19.2.22

Amigos imaginários

 

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Uma sanduiche comida num avião?

 


Não deixem de ler esta magnífica descrição que Alexandra Prado Coelho faz de uma refeição a bordo de um avião.

Queria falar-vos da sanduíche que comi no avião
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António Gedeão (Rómulo de Carvalho) morreu num 19 de Fevereiro





Rómulo de Carvalho / António Gedeão foi um grande professor de Química, estudioso e também grande divulgador da História da Ciência, que os seus alunos do Liceu Pedro Nunes e do Liceu Camões nunca esqueceram.

Também poeta, autor de numerosos livros e do texto que deu vida à inesquecível canção Pedra Filosofal.

Clicar AQUI para voltar a ouvir Manuel Freire e para ver um manuscrito de Gedeão com parte do poema «Como será estar contente», publicado em Máquina de Fogo, 1960.
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Moscovo, Pequim, Washington: o novo jogo a três



 

«Por trás da “guerra híbrida” na Ucrânia, pode entrever-se uma nova dinâmica entre três potências – Estados Unidos, China e Rússia. Ao apoiar Moscovo na sua oposição ao alargamento da NATO na Europa de Leste, Pequim reforça a “amizade” entre os rivais dos Estados Unidos. O seu objectivo último é transformar os equilíbrios geopolíticos do mundo, algo que Washington não aceita. Moscovo quer afastar os EUA da Europa, Pequim quer a América mais longe da Ásia. Assinaram um documento em que proclamam “uma amizade sem limites”.

Não se trata de uma verdadeira aliança estratégica, mas de uma parceria temporária. Moscovo tem boas razões para temer uma futura hegemonia chinesa na Eurásia. Sabe que dentro de uma ou duas décadas perderá a superioridade militar perante a China, o que diminuirá o seu estatuto.

Note-se que, em 2008, Pequim não aprovou o ataque russo na Geórgia e ainda não reconheceu a anexação de Ialta. Mantém a doutrina da intangibilidade das fronteiras. Pequim e Moscovo têm neste momento um interesse comum: limitar o estatuto internacional dos Estados Unidos. E analisaram a nova conjuntura política como favorável.

A Rússia anunciou recentemente novos contratos para venda de petróleo e gás à China, embora num volume que não tem comparação com as exportações para a Europa. Na perspectiva de sanções económicas americanas, Moscovo conta com a ajuda da China. “A China é a nossa almofada estratégica”, diz Serguei Karaganov, conselheiro do Kremlin.

Neste triângulo, a Rússia é o elo fraco, o chamado junior partner, tanto do ponto de vista económico e tecnológico como, sobretudo, do ponto de vista demográfico. Mas Vladimir Putin tomou a iniciativa e tem-se mantido nos últimos meses como a figura central da actualidade internacional. Putin não teme a NATO nem a Ucrânia. Precisa da Ucrânia para recomeçar um velho sonho imperial, além de lhe desagradar o possível efeito desestabilizador de democracias nos antigos Estado soviéticos.

Os analistas russos gostam de evocar Zbigniew Brzezinski, um dos papas da geopolítica americana no século passado. No seu livro The Grand Chessboard, de 1997, Brzezinski defendia a tese de que a independência da Ucrânia modificava a natureza do Estado russo. “Sem Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império na Eurásia.” Só a integração da Ucrânia na órbita euro-atlântica travaria a “reemergência do império que torna a Rússia agressiva” e impede a sua democratização.


18.2.22

Tarrafal – a homenagem justa

 


No dia 18 de Fevereiro de 1978, milhares de pessoas percorreram Lisboa sob chuva intensa, acompanhando a transladação dos restos mortais dos que perderam a vida no Campo de Concentração do Tarrafal.
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18.02.1932 – Miloš Forman

 


Miloš Forman, o cineasta nascido checo, depois também norte-americano, chegaria hoje aos 90. Teve uma infância complicada com o pai, judeu, preso pela Gestapo quando tinha apenas 8 anos e levado para Buchenwald onde veio a morrer em 1944, um ano depois de a mãe ter tido a mesma sorte em Auschwitz. Durante a invasão da Checoslováquia, em 1968, Miloš partiu para os Estados Unidos e em 1977 adquiriu a sua segunda nacionalidade.

Pretexto para recordar três filmes «monstruosos»: Amadeus, Voando sobre um ninho de cucos e o primeiro que vi,  sem nunca mais perder o rasto do autor: O baile dos bombeiros
Clicar AQUI para os ver num post do ano passado. .
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O país segue dentro de momentos

 


«Contas feitas e estando a viver lá fora desde o longínquo ano de 2007, pela primeira vez vou votar nas legislativas. Sim, esta história parece um disco riscado, mas não é. Ao contrário, é, e tem sido, uma perfeita anedota.

Felizmente para quem está lá fora, cá fora, a anedota aproxima-se rapidamente do fim. Infelizmente, e por isso estas desculpas, para quem está em Portugal a repetição do voto dos emigrantes recenseados pelo círculo da Europa, apesar de justa, vem com o preço do adiamento da tomada de posse do novo Governo, arrastando 10 milhões de portugueses para quase mais dois meses de duodécimos.

António Costa já veio pedir desculpa. Agora. Depois de 14 anos de tentativas goradas para poder votar numas legislativas. Por lhe tocar na pele quando há 14 anos nos toca na pele.

Aquando da saída definitiva de Portugal em 2007, ainda tínhamos José Sócrates como primeiro-ministro. De então para cá, tive de tudo um pouco para poder votar nas legislativas precedentes, desde a impossibilidade de uma marcação no Consulado à impossibilidade de recenseamento no Consulado, desde viagens a Portugal onde da Junta de Freguesia me recambiaram para o Consulado até ao regresso ao Consulado de onde me recambiaram para a Junta de Freguesia. Desde a mudança da morada no Cartão de Cidadão à impossibilidade de levantar o mesmo cartão por três vezes porque o Consulado, já aqui o disse, nunca está aberto e não responde a e-mails ou atende o telefone e o site não funciona e por três vezes repetir todo o processo de mudança de morada sendo que, por esta altura, a intervenção divina implementou o recenseamento automático para quem já vive lá fora, dando início à presente epopeia do voto postal - epopeia essa com início em 2019 e, neste momento, numa verdadeira segunda temporada cujos últimos episódios estão marcados para 12 e 13 de Março por voto presencial e 23 de Março por voto postal.

E sublinho o voto postal e a sua importância porque a 12 e 13 de Março não temos comboios para o centro de Londres por necessidade de manutenção dos caminhos-de-ferro.

Sem comboios, e de modo a garantir o nosso voto, das duas uma: ou demoramos quatro horas em transportes entre ida e volta ou de bicicleta fazemos 50 quilómetros ao todo, única e exclusivamente para exercer o direito de voto há tanto reclamado. E sim, aquando das presidenciais do ano passado, fomos de bicicleta até ao Consulado.

Mas, seguindo o exemplo do Reino Unido, onde existem apenas dois consulados entre Londres e Manchester para uma população de mais de 400 mil portugueses, é fácil constatar que nem todos poderão deslocar-se de bicicleta. Aliás, estivessem as legislativas dependentes deste meio de locomoção e a abstenção seria o seu mais que natural resultado. Ou isso, ou a eleição garantida de um deputado por dois votos apenas.

O pai de António Costa, Orlando Costa, foi, tal como os nossos avós, preso pela PIDE. No caso de Orlando Costa, cerca de três vezes. O crime? A luta pela liberdade, pela independência, pela justiça, pela igualdade, a autodeterminação dos povos, o escrutínio universal, uma vida melhor, paz, pão, habitação, saúde, educação. Um futuro.

Por uma questão de respeito para quem pagou com o encarceramento, sem sequer mencionar as inúmeras torturas, os assassinatos, mais a sociedade “pidesca” onde estávamos inseridos, é vital a luta pelo voto de todos, emigrantes incluídos. Porque esquecer a história é garantir a repetição da mesma e ela aí está já sentada no Parlamento.

Se o voto da emigração tem um preço? Sim, o preço do tempo, quase dois meses com o país em suspenso. As minhas desculpas, mais uma vez. O país segue dentro de momentos. Já a luta pela liberdade nunca parou.»

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17.2.22

Para mais tarde recordar

 

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Alípio de Freitas – seriam 93

 


Quem o conheceu nunca esquecerá a força que dele emanava, quem quiser saber como a Wikipédia o descreve pode consultá-la, mas vale mais ler a sua vida resumida pelo próprio na Introdução do livro Alípio de Freitas, Palavras de Amigos, Edições Pangeia, 2017. E ouvir a canção que Zeca Afonso lhe dedicou, claro.)

«Alípio de Freitas, mais propriamente Alípio Cristiano de Freitas.
Nasci em Bragança, Trás-os-Montes, nos contrafortes da Serra de Montesinho, em 1929. O meu pai era funcionário público dos CTT, a minha mãe, mulher de grandes qualidades (e grandes ambições) era apenas dona de casa. Frequentei a escola primária na Escola da Estacada, sendo meu primeiro mestre o Professor Pires. Fui logo matriculado na 2.ª classe, pois, quando cheguei à escola oficial, já sabia ler, escrever, e fazer contas.

Ensinou-me a minha mãe, embora quanto a ler, acho, até hoje, “sempre soube fazer". A oficina de ferreiro do Alfredo, na rua do Loreto, era em frente à minha casa. Como trabalhador, andarilho e militante frequentei outras escolas que não a da Estacada e do Abade Buíça (Vinhais) e tive outros professores: as oficinas de ferreiro e mecânica do Alfredo e do “seu” Manuel Brasileiro, e ainda "as lições particulares" do tio Baptista e do Tita. Todos tiveram grande importância naquilo que foi a minha vida, cada um a seu modo e a todos recordo, ainda hoje, com uma saudade que dói.

Na oficina do Alfredo eu passava todo o meu tempo disponível, vestindo uma bata de ganga e calçando umas botas grossas. Lá, eu fazia tudo o que a prudência do Alfredo permitia: puxava o fole da fornalha, deitava carvão, arrumava as ferramentas e via o que ele fazia e "como" o fazia e, mais do que tudo, ficava atento às conversas que as pessoas tinham com ele, quando chegavam para consertar ferramentas, ferrar carros de bois ou arados.
Tudo gente pobre, que trabalhava de sol a sol e, mesmo assim, vivia mal. Também ia para a oficina mecânica do "seu" Manuel Brasileiro. Também de bata de ganga e botas cardadas, "ajudava-o" ou ficava a ouvi-lo falar do Brasil, sobretudo do Rio de Janeiro.

Quando ele começava a falar do Brasil comigo, parava o que estava a fazer, limpava as mãos num trapo, puxava um cigarro Kentucky e falava de ficar comovido. Perguntei por que tinha voltado. Respondeu-me apenas: "P'ra me casar". Puxou uma fumada forte e disse-me: "Quando puderes, vai p'ra lá, deixa esta miséria, aqui. Faz como o teu tio Guilherme, que é rico, feliz, até já é doutor. nem que fosse p'ra morrer, eu queria voltar lá."

O tio Baptista era uma pessoa singular. Sei que, na sua juventude, ele e o meu avô paterno foram muito amigos. Aliás, foram-no sempre. "Menino da Roda" foi acolhido por um casal de camponeses remediados e sem filhos, que dele cuidaram e até lhe garantiram uma boa educação. Quando os seus padrinhos fecharam os olhos, o tio Baptista comprou uma carta de chamada para o Brasil, embarcou no rio Tuela, desceu o Douro e desembarcou em Santos, no Brasil.

Do patrício que lhe vendera a carta de chamada e lhe garantira emprego, nem sombras. Arranjou trabalho lá mesmo, começou a conhecer gente do porto de estiva e a interessar-se pelos seus problemas e, não muito tempo depois, já estava participando de movimentos operários.
Viveu as greves. Veio a repressão e, para não ser preso, tornou-se embarcadiço. Foi o tempo de conhecer o mundo. Até que um dia, em plena guerra civil espanhola, desembarcou em Espanha e juntou-se às forças republicanas.

No final da guerra, regressou a Portugal como se estivesse voltando do Brasil. É então que eu o conheço, na quinta do meu avô. Dele guardo muitas histórias e estórias, muitas, muitas, muitas. Mas agora quero apenas contar esta. Numa noite de céu estrelado, teria eu uns nove anos, ele perguntou-me: "Quantas constelações tu conheces?" Lá lhe fui repetindo o que já tinha aprendido na escola. Todavia, ele foi acrescentando outras e situando-as, como marinheiro que tinha sido. Por fim, disse-me: "Mas há uma que não vem nos livros, a mais importante de todas." Fiquei calado, à espera que ele ma revelasse. Por fim, disse: "É a constelação da Utopia. É uma constelação de que os livros não falam, nem os telescópios alcançam."

Continuei a ouvir em silêncio, e ele continuava: "Nessa constelação de muitas, muitas e sempre brilhantes estrelas é que está a memória de todas as pessoas que, desde sempre, e por toda a sua vida, lutaram pelo progresso da Humanidade." Depois de um demorado silêncio, perguntei-lhe: "E o senhor vai p'ra lá?". "Trabalho todos os dias para isso", disse-me.

O tio Baptista ficou por cá até depois do fim da II Guerra Mundial. Um dia, saiu de viajem e nunca mais voltou. Mas muitos viram a sua estrela.
Por exemplo, o Tita, que era camionista. Fazia a viajem entre Vinhais e o Porto, levando e trazendo mercadorias. Todo o mundo o achava um tipo esperto e informado, mas não fazia parte da roda dos aduladores dos "doutores" da vila.

Um dia, já eu estava no seminário, passando junto da porta de sua casa, pediu-me para entrar. Entrei, como já o fizera noutras vezes. Deu-me uns jornais desportivos e, depois, perguntou-me muito sério. "Tu és capaz de guardar segredo?". Acenei que sim com a cabeça. Então, ele tirou do bolso do casaco um envelope, abriu-o e tirou de lá um jornalzinho! "Está aqui, é para tu leres, só tu, mais ninguém e, depois de o teres lido, pegas-lhe fogo com um fósforo que ele arde num segundo. Lês e queimas e nem o padre a quem te confessas pode saber de nada." Foi assim que eu travei conhecimento com o ”Avante!”.

Mais tarde, quando ele soube que eu já lia bem francês, foi-me emprestando alguns escritos de Marx, até chegar ao “Manifesto Comunista”. Nunca me falou do PCP , ainda que eu depreendesse que ele deveria ter alguma ligação com ele. Nas minhas opções políticas e sociais, há também raízes nas sementes que ele foi deixando cair na minha alma. Depois que fui para o Brasil, perdi-lhe o rasto. Soube, mais tarde, que se tinha mudado para Setúbal, onde terminou a sua vida de lutador.

Estas foram algumas das portas que se foram abrindo para o meu entendimento do mundo e da vida. Uma outra dessas portas foi também a da biblioteca do seminário, onde encontrei tudo o que poderia e deveria ler, e tudo o que eu podia mas não deveria ler – os livros proibidos ou do índex. Os meus poderes eram, segundo o padre Campos que me nomeou seu ajudante, emprestar e recolher os livros emprestados aos padres professores e manter a biblioteca em ordem. Havia alguns livros, numa estante especial, que só podiam ser entregues e lidos com licença expressa do bispo. Foi aí que encontrei, entre muitos outros, o meu mestre Baruch Spinoza.

Quando tinha nove anos, o meu pai foi transferido para Vinhais e lá fomos nós atrás dele. Terminada a quarta classe, a única possibilidade que eu tinha de prosseguir estudos era entrar no Seminário. Ainda que os objectivos da minha família e os meus não coincidissem, sempre achei que a minha entrada para o seminário foi apesar de tudo providencial. Tudo o que foi a minha vida e o quê hoje sou, começou a se construir ali.

O seminário, apesar de tudo, abriu-me todas as portas por onde eu teria de passar para poder chegar feliz aos oitenta, ter travado todas as lutas que travei e continuar decidido a lutar para realizar a Utopia.

Fui professor, vigário de Rio de Onor e Guadramil, protegi os meus paroquianos camponeses de Deilão que se dedicavam ao contrabando; fui pároco de paróquias de subúrbio em São Luís do Maranhão; lecionei em universidades; organizei associações de moradores de bairros pobres, escolas (que denominei “De pé no chão, também se aprende a ler”); incentivei as organizações estudantis; cooperei na organização de associações de camponeses; fui militante e dirigente de Ligas Camponesas do Brasil; presidente da Liga de Favelados do Rio de Janeiro; fui agitador na Frente de Mobilização Popular; estive como convidado no Congresso Mundial da Paz, em 1962, em Moscovo, e viajei pela antiga URSS e outros países socialistas; relacionei-me com os grandes nomes da cultura e da política.

Em 1962 desliguei-me oficial e publicamente da Igreja Católica, por razões de natureza político-ideológica.
Em 1962, e depois em 1963, fui sequestrado e preso pelo IV Exército em Recife e em João Pessoa (Paraíba), respondi a dois Inquéritos Policiais Militares (IPM). Em 1964, após o golpe militar, na impossibilidade de permanecer no Brasil, exilei-me no México, partindo depois para Cuba. Passado algum tempo, regressei à América Latina, clandestinamente, e, finalmente, ao Brasil.

Aqui, participei da luta armada revolucionária contra a ditadura militar, e percorri grande parte do país, muitas, muitas vezes a pé. Conheci realidades que sedimentaram a minha convicção de contribuir para a construção de um mundo mais justo e solidário.

Fui preso em 1970, torturado, sobrevivi, andei de presídio em presídio, fui condenado em diversas Auditorias Militares, a cerca de 150 anos... Saí da prisão em 1979, como apátrida, pois tinham-me sido cassadas as cidadanias portuguesa e brasileira. Sem trabalho e sem direitos políticos, parti para Moçambique, onde estive integrado num projeto de apoio a organização de cooperativas do setor familiar da agricultura. Foi um tempo muito feliz. Gostei de voltar ao contacto com a terra e os camponeses e, acima de tudo, sentir-me útil, perceber que o meu trabalho e a minha experiência podiam melhorar a vida das pessoas.

Regressei a Portugal em finais de 1983. Em 1984 fui admitido na RTP como jornalista, atividade que exercia desde 1958, sob diversas condições e em distintos lugares e países.

Vivi a ilusão e a desilusão do Alentejo. Voltei para Lisboa para retomar o meu lugar no movimento social e político, e também para lecionar na Universidade Lusófona. Regressei também ao meu mundo, à participação nos Fóruns Sociais, ao MST, às Ligas Camponesas dos Pobres, e nem poderia ser de outro modo, pois, mais do que tudo, sou um andarilho e um agitador social dedicado às causas do povo. A minha pátria é a luta do povo. O meu objetivo de vida a construção da Utopia.»


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Emigração?

 

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Os votos da emigração (ainda) não contam

 


«A 11 de agosto de 1974, milhares de emigrantes desfilaram na Almirante Reis em direção ao Estádio 1º de Maio, em Lisboa, para a festa-comício que lhes permitiu, finalmente, celebrar a liberdade em solo pátrio. Quatro meses antes, a milhares de quilómetros, apenas puderam viver a Revolução dos Cravos por procuração, como tantas vezes impõe a condição migratória. “Prometemos à Pátria trabalho e justiça social para que os vossos filhos e netos não precisem de emigrar”, afirmou solenemente, nesse dia, Vasco Gonçalves (Diário de Notícias, 12/8/74). Anos mais tarde, a 10 de Junho de 1977, na Guarda, o Presidente Ramalho Eanes proclamava um novo conceito de Pátria: “Importa mais o homem do que o chão onde ele vive”, garantindo uma “coesão fraterna e a unidade efetiva dos portugueses no Mundo”.

Quem viveu no estrangeiro nos últimos 50 anos habituou-se a que tais discursos sejam raramente seguidos de medidas concretas. Nestas legislativas, os programas da maioria dos candidatos pelos círculos da emigração continuavam a apresentar as sempiternas questões do atendimento consular, ensino da língua, legislação eleitoral, apoio ao movimento associativo, etc. Hoje, um cidadão a residir em Paris tem de esperar seis meses para ser atendido no consulado e é obrigado a pagar propinas para que os seus filhos tenham aulas de português. Noutros países, a situação ainda é pior.

Entre as eleições para a Constituinte de 1975 e as legislativas de 2019, a participação de quem vive no estrangeiro foi quase sempre residual. Salvo erro, em 45 anos e 15 eleições, contabilizaram-se 970.000 votos. Com o recenseamento automático, essa taxa tem vindo a subir, mas o processo continua envolto em polémica.

Em 2019, quando foram anulados cerca de 35.000 boletins, ainda nem tinham sido contabilizados os votos além-fronteira e já o Presidente da República recebia os partidos em Belém e o primeiro-ministro destilava a composição do novo Governo. Na semana passada, foram anulados os votos de 157.205 eleitores do círculo da Europa de um total de 195.701, ou seja, 80,3% foram para o lixo. A decisão deve-se ao facto de boletins inválidos – não acompanhados de fotocópia do documento de identificação – terem sidos misturados nas urnas com votos válidos.

Para muitos dos que vivem lá fora, profundamente apegados ao país e à cultura de origem, mas fartos de discursos ocos e de paternalismos elitistas, é mais uma metáfora da indiferença a que são votados. Um número ainda desconhecido de eleitores não respeitou as indicações, mas muitos mais viram o seu voto anulado pela incúria de quem trata deste processo. Para além das querelas partidárias, este inenarrável episódio deve ser a oportunidade para remediar uma série de anomalias com décadas. Os cerca de 1,5 milhões de eleitores no estrangeiro são representados por apenas quatro deputados. Por razões várias, um número significativo de boletins ou não chega à morada do eleitor ou é devolvido a Lisboa depois da data-limite. Em função do tipo de ato eleitoral, o voto é exercido de forma diferente (presencial, por correio ou híbrido). E por aí adiante…

A decisão do Tribunal Constitucional de mandar repetir as eleições nas assembleias de voto no círculo da Europa constitui um desfecho no qual poucos acreditavam. Para alguns, mais não faz do que atrasar o normal funcionamento das instituições. Para muitos dos que vivem lá fora, trata-se de uma deliberação altamente simbólica. Embora desconfiados, começam a nutrir a esperança que alguma coisa pode mudar, não se olhando (tanto) de soslaio para quem quis ou teve de emigrar ou apenas deles esperar investimentos e envio de divisas. Um primeiro sinal seria escolher um(a) secretário(a) de Estado oriundo da emigração. E não esperar pelo fim da legislatura, nem limitar aos quatro últimos eleitos, a preocupação por temas que devem merecem a atenção de todos os deputados da Nação. Também há portugueses que vivem no estrangeiro.»

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16.2.22

Repetir as eleições não é um desastre?

 

«Recebi agora a notícia de que as eleições legislativas do mês passado vão ser repetidas no círculo da Europa no dia 27 de fevereiro. Proponho-me um exercício mental: sem consultar nenhum catrapázio, sem ajuda da internet, vou listar 10 consequências negativas da anulação das eleições do passado dia 30 de janeiro nesses locais. Cá vai:»

Não concordo com tudo o que está escrito, mas há boas sínteses nalguns pontos. Continuar a ler AQUI.



16.02.1925 – Carlos Paredes

 


Chegaria hoje aos 97.


Neste post de 2021, alguns vídeos inesquecíveis.
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A esquerda radical

 


«O resultado das últimas eleições parece representar uma derrota para o BE e para o PCP. É um engano. Os grandes derrotados daquela noite são trabalhadores portugueses, os que vivem do seu trabalho, os que dependem do salário mínimo nacional (SMN), os que não são classe média e que provavelmente não chegarão lá.

Estamos a falar de milhões de portugueses. Existem em Portugal cerca de novecentos mil trabalhadores que vivem do SMN, parte deles certamente com outras pessoas a cargo. Faz sentido a pergunta: se tantos portugueses estão em situação de pobreza, ou quase pobreza, porque não tem esta esquerda, que se bate pelos seus interesses e direitos, uma votação mais expressiva? E também faz sentido perguntar se esta esquerda deixou de satisfazer as aspirações de quem sente urgência na melhoria das suas condições de vida.

O problema existe.

Esta esquerda sofreu a erosão do voto útil no Partido Socialista. Ponto assente. Mas algumas razões havia também para os partidos mais à direita terem igualmente sentido a erosão do voto útil no PSD. Não aconteceu. A IL e o Chega cresceram, não obstante a necessidade de reforçar o voto em quem poderia, à direita, ser primeiro-ministro.

O que tem então esta nova direita que capta o voto dos eleitores? A resposta pode ser difícil de ouvir. Vejamos: esta direita não apresenta soluções colectivas – no sentido do que seria o melhor para todos – mas apenas soluções individuais. Votar no que é melhor para si mesmo. Quem vota na IL quer à partida prosperar, o que é absolutamente válido. Mas quer fazê-lo individualmente, ser um vencedor, apanhar o elevador social que, como se sabe, não tem a capacidade de um monta-cargas.

Uma boa concretização desta visão política é o simulador de poupança fiscal que a IL disponibilizou no seu site. Uma espécie de: “Eleitor, vamos ao seu caso específico”. Com a IL não existirá, entre o momento presente e o momento em que cada eleitor será uma pessoa abastada, um Estado que tributa a mais, distribuindo e desbaratando o dinheiro que, com mérito, esse eleitor ganhou. A ideia é que um dia serão todos ricos.

Nesta nova direita identificam-se inimigos. O Chega aponta armas ao sistema (o sistema que os deixou entrar e entre nós permanecer), aponta armas às minorias, aponta armas à classe política da qual faz parte. O Chega é o partido que está dispensado de cumprir a lei mas também, deve ser dito, de fazer sentido.

No dizer desses dirigentes, a governação do país tem-se caracterizado como sendo “socialismo”. Reparar que não radicalizam apenas o seu próprio discurso, incutem também a ideia do radicalismo dos seus opositores. Veja-se o caso do Partido Socialista; que dizer de um socialismo que, tendo conseguido uma maioria absoluta, recebeu congratulações dos bancos, dos banqueiros e do patronato? O socialismo do PS chama-se social-democracia e é puramente social-democrata a governação política dos últimos anos em Portugal. Já agora: foram quase todas à excepção da governação de Pedro Passos Coelho. Mas aqui está uma maneira eficaz de dispensar o PS de prosseguir políticas de esquerda.

A radicalização daquilo que é puramente moderado e a diabolização dos partidos mais à esquerda fazem parte integrante da forma como estes partidos se apresentam ao eleitorado. Isto em conjunto com a sua própria radicalização. Estamos a falar da radicalização de discurso de ódio e discriminação, no caso do partido Chega, e da abolição do Estado Social no caso da IL. Neofascismo e anarco-capitalismo.

Alguma lição deverá a esquerda retirar daqui. As pessoas insatisfeitas, neste caso os eleitores, tendem a simpatizar com quem assume o discurso destemido. Esse desejo de radicalidade – o de acabar com o mais do mesmo – faz até esquecer o que está em causa. Sucede que a esquerda está à defesa. Defende-se da qualificação de extremismo que lhe é imputada. A esquerda mais à esquerda caiu no pior dos males: deixou-se condicionar. Com isso perde eleitorado mais jovem e sobretudo perde a sua própria juventude.

Pedro Nuno Santos (PNS) tem sido o político que, de tempos a tempos, consegue incendiar. O PNS, dirigente do partido do centro-esquerda. Este fenómeno diz muito: o eleitorado de esquerda precisa de fogo, da energia da luta e dos princípios que PNS sabe trazer para a oratória. Pois bem, essa energia e esses princípios existem de facto e encontram-se nos programas dos partidos que aparentemente perderam as eleições. Já agora: existem, por exemplo, nas propostas que apresentam para o problema da habitação, uma área em que PNS ainda não conseguiu implementar políticas com impacto.

Existe aqui um problema e existe aqui uma oportunidade. É assim que se diz no mercado. Começa assim.»

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15.2.22

Novidade no mercado

 

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2026?

 


PIB PPA(Paridade do Poder Aquisitivo) 

Não é fácil encontrar Portugal... (É o antepenúltimo país na coluna da direita.)
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Isto não se inventa!

 



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O teste do algodão

 


«Há um momento fundamental para perceber os caminhos que António Costa pretende percorrer. E outro a partir do qual se fará a verdadeira avaliação do percurso.

O primeiro será já nos próximos dias, quando se perceber qual o elenco ministeriável e qual a orgânica do Governo. No fundo, quem são as mulheres e os homens que vai buscar para executar o seu projeto para o país. Haverá mais Portugal ou mais PS? Qual a primeira baixa da maioria absoluta, o partido ou a sociedade civil?

O Orçamento a propor representa o segundo passo do mesmo momento. Porque os orçamentos são bem mais do que arrumos da contabilidade pública. Pelo contrário, representam opções e objetivos de governação. E agora sem o espartilho das exigências dos partidos à esquerda do PS, o Governo pode traçar o esboço que efetivamente terá para os dias que se aproximam.

Os orçamentos serão o mapa que nos mostra o caminho. Os últimos foram sobretudo um espelho do contexto político, e do arranjo de apoios parlamentares. Para este já não há esse quadro de necessidade. Será mesmo um OE de António Costa. O primeiro da maioria.

Mas o tempo agora é forçosamente diferente dos últimos seis anos, durante os quais se assistiu, primeiro, a um crescimento económico e ao regresso do investimento externo, ajudado pelo financiamento da dívida portuguesa protegido pelo Banco Central Europeu, o que permitiu redistribuir os ganhos e acabar paulatinamente com os cortes nos impostos pelo tempo da troika, enquanto se anunciavam contas certas. Depois, resistindo a dois anos de pandemia que exigiram alguma racionalidade no meio dos ziguezagues e injeção de dinheiro para evitar uma catástrofe social e económica. Foi também por isso que António Costa ganhou. E que ganhou com maioria absoluta.

O segundo momento pode vir tarde para arrepiar caminho. Ou não. O que Portugal vai receber nos próximos dois anos da União Europeia, mais os fundos europeus do 2030, representa de facto uma oportunidade de transformação única. E essa avaliação só se fará no segundo ciclo da legislatura, comparando o nosso crescimento com o dos outros países da UE que também terão pacotes financeiros extraordinários.

O sucesso mede-se comparando. Comparando desenvolvimento com desenvolvimento. E esse, sim, é o teste do algodão.»

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14.2.22

Dia da Rádio (2)

 


Com 24h de atraso, recordo uma outra rádio, a que ouvíamos com a gravação da voz de Manuel Alegre. Neste caso, mais do que provavelmente, na emissão do dia em que Salazar morreu: era segunda-feira nesse 27 de Julho de 1970, um dos dias da semana em que a Rádio emitia.

Dá-se conta também, entre outras notícias, do acidente aéreo em que tinham morrido quatro deputados da ala liberal dias antes.

Ouvir a emissão AQUI.
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Dia deles, pois claro

 

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Os bons patrões e a secretaria

 


«O presidente da CIP, entrevistado no programa da RTP "Tudo é Economia" (8/2) afirmou que "ninguém hoje em Portugal consegue contratar pelo salário mínimo", acrescentando que os empresários estão a oferecer entre 750 e mil euros mensais.

Contudo, com a fixação do salário mínimo nacional (SMN) em 705 euros brutos, a partir do passado dia 1 de janeiro, perspetiva-se que um milhão e duzentos mil trabalhadores (número confirmado pelo entrevistado) estão abrangidos pelo SMN. Além disso, muitos milhares de outros trabalhadores terão salários entre 705 e 750 euros. Temos de concluir, então, que quase um em cada três dos homens e mulheres que trabalham no nosso país ganham muito pouco, por vício ou falta de informação. Se o problema não fosse sério era caso para dizer: despeçam-se, os patrões bons estão à vossa espera.

Em alguns setores e regiões há falta de trabalhadores e de formações muito concretas, nomeadamente de profissões que foram ostracizadas num contexto de desvalorização salarial, secundarização da organização do trabalho e baixa formação de muitos patrões. O drama maior é vir do presidente da CIP a confissão de que "a falta de mão de obra indiferenciada é enorme, devíamos ter uma política de captação de imigração" ("Público", 27/1). O que este e outros dirigentes das confederações patronais nos estão a dizer é que o perfil da nossa economia, talhado pelas suas opções empresariais, continuará a ser de baixo valor acrescentado e baixa produtividade.

Estas afirmações foram feitas em torno da apresentação pública das propostas que o Conselho Nacional das Confederações Patronais (CNCP) leva junto do primeiro-ministro. No encontro com a Comunicação Social (9/2) a "representação de cúpula" da organização empresarial evidenciou contradições doentias. Foi dito que "o jogo da democracia ganha-se no Parlamento e nos lugares que aí se obtêm e não depois nas tentativas de, em secretaria, se adulterar o que aí se verifica".

Então, porque elaboram um caderno reivindicativo e procuram mobilizar a sociedade para o apoiar? Porque querem fazer tábua rasa de políticas laborais adotadas pelo Governo anterior e de compromissos de António Costa na campanha eleitoral? Não querem "alterar salários por decreto", mas não se apresentam no "campo do jogo" da negociação coletiva nas empresas e nos setores de atividade, nem aceitam poderes sindicais em pé de igualdade com os seus. São contra os jogos de secretaria, mas endeusam a secretaria feita à medida - a concertação social - que há muito devia ser modernizada, pois é o espelho do enterrado "arco da governação".

O porta-voz do CNCP disse, na contestação ao objetivo assumido pelo primeiro-ministro de o SMN chegar aos 900 euros em 2026, "qual o exercício de adivinhação", "quais bolas de cristal", para se poder dizer "que vamos chegar aqui ou ali"? Então, só são válidas para a governação as previsões e objetivos que eles sancionam?

As apostas da CNCP no crescimento pelo aumento da produtividade, as preocupações com as qualificações e "captação de talentos" tendem a não passar de floreados. No ponto relativo à demografia e à natalidade, tudo se resume a pedir mais apoios sociais, investimento do Estado e "políticas de imigração económica". Nada é dito sobre a necessidade de melhorar os salários e o acesso à habitação para evitar a emigração. É elucidativo.»

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13.2.22

Ainda a propósito de Nuno Bragança

 


Eu conhecia este magnífico documentário da RTP, mas apeteceu-me revê-lo ontem. Não sei se fiz bem, já que me fui deitar com um enorme sentimento de perda, porque conheci os nove intervenientes na peça, fui mesmo amiga muito próxima de alguns, e verifiquei que só ainda anda por cá um deles – a Maria Belo. Lei da vida, eu sei, mas a que nunca nos habituamos.

Entretanto, se não conhecem, vejam porque vale muito a pena. AQUI.
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Dia da Rádio



 

Eram poucas as casas «normais» que tinham acesso a televisão, quem nos dava electricidade ainda não eram os chineses (pelo menos em Lisboa era a CRGE), se já existiam hackers tinham outro nome e nunca se lembraram de nos impedir que aparelhos como este nos trouxessem os relatos de hóquei em patins (os «cinco violinos» eram os nossos Ronaldos), «Os companheiros da Alegria», Júlia Barroso, Tony de Matos e outros que tais – a escolha não era ilimitada, mas…

Depois do relógio de pulso, um rádio privativo era prenda dourada para refúgio dos adolescentes, a décadas das Play Stations e dos tablets. E foi assim que este aparelho entrou no meu quarto e ficou durante anos numa daquelas mesas de cabeceira com tampo de mármore e uma portinha para o penico. E ainda está algures aqui por casa.
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Julio Córtazar (26.08.1914 - 12.02.1984)

 

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Por onde anda o desejo de futuro?

 


«Esta semana andou toda a gente entretida a tentar perceber como lidar com quem tem saudades de fascismo, racismo e colonialismo. Ou com os que reivindicam como solução para o país mais neoliberalismo, apresentado como a renovada moda da estação Outono-Inverno, quando vivemos sob uma racionalidade neoliberal globalizada há cerca de quatro décadas.

É importante encontrar o tom certo para combater os nostálgicos do fascismo e os que continuam com uma crença cega no neoliberalismo e na narrativa desfasada do crescimento económico infinito. Mas também é fundamental — para quem aspira a viver numa sociedade mais justa, igualitária e democrática — não desistir de olhar em frente. E nisso, convenhamos, todos têm falhado. Os anos de “geringonça” permitiram, pelo menos, criar uma alternativa à austeridade, com um desenvolvimento económico residual, mas sustentado, preservando o que resta do Estado social, por deficiências que existam e que é imperativo corrigir. Tudo coisas fundamentais. Mas não basta uma mera administração do presente. Como é evidente, é preciso mais. Muito mais.

Ninguém anda aqui para sobreviver. Mas para viver, plenamente. E não são apenas os partidos que têm falhado. Há quanto tempo não se vê um grande movimento social carregando vontade de conquista, tentando impor transformações, no sentido de reivindicar um outro futuro? Sim, os movimentos ecologistas e os anti-racistas, mas são apenas excepções. A maior parte das mobilizações são quase sempre feitas em perda, consistindo em querer conservar o que já existia. Em vez da conquista de novos direitos, são instrumentos de resistência. Não se tenta impor nada.

E assim que nos colocamos na posição defensiva, as forças reaccionárias progridem, pois ficamos condenados, no próprio momento em que lutamos, a apresentar como norma positiva a ordem instituída das coisas. Esse é o grande dilema. Não se pode deixar de dispensar energia debatendo no presente com aqueles que dificilmente conseguiremos mudar, em prol da manutenção de conquistas efectuadas. Mas não tenhamos ilusões: parte-se muitas vezes do pressuposto de que algumas forças crescem por ignorância, sendo necessário o confrontar de consequências de algumas propostas. E se fosse exactamente ao contrário? Se fosse por conhecimento ou, noutra perspectiva, por negação, que pautassem a sua acção?

O verdadeiro foco tem de ser mais intenso, sobre os quais se pode ter verdadeira influência e que realmente estão disponíveis para a mudança. E aí há que assumir que muitos dos efeitos das teorias e práticas, e das lutas e experimentações, que se tentam difundir agora só poderão ter efeito mais à frente, seja o rendimento universal, a semana de trabalho de quatro dias, a avaliação do impacto da inteligência artificial sobre o trabalho, a luta contra o racismo e o patriarcado estruturais, a saúde como bem público e não como negócio, a justiça tributária, a reforma da educação, a cultura e a arte encaradas como bem essencial ou a sustentabilidade ambiental.

Parte do sentimento de impotência advém de muitas dessas ideias serem um processo que não vai transformar a urgência do presente. Só a médio prazo algumas produzirão efeitos. É por isso que é tão importante, hoje, sensibilizar os que estão a despertar para a política, ao mesmo tempo que é necessário adoptar novas formas de luta, que possam ser mais eficazes do que as clássicas, tantas vezes funcionando como consolo moral, mas inoperantes. Seria necessário infiltrar a política nas estruturas da existência quotidiana. É na vida dos cidadãos que seria preciso inscrever uma identidade progressista, o que exige uma dinâmica complementar: combater forças reaccionárias no aqui e agora, preservando o que existe, sem deixar de exigir um outro futuro, porque esse é o antídoto para se sair da atitude defensiva, do pouco, do quase ou do mal menor, criando novas possibilidades.»

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