«Há imagens que se colam. A do abraço entre o líder parlamentar e o ministro da Presidência, de sorriso aberto e copos de gin na mão enquanto o país ardia, é a de um Governo totalmente alienado por circunstâncias políticas que lhe têm sido demasiado favoráveis. E os abraços veraneantes não destoa¬ram das palavras. De quase uma hora de discurso na Festa do Pontal sobraram sete minutos para o tema que monopoliza as preocupações dos portugueses há um mês. Antes de tudo, Montenegro primeiro-ministro queria discordar de Montenegro líder da oposição. Em 2022 pedia para “não se distrair as pes¬soas”, remetendo os incêndios “mais para o lado do clima”, e recordava que “as vagas de calor muito acentuadas” já eram previsíveis. Em 2025 fala de uma “tragédia fruto das circunstâncias meteorológicas, que são particularmente difíceis e adversas”, com “elevadas temperaturas, níveis baixos de humidade e ventos fortes”.
Depois, queixou-se das televisões, porque dividiam os ecrãs com “metade da imagem com labaredas e a outra metade da imagem com a Festa do Pontal”. Uma divisão fiel à realidade: enquanto as labaredas cobriam o país, o Governo fazia a festa no Algarve. Mas não é fácil para quem foge das entrevistas e raras vezes responde a jornalistas e à oposição lidar com os momentos em que perde o controlo da narrativa. Nada a fazer: o fogo ofuscou o regresso da Fórmula 1, que só poderia ser tema, naquele momento, para quem tivesse decidido ignorar o país. Como as perceções ainda continuam a ser tudo para Montenegro, aquele ecrã dividido levou-o a suspender finalmente as férias e a pedir o auxílio europeu para o combate aos incêndios, que, escassas horas antes, a ministra tinha garantido ser desnecessário. Poucos dias depois de ter acordado para o que se passava, disse que “estamos todos muito esgotados”, um estranho plural para quem andou desaparecido.
Não houve, fora dos PowerPoint e dos pacotes, teste em que Luís Montenegro tenha passado. Falhou em todos os momentos críticos e decisivos, incluindo os mais previsíveis. Falhou nos períodos tradicionalmente difíceis para as urgências. Falhou na resposta à crise aguda da habitação, que se agravou com as medidas implementadas pelo Governo. Parece encaminhar-se para falhar nas contas públicas, sem que nenhuma melhoria no funcionamento do Estado o pareça justificar. E falhou na reação aos fogos, independentemente das condições estruturais, que não vão mudar. Por ter falhado em tudo é que andamos há meses a falar de imigrantes. Espanta-me que a culpa dos incêndios também não seja deles. Mas o mais estranho para um Governo mais obcecado com as perceções do que com políticas que não sejam, como a contrarreforma laboral, encomendadas por quem diligentemente serve é falhar na capacidade de sentir inquietações mais evidentes do país. O oportunismo eleitoral, que o fez copiar as políticas do Chega, não se traduz numa ligação mais intensa aos sentimentos populares. “O senhor não merece estar aqui”, ouviu Montenegro de uma mulher no funeral de um bombeiro, na Covilhã. Uma frase assassina que já deve estar a fazer Ventura, o único político mais taticista do que Montenegro, vacilar na colagem ao Governo.
O falhanço comunicacional da Festa do Pontal não foi um deslize. É o estado da arte de um Governo alienado. Os resultados de 18 de maio, que deixaram todas as alternativas bloqueadas, foram maus conselheiros. Com o crescimento do Chega e a catástrofe socialista, Montenegro está concentrado na oportunidade histórica de ferir de morte o PS, tornando o PSD no partido hegemónico do centro político. Conta com a extrema-direita para mudanças na legislação laboral, para as políticas de imigração e, porque devemos levar a sério os apelos de Relvas, para uma revisão constitucional. E, mesmo assim, espera que o PS tenha “aprendido” com o castigo eleitoral depois de uma crise política desejada e cumpra a função de se responsabilizar pelo próximo Orçamento do Estado. É este “à vontadinha” que promove a incompetência e o alheamento da realidade. Os bons Governos precisam de algum medo, e Montenegro e a sua tropa acreditam que estão sozinhos no terreiro. Estão cheios de si. Tão cheios que só se veem a si mesmos. Um ano e meio de um Governo minoritário que falhou todos os testes decisivos parece ter chegado para ganhar a displicência de uma maioria absoluta e de oito anos de poder.»

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