19.2.22

Moscovo, Pequim, Washington: o novo jogo a três



 

«Por trás da “guerra híbrida” na Ucrânia, pode entrever-se uma nova dinâmica entre três potências – Estados Unidos, China e Rússia. Ao apoiar Moscovo na sua oposição ao alargamento da NATO na Europa de Leste, Pequim reforça a “amizade” entre os rivais dos Estados Unidos. O seu objectivo último é transformar os equilíbrios geopolíticos do mundo, algo que Washington não aceita. Moscovo quer afastar os EUA da Europa, Pequim quer a América mais longe da Ásia. Assinaram um documento em que proclamam “uma amizade sem limites”.

Não se trata de uma verdadeira aliança estratégica, mas de uma parceria temporária. Moscovo tem boas razões para temer uma futura hegemonia chinesa na Eurásia. Sabe que dentro de uma ou duas décadas perderá a superioridade militar perante a China, o que diminuirá o seu estatuto.

Note-se que, em 2008, Pequim não aprovou o ataque russo na Geórgia e ainda não reconheceu a anexação de Ialta. Mantém a doutrina da intangibilidade das fronteiras. Pequim e Moscovo têm neste momento um interesse comum: limitar o estatuto internacional dos Estados Unidos. E analisaram a nova conjuntura política como favorável.

A Rússia anunciou recentemente novos contratos para venda de petróleo e gás à China, embora num volume que não tem comparação com as exportações para a Europa. Na perspectiva de sanções económicas americanas, Moscovo conta com a ajuda da China. “A China é a nossa almofada estratégica”, diz Serguei Karaganov, conselheiro do Kremlin.

Neste triângulo, a Rússia é o elo fraco, o chamado junior partner, tanto do ponto de vista económico e tecnológico como, sobretudo, do ponto de vista demográfico. Mas Vladimir Putin tomou a iniciativa e tem-se mantido nos últimos meses como a figura central da actualidade internacional. Putin não teme a NATO nem a Ucrânia. Precisa da Ucrânia para recomeçar um velho sonho imperial, além de lhe desagradar o possível efeito desestabilizador de democracias nos antigos Estado soviéticos.

Os analistas russos gostam de evocar Zbigniew Brzezinski, um dos papas da geopolítica americana no século passado. No seu livro The Grand Chessboard, de 1997, Brzezinski defendia a tese de que a independência da Ucrânia modificava a natureza do Estado russo. “Sem Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império na Eurásia.” Só a integração da Ucrânia na órbita euro-atlântica travaria a “reemergência do império que torna a Rússia agressiva” e impede a sua democratização.


O trabalho de Putin foi restabelecer o estatuto internacional da Rússia, através do poderio militar e da utilização política dos seus gigantescos recursos energéticos, deles tornando a Europa dependente. Procedeu à modernização do obsoleto exército soviético, que transformou numa força eficaz e temível para os seus vizinhos e capaz de se projectar em regiões como o Médio Oriente.

Há aqui uma nota irónica: as situações de tensão ou a ameaça de uma guerra na Europa desencadeiam pânico e alta de preços do gás e do petróleo conforta as finanças russas.

Ainda há pouco tempo se falava na “nova guerra fria”, sem União Soviética, mas agora entre Washington e Pequim. Essa ilusão acaba de se desfazer, pelo menos na Europa, com o “regresso da Rússia”. Não é uma “nova guerra fria”, mas uma tentativa de anular o fim da Guerra Fria do século XX, que culminou na desintegração da União Soviética e da hegemonia russa na Europa Central e de Leste, com o fim do Pacto de Varsóvia.

A dimensão ideológica era um elemento essencial da Guerra Fria. Hoje, o regresso da Rússia é essencialmente um fenómeno geopolítico. O historiador Odd Arne Westad, especialista na Guerra Fria, explica que não se tratou apenas de um conflito entre duas superpotências, mas que foi uma competição global e uma guerra ideológica em todos os continentes.

O novo triângulo

A Administração Biden definiu a competição com a China como o grande objectivo estratégico, evitando desviar as atenções para outras frentes. Mas, com o “cerco” da Ucrânia, Biden sofre um doloroso desmentido: foi obrigado a intervir na Europa. Ao mesmo tempo desfez o provável cálculo de Putin, o de que os Estados Unidos, centrados na rivalidade com a China, seriam impelidos a fazer concessões na Europa.

O efeito foi o contrário. A Rússia fez ressuscitar a NATO, tal como a China provocou a aliança trilateral AUKUS – EUA, Austrália e Reino Unido. E restaurou a abalada liderança internacional de Biden.

“É o paradoxo da situação actual. Na realidade Moscovo e Pequim empurram os europeus e os asiáticos para os braços dos Estados Unidos”, escreve o analista francês Dominique Moïsi. “Têm a percepção de que o país de Joe Biden, mesmo tão frágil, é uma derradeira forma de seguro de vida.”

Moïsi interpreta a crise ucraniana como sinal da “marcha para um novo imperialismo russo.”

Não encaremos a actual disposição das forças como um conflito dual - Estados Unidos versus China e Rússia. Estamos antes perante um triângulo cuja geometria é instável. Em Washington muitos faziam (e voltarão a fazer) pressão a favor de um compromisso com Moscovo para isolar Pequim. Putin entendeu que podia ganhar nos dois tabuleiros. Enganou-se.

Há uma certa nostalgia da manobra Kissinger-Nixon, que isolou Moscovo ao fazer a aliança com Pequim, peça fundamental para vencer a Guerra Fria. Agora, seria “inverter Kissinger”: amar Moscovo para diminuir Pequim. É muito cedo para saber como evoluirá este novo e instável triângulo.»

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