13.3.22

Onde estão as elites nacionais?

 


«Escrevo numa situação de emergência mundial, como a que atualmente vivemos, com as consequências que daí poderão advir, de um agravar do conflito à escala europeia e até mundial. Não é mesmo de excluir a possibilidade de um conflito nuclear.

Dirijo-me às elites culturais, científicas, religiosas, sindicais, políticas e outras.

Nos últimos dias, temos assistido a situações trágicas de uma crueldade inimaginável, com assassinato indiscriminado de populações indefesas. Estamos perante mais uma catástrofe humanitária com milhões de refugiados, com um povo que está a ser cruelmente dizimado e com um outro povo aterrorizado, pela repressão a que está sujeito, e que será também vítima de pobreza extrema e fome.

Não se vislumbram negociações que conduzam à paz ou, pelo menos, a um cessar-fogo que permita a segurança dos corredores humanitários. As negociações de 10 de março terminaram com declarações cínicas e de uma cruel insensibilidade por parte do representante russo.

Neste contexto, não é possível manter neutralidade. Essa neutralidade será cúmplice do crescendo trágico do conflito. As elites, portuguesas e de todo o mundo, têm a obrigação moral de liderar todo o tipo de manifestações contra a guerra e de solidariedade para com os povos que sofrerão as suas consequências. Não é admissível que elites privilegiadas mantenham a sua passividade. Temos assistido à guerra em direto, com comentadores que, para além de constatarem o óbvio, não cedem à tentação da intelectualidade portuguesa – refletir, procurando nos erros do passado (do Ocidente, é claro) uma imperdoável desculpabilização da parte agressora, como é exemplo paradigmático o artigo de Boaventura Sousa Santos de dia 10, neste jornal.

Mesmo os que condenam a guerra provocada pela abjeta agressão russa, não resistem às discussões aliciantes sobre a postura empedernida do PCP, a hipocrisia da “esquerda” bloquista ou sobre as análises pró-Putin de altas patentes militares. Agir não é hábito das elites portuguesas, o que confronta drasticamente com a habitual generosidade solidária da sociedade civil. Esta, como sempre, atua de forma criativa e altamente corajosa, quase fazendo esquecer a inação das elites pensantes. Mas as individualidades lá estão, servindo-se desta generosidade para alimentar os seus egos. Onde estão os políticos com espinha dorsal, como Mário Soares ou Sá Carneiro, entre outros? Onde estão as autoridades religiosas?

Finalmente, ao fim de 14 dias de um conflito devastador, aparece a notícia de uma possível mediação do Papa. Só hoje, após dois milhões de refugiados, centenas de mortos e de cidades completamente arrasadas! E a ONU? Não era suposto que garantisse a segurança dos corredores humanitários?

Parece, de facto, haver um erro fatal nas democracias liberais em que temos o privilégio de viver – o de criar um entorpecimento de um grande número de cidadãos, cada vez mais distantes entre si e das lideranças políticas, entregues à subcultura das redes sociais e, por outro lado, políticos mais interessados na promoção pessoal e dos interesses que servem do que em defender prioritariamente as populações e os valores da democracia que outros conquistaram, muitas vezes à custa do sacrifício das próprias vidas.

Onde estão as centrais sindicais (pergunta ingénua), os líderes partidários, as juventudes (que convocaram uma manifestação para o próximo dia 26 de março! – um mês após o início do conflito!)? Onde estão as elites culturais, científicas, religiosas, sindicais, políticas e outras?

Não é tempo de parar para pensar, de contextuar como foi possível chegar até aqui. Já é tarde de mais e não haverá, com certeza, unanimidade. O tempo urge. A ameaça é clara. Tudo pode acontecer numa questão de dias. É tempo de agir, promovendo grandes mobilizações para ações, de todo o tipo, de repulsa pela guerra e de exigência de um cessar-fogo imediato. Que sejam também ações de solidariedade para com o povo russo, opositores à guerra, sujeitos, também eles, a uma repressão criminosa. E que estas mobilizações incluam todos o que se opõem à guerra abjeta. Não é tempo de exclusões. Cada hora que passa traduzir-se-á no agudizar do conflito, com tudo o que de trágico isso acarreta.

A força das manifestações de massas a favor da paz e da fraternidade entre os povos desempenhou um papel muito importante para o termo de conflitos anteriores (Vietname, Iraque, Checoslováquia, etc). Não esqueçamos estas impressionantes manifestações de força e de coragem. O contributo de cada um, por mais discreto que seja, é essencial. Não deixemos que esta inação se transforme num peso de consciência que será insuportável para todos.»

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