«Cobrir, em termos comunicacionais, uma guerra como a da Ucrânia é muito difícil. Implica novas regras de boa comunicação e deontologia jornalística, mantendo as antigas, adaptadas a um conflito com características inéditas. Muitas imagens da guerra actual parecem-se com outras relativamente recentes: bombardeamentos da faixa de Gaza e no Iémen, ataques na Bósnia, na Sérvia, na Líbia, na Somália, na Guerra do Golfo. Do mesmo modo, a presença da memória da II Guerra Mundial, principalmente na imagem das cidades devastadas sem distinção entre prédios “civis” e objectivos militares, parece também servir de comparação. Eu insisti no “parecem” porque penso que esta guerra tem características novas e problemas novos, todos muito centrados na comunicação social.
Há, para já, duas coisas que são novas, até porque a velha máxima de que a quantidade gera a qualidade é relevante, entendendo-se como qualidade não um conceito valorativo, mas uma nova forma de identidade, e que são: a presença maciça da comunicação social, produzindo ou incorporando na sua informação milhares de vídeos, e aquilo a que a CNN americana e a portuguesa chamam “breaking news”, ou seja emissões de quase 24 horas por dia sobre o mesmo assunto, com a excepção nacional, obviamente, do futebol.
Não sei quantos jornalistas estão na Ucrânia e nos países limítrofes, com excepção da Rússia onde não podem trabalhar a não ser clandestinamente, mas devem ser várias dezenas. Isso significa uma cobertura intensiva, desigual no seu valor e dependente do conhecimento, medo e comodismo do correspondente, e que tem sido muito centrada nos refugiados, numa primeira fase, e agora nas destruições civis. Por razões óbvias, as informações sobre a guerra propriamente dita são escassas e muito dependentes do acesso aos campos de batalha. Aqui não há jornalistas “embebidos” como na guerra do Golfo nas unidades militares, quer nas russas, quer nas ucranianas, e é também neste terreno que há muita desinformação dos dois lados. Sabemos pouco sobre a frente de batalha, mas isso é normal na condução de operações militares. O que é grave é que essa ignorância não pareça ser sentida como importante, no meio da multidão de imagens muito mais “populares”.
A transmissão principalmente nas televisões, o meio mais poderoso na sua comunicabilidade e empatia, de 24 horas por dia, levanta sérias questões de qualidade do jornalismo e da sua função de dar a todos, em democracia, informações rigorosas para poderem ter opinião e decidirem. Uma guerra é um tema emocionalmente forte, e 24 horas de guerra por dia presta-se a dois efeitos aparentemente contraditórios: um, um efeito de viciação; outro de cansaço. Quer num caso, quer noutro, o rastro comunicacional torna-se essencialmente emotivo e pouco racional, o que o deixa muito propício à manipulação. No contexto de mentalidade, cultural, social e política, actual torna-se mais um factor agravante da radicalização numa sociedade que já o é em demasia.
Numa democracia, as emoções têm um papel decisivo e tudo as favorece, enquanto a necessidade da razão tem uma vida difícil. As emoções moldam a opinião pública com facilidade, e a razão, não. A comunicação social, principalmente a televisão, que é claramente preponderante mesmo em relação ao papel das chamadas “redes sociais”, comunica facilmente a emoção, e com 24 horas em cima, com uma repetição sistemática de imagens fortes, esmaga a razão. Não podemos deixar que a razão se refugie apenas na reacção do medo, ele próprio uma emoção. O caso da discussão sobre a “zona de exclusão aérea” é um desses casos.
Podemos achar que toda esta imersão emotiva é por uma boa causa, a causa da indignação colectiva contra a violência agressiva de Putin e dos seus crimes, mas não basta ter uma boa causa, é preciso transformá-la em políticas democráticas, no contexto da vida pública em liberdade, e defrontar muitas questões que a emoção não só não cuida, como impede. Políticas de alianças e defesa, políticas energéticas, políticas de independência alimentar, políticas de emigração e refúgio, políticas face à pandemia, políticas externas para além do teatro europeu, políticas de liberdade e contra a censura, tudo numas circunstâncias em que a guerra actual mudou quase tudo. Tudo isto devia estar a ser discutido desde já, para além dos anátemas e da arregimentação, mas isso pode ser mau para as audiências, porque, quer por viciação, quer por cansaço, as pessoas não estão para aí viradas.
Mas sabem qual é alternativa? A alternativa é usar a superficialidade das emoções para fazer uma caça às bruxas, ou para fazer passar pseudo-argumentos que são uma patetice mas circulam. Como, por exemplo, dizer que os ucranianos estão a resistir aos russos porque como povo já tinham resistido à obrigatoriedade da vacinação. Os portugueses pelo contrário, como foram que nem cordeirinhos vacinar-se a mando do “Estado”, não levantariam um dedo se fossem invadidos pelos espanhóis. O desmame das “breaking news” vai ser complicado, mas é necessário.»
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