são assim tão diferentes umas das outras. Mas a proximidade oferece sensibilidade.

A vergonha de Ovsyannikova será acompanhada pelo dedo acusador de alguns que, tendo nascido em democracia, nunca conheceram o medo e acham que a coragem de agora não apaga o “colaboracionismo” anterior. Nunca tiveram esse medo como normalidade. Nem sequer a ideia de que não há escolha. Muitos experimentam isso na sua vida profissional, com muito menos risco, e respondem para si mesmos – “são as ordens que tenho”, “não sou eu que faço as regras”, “as coisas são como são”, “tenho filhos para alimentar”. Mas não conseguem imaginar o que seja isso como como regra social, política e cultural estável, imposta por um ditador.

Como explicou Hannah Arendt, olhando para alguém com crimes muitíssimo mais sinistros do que os duma produtora e jornalista televisiva, as tiranias não se fazem de monstros, fazem-se de burocratas que se limitam a cumprir, com zelo, as ordens que recebem, alienados de qualquer noção do bem ou do mal. Na realidade, isso até acontece fora das tiranias. Aquilo o gesto de Marina Ovsyannikova não é de arrependimento, como ela própria o descreveu. É de emancipação. É verdade que as pessoas politicamente conscientes nos devem sempre merecer mais respeito, porque nunca desistiram. Mas é quando as outras se libertam das amarras da opressão que determinam o seu dia a dia que as ditaduras podem cair. E é quando pessoas com poder no regime passam por este processo – porque se apercebem da injustiça ou por oportunismo – que os ditadores tremem. Porque se desfaz a obediência burocrática que os sustém.

Por mais injusto que seja, foi Humberto Delgado, vindo convictamente de dentro do regime, e não o PCP, quem mais fez tremer as fundações do salazarismo. Foram os oficiais que faziam a guerra colonial que deram o golpe letal ao Estado Novo. Claro que para alguns acordarem da “zoombificação” de que Marina Ovsyannikova fala é preciso que outros, com uma coragem constante e politicamente consciente, aguentem a resistência nos seus tempos mais solitários. Mas é quando a consciência moral dos insossos funcionários das ditaduras acorda que tudo pode mudar. “Não nos podem prender a todos”, disse Marina. Essa é a certeza de que a maioria precisa para se revoltar. Começa sempre pela coragem de poucos, que vão à frente.»

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15.3.22

15.03.1961 – Angola, no «dia do terror»

 


Foi nessa data que se deu o ataque da UPA no Norte de Angola, naquele que foi considerado o primeiro acto para a libertação do país e que marcou o chamado «dia do terror». O vídeo resume bem os acontecimentos.

Foi também nesse dia que, pela primeira vez, os Estados Unidos votaram positivamente uma moção contra Portugal no Conselho de Segurança da ONU.

Nos primeiros dias de Março, o próprio Kennedy, através do embaixador em Lisboa, envolveu-se pessoalmente na questão, insistindo com Salazar para que Portugal anunciasse publicamente o princípio da autodeterminação e independência de Angola. Diz Franco Nogueira (Salazar – A resistência, Vol. V, p.211) que, no fim de uma reunião com o embaixador Elbrick, Salazar terá concluído: «Ouvi-o atentamente e agradeço-lhe a sua visita. Muitos cumprimentos ao Presidente Kennedy. Muitos boas tardes, senhor embaixador.» E nada mudou na posição portuguesa, como é sabido.

Assim se chegou a 15 de Março, quando Libéria, Ceilão e República Árabe Unida apresentaram um projecto de resolução no Conselho de Segurança, que sublinhava os perigos que a situação em Angola representava para a paz e para a segurança mundiais e exigia expressamente reformas que pusessem fim ao colonialismo. Kennedy deu instruções para que os Estados Unidos votassem positivamente, juntando-se assim aos três proponentes e à URSS. Cinco votos a favor, portanto, mas seis abstenções (França, Inglaterra, China, Chile, Equador e Turquia): a resolução não obteve a maioria de votos necessária para ser aprovada, mas as relações dos Estados Unidos com o salazarismo ficaram profundamente afectadas. Quanto a Angola, esperaria mais 14 anos para ser independente.


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Marina Ovsyannikova

 



Esta produtora do Channel One na Rússia, que preparou e fez o protesto durante a emissão, foi detida mas já apareceu em tribunal com um advogado.

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Jorge Silva Melo

 

@André Ruivo
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E cancelar a dívida externa da Ucrânia?

 


«Há uma razão para a comunidade imigrante ucraniana ser tão importante em Portugal. A maioria destas pessoas chegou durante a década de 1990, enfrentou a clandestinidade e a xenofobia e trabalhou muito abaixo das qualificações que trazia. Chegaram em busca de melhores condições de vida, fugindo de uma economia frágil, marcada pela corrupção endémica e pela formação de oligarquias locais, tal como denunciado por organizações como a Transparência Internacional ou Repórteres sem Fronteiras.

Para além do êxodo massivo da sua população - a Ucrânia é o oitavo país do Mundo com mais emigrantes - a crise, a pandemia e a guerra forçaram a Ucrânia a recorrer a sucessivos empréstimos do FMI e da Comissão Europeia. Como sabemos por cá, estas "ajudas" saem caras: a privatização da energia e da banca pública, a introdução de limites nominais à despesa do Estado (mesmo durante a pandemia) são exemplos do tratamento imposto ao povo ucraniano até às vésperas da invasão russa.

A resistência à agressão e a necessidade de reconstrução impõem agora uma pressão insuportável sobre o Orçamento do país mais pobre da Europa (lugar disputado com a Moldávia). Com uma economia capturada por oligarcas regionais - nas indústrias extrativa e financeira -, não se vislumbra como a Ucrânia encontrará os recursos para lançar projetos infraestruturais e desenvolver-se como democracia. Os juros que a Ucrânia paga por uma dívida externa que ascende a 125 mil milhões de euros correspondem a 12% do orçamento anual do país e servem de justificação para o adiamento da reconstrução dos serviços públicos essenciais, bloqueada pelas regras de austeridade impostas pelo FMI e pela Comissão Europeia.

Por todas estas razões, levanta-se na Ucrânia, entre quem resiste à invasão, a exigência do cancelamento da dívida externa do país, em particular a parcela pertencente ao FMI. Esta medida não trará a paz, mas é essencial para oferecer a este povo já tão castigado um horizonte de democracia e direitos sociais.»

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14.3.22

Música, sempre

 


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Notícias de um outro mundo

 


Ler: 14.03.1975 – «O dia em que o capitalismo se afundou»
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As “oportunidades” da guerra

 


«No meio das desgraças, das crises, das guerras, aparece sempre o discurso das “oportunidades” que se abrem para alguns perante o cadafalso da maioria. Na última segunda-feira, ao assistir-se à apresentação do plano da Comissão Europeia para tornar a Europa independente da importação de combustíveis fósseis russos antes de 2030, era nisso que se pensava.

Não sei quantas vezes a palavra “oportunidade” foi proferida mas foram muitas. Perante a guerra da Ucrânia, aquilo que até há dias eram obstáculos inamovíveis e impossibilidades, tornou-se num mundo de “oportunidades” para uma Europa mais “limpa”, “sustentável” e “ecológica”, disposta à transição energética para as chamadas energias verdes – algumas não tão verdes quanto isso e de eficiência mais do que discutível – através da energia solar fotovoltaica, eólica ou uso de bombas de calor.

Nada de equívocos. A questão aqui não é essa passagem. É porque é que não se investiu fortemente antes na substituição dos combustíveis fósseis por fontes de energia limpa? Porque é que existe sempre esta sensação que politicamente não se planeia e projecta, agindo-se com ponderação, mas apenas se reage aos acontecimentos quando é tarde de mais? Não são “oportunidades”. São contingências e também, não sejamos inocentes, episódios em directo de como o capitalismo se metamorfoseia, adequando-se a todas as situações, assumindo agora as novas roupagens da defesa do ambiente. Só faltou sugerir-se aos milhares de condutores citadinos (porque os que vivem nas periferias ou aldeias é mais difícil) que faziam filas nas bombas para se abastecerem de combustível, para largarem de imediato o amado popó e começarem a andar em bicicletas.

Não há nada como uma guerra para a Europa se tornar mais consciente ambientalmente. Ironizo, claro. A pandemia, principalmente na fase inicial, também provocou o mesmo tipo de percepção, como se tivesse uma função purificadora, abrindo espaço para um outro ciclo de produção e consumo. No meio da tragédia também se aviltaram “oportunidades” de negócio. Que o digam as multinacionais da tecnologia. Da mesma maneira deverão estar hoje a esfregar as mãos de contentes empresas da indústria de armamento, perante a corrida às armas e o investimento em defesa militar que promete aumentar com substância.

O mesmo tinha acontecido aquando da crise económico-financeira de 2008. Dizia-se que seria a “oportunidade” de recentrar o conceito de democracia, de políticas publicas e de desenvolvimento. Era preciso superar a visão que confunde desenvolvimento com crescimento económico e um tipo de progresso material supostamente ilimitado. O desenvolvimento precisava de ser humano (melhorar a qualidade de vida das pessoas), social (não apenas de algumas pessoas, mas de uma larga maioria) e sustentável (das pessoas que estão vivas hoje, sem afectar as possibilidades das que viverão no futuro). Anos depois vivemos em crise permanente, onde de “oportunidade” em “oportunidade” para alguns, os do costume são sempre os sacrificados, à medida que os cofres públicos vão sendo esvaziados. Neste caso, para além dos que são submetidos directamente à violência e à morte na Ucrânia, estão todos os outros, pela Europa e não só, que irão pagar economicamente os efeitos desta guerra.

Para uns Putin é louco e não existe racionalidade nenhuma na sua acção. Para outros trata-se de um intolerável gesto expansionista. Outros avisam que é a tradução do conflito entre a Rússia e Nato, no território da Ucrânia, que conduzirá a mais uma longa crise. E para outros ainda, não é a guerra que provocará qualquer crise, mas é a crise económica, que já vinha de trás, que está a originar respostas militares e económicas. Independentemente de quem estiver certo, uma coisa é garantida: há quem viva muito bem com crises. Ganha ao destruir. Ganha ao reconstruir. O bem-comum, e os cidadãos comuns, é que perdem.»

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13.3.22

Entretanto no Chile

 


Gabriel Boric presta homenagem a Salvador Allende, antes de entrar em La Moneda como presidente pela primeira vez.
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Pois...

 

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Onde estão as elites nacionais?

 


«Escrevo numa situação de emergência mundial, como a que atualmente vivemos, com as consequências que daí poderão advir, de um agravar do conflito à escala europeia e até mundial. Não é mesmo de excluir a possibilidade de um conflito nuclear.

Dirijo-me às elites culturais, científicas, religiosas, sindicais, políticas e outras.

Nos últimos dias, temos assistido a situações trágicas de uma crueldade inimaginável, com assassinato indiscriminado de populações indefesas. Estamos perante mais uma catástrofe humanitária com milhões de refugiados, com um povo que está a ser cruelmente dizimado e com um outro povo aterrorizado, pela repressão a que está sujeito, e que será também vítima de pobreza extrema e fome.

Não se vislumbram negociações que conduzam à paz ou, pelo menos, a um cessar-fogo que permita a segurança dos corredores humanitários. As negociações de 10 de março terminaram com declarações cínicas e de uma cruel insensibilidade por parte do representante russo.

Neste contexto, não é possível manter neutralidade. Essa neutralidade será cúmplice do crescendo trágico do conflito. As elites, portuguesas e de todo o mundo, têm a obrigação moral de liderar todo o tipo de manifestações contra a guerra e de solidariedade para com os povos que sofrerão as suas consequências. Não é admissível que elites privilegiadas mantenham a sua passividade. Temos assistido à guerra em direto, com comentadores que, para além de constatarem o óbvio, não cedem à tentação da intelectualidade portuguesa – refletir, procurando nos erros do passado (do Ocidente, é claro) uma imperdoável desculpabilização da parte agressora, como é exemplo paradigmático o artigo de Boaventura Sousa Santos de dia 10, neste jornal.

Mesmo os que condenam a guerra provocada pela abjeta agressão russa, não resistem às discussões aliciantes sobre a postura empedernida do PCP, a hipocrisia da “esquerda” bloquista ou sobre as análises pró-Putin de altas patentes militares. Agir não é hábito das elites portuguesas, o que confronta drasticamente com a habitual generosidade solidária da sociedade civil. Esta, como sempre, atua de forma criativa e altamente corajosa, quase fazendo esquecer a inação das elites pensantes. Mas as individualidades lá estão, servindo-se desta generosidade para alimentar os seus egos. Onde estão os políticos com espinha dorsal, como Mário Soares ou Sá Carneiro, entre outros? Onde estão as autoridades religiosas?

Finalmente, ao fim de 14 dias de um conflito devastador, aparece a notícia de uma possível mediação do Papa. Só hoje, após dois milhões de refugiados, centenas de mortos e de cidades completamente arrasadas! E a ONU? Não era suposto que garantisse a segurança dos corredores humanitários?

Parece, de facto, haver um erro fatal nas democracias liberais em que temos o privilégio de viver – o de criar um entorpecimento de um grande número de cidadãos, cada vez mais distantes entre si e das lideranças políticas, entregues à subcultura das redes sociais e, por outro lado, políticos mais interessados na promoção pessoal e dos interesses que servem do que em defender prioritariamente as populações e os valores da democracia que outros conquistaram, muitas vezes à custa do sacrifício das próprias vidas.

Onde estão as centrais sindicais (pergunta ingénua), os líderes partidários, as juventudes (que convocaram uma manifestação para o próximo dia 26 de março! – um mês após o início do conflito!)? Onde estão as elites culturais, científicas, religiosas, sindicais, políticas e outras?

Não é tempo de parar para pensar, de contextuar como foi possível chegar até aqui. Já é tarde de mais e não haverá, com certeza, unanimidade. O tempo urge. A ameaça é clara. Tudo pode acontecer numa questão de dias. É tempo de agir, promovendo grandes mobilizações para ações, de todo o tipo, de repulsa pela guerra e de exigência de um cessar-fogo imediato. Que sejam também ações de solidariedade para com o povo russo, opositores à guerra, sujeitos, também eles, a uma repressão criminosa. E que estas mobilizações incluam todos o que se opõem à guerra abjeta. Não é tempo de exclusões. Cada hora que passa traduzir-se-á no agudizar do conflito, com tudo o que de trágico isso acarreta.

A força das manifestações de massas a favor da paz e da fraternidade entre os povos desempenhou um papel muito importante para o termo de conflitos anteriores (Vietname, Iraque, Checoslováquia, etc). Não esqueçamos estas impressionantes manifestações de força e de coragem. O contributo de cada um, por mais discreto que seja, é essencial. Não deixemos que esta inação se transforme num peso de consciência que será insuportável para todos.»

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