Texto subscrito por 100 Negras e Negros, Público, 22.06.2018
«O debate sobre o futuro museu das descobertas ou da viagem que, no essencial, pretende manter a narrativa de glorificação da empresa colonial, tem suscitado um debate intenso na sociedade portuguesa à margem das comunidades negras. Recusando a invisibilidade que nos é imposta, nós, abaixo assinados, cem pessoas negras, estamos presentes como donas das nossas vozes e eco de outras que, por razões diversas, continuam a não poder falar e a não ser ouvidas na sociedade portuguesa.
A ausência das nossas perspetivas nas instituições nacionais e nas discussões públicas está naturalizada e normalizada, rasurando-nos enquanto sujeitos históricos e enquanto contribuidores por excelência para a edificação da sociedade portuguesa nas suas diferentes vertentes. Excluídos do corpo nacional, assistimos a uma disputa pela memória que reforça a glorificação da ideologia colonial e reifica o lusotropicalismo, que continua bem presente, apesar da derrota política do fascismo e do advento da democracia, com a “revolução dos cravos” de 1974.
A glorificação da ideologia colonial ancora-se na hipervalorização ideológica, política e cultural do colonialismo, quer através do ensino da história, quer através de comemorações recorrentes do passado imperial português que reforçam a quimera de uma suposta excecionalidade lusitana e exaltam um pretenso heroísmo dos seus conquistadores, privilegiando assim uma história que serve um proselitismo político e ideológico para aguçar a “auto-estima” nacional.
Ora, sanar e elevar a “auto-estima” nacional quer através da veiculação de uma história facciosa e que omite parte relevante da verdade histórica, quer pela edificação comemorativa de estátuas, monumentos e museus celebradores do colonialismo e da ideologia colonial, merece toda a nossa contestação. Pois um dos efeitos imediatos do cultivar da magia da época colonial é exatamente o alimentar do racismo histórico e estrutural e o prolongar das hierarquias de controlo e repressão para com as comunidades negras no país, como o testemunham as violências policiais sistemáticas e a segregação de que somos vítimas. É intolerável e merece toda a nossa contestação, que o orgulho nacional seja construído à custa das feridas e da dignidade dos nossos antepassados, eternamente cativos no lugar do subalterno na narrativa oficial.
O período colonial tem funcionado como referencial máximo da capacidade imperial e do apogeu de Portugal no mundo, assim como referencial para a construção da identidade nacional contemporânea, que nele bebe a sua heroicidade. O esplendor de Portugal, como se canta no hino nacional, está localizado na história do colonialismo, considerado o período áureo da História de Portugal, mas para isso omitem-se as violências sistémicas que este período histórico protagonizou, tais como a Escravatura, o etnocídio, a evangelização forçada, as Guerras de Pacificação, o Estatuto do Indigenato e a exploração de recursos. Omitem-se também as histórias de resistência dos povos africanos e indígenas, retratados como os povos sem história, elementos passivos, sedentos de civilização, de cultura e de fé.
Neste cenário, Colonização tem sido traduzida por descobertas, descoberta e descobrimentos. Escravatura e invasão dos territórios de outros povos têm sido confundidos com encontros de culturas, contacto entre povos e expansão marítima. O Tráfico de pessoas escravizadas, levadas como gado para outros continentes, ou seja, a desumanização massiva dos corpos negros, é apelidado de viagem e também de primeira globalização. Evangelização violenta e epistemicídio são retratados como interculturalidade e desenvolvimento. E tudo isto tem resumido a “epopeia dos descobrimentos” a uma sucessão de atos de benevolência da parte de Portugal, que faz com que o próprio sistema colonial português seja considerado suave e excecional pelos próprios.
Fala-se e escreve-se sobre o comércio triangular, sobre o tráfico negreiro e navios negreiros, sobre o comércio atlântico e transatlântico de escravos, referindo-se ao tráfico e animalização de seres humanos, como se os conceitos fossem inocentes e não precisassem de uma revisão crítica. É urgente a descolonização da linguagem que leve à descolonização do pensamento, que leve à descolonização do ensino da História e que leve à descolonização do imaginário, e que isso tenha consequências nas ações do presente.
E hoje, com esta tomada de posição, denunciamos um passado que quer continuar presente e continua a assombrar as nossas vidas quotidianas. Um presente que não pretende avançar para o futuro, contribuindo para a manutenção do estado das coisas, ancorado no passado e na ideologia colonial. O projeto da Câmara Municipal de Lisboa que pretende reforçar o número de instituições dedicadas à celebração do colonialismo português existentes no país, através da criação de um chame-se ele “Museu da Descoberta”, “Museu dos Descobrimentos”, “Museu da Interculturalidade” ou “Museu da Viagem”, inscreve-se nesta dinâmica.
É importante ressaltar que a troca de nomes reflete pouca seriedade no tratamento das questões aqui descritas e, sobretudo, um desprezo por aquilo que são os impactos da conceção de um Museu desta natureza junto da comunidade negra em Portugal. Porque se as Descobertas e as Viagens podem passar do plural para o singular, a Colonização, essa, permanecerá sempre sem grandes margens de mudança, dada a sua consistência histórica de violências várias e ao seu singular impacto que se repercute até hoje na vida de negras e negros de quase todo o mundo.
Não aceitamos um Museu construído sobre os ombros do silenciamento da nossa História, com o dinheiro dos impostos de negras e negros deste país, que não respeita nem valoriza a evolução da própria historiografia e a revisão histórica já feita e em curso, da necessidade de reinterpretação e reconceptualização dos impérios coloniais e do colonialismo.
Não em nosso nome! Porque este é um Museu contra nós, que pretende ser erigido ignorando as nossas demandas, o nosso contributo e a nossa resistência. Nós, negras e negros em Portugal, exigimos à CML uma aposta séria num Memorial de homenagem às pessoas escravizadas, num Museu do Colonialismo, da Escravatura ou da Resistência Negra, que descortine os aspetos essenciais e até aqui secundarizados daquilo que foram os reais impactos da empresa colonial de Portugal no mundo, suas consequências no presente e daquilo que foram os reais contributos das pessoas negras na resistência a esse sistema.
Subscritores: Abel Djassi Amado, Abigail Cosme, Abilio B. Neto, Airyton Cesar, Alessandra Brito, Alexandra Santos, Ana Fernandes, Anaximandro Cardoso, Andredina Cardoso, Angella Graça, Ângelo Torres, Anilza Mota, António Tonga, Apolo Carvalho, Ariana Furtado, Aridson Vaz, Beatriz Carvalho, Beatriz Dias, Bruno Sena Martins, Carla Costa, Carla Fernandes, Carla Santos, Carla Sofia Gomes, Carla Viana, Carlos Dias, Carlos Sousa, Cíntia Domingo, Cristina Roldão, Daniel Monteiro, Dara Ramos, Denise Viana, Diógenes Parzianello, Djanira Gomes, Eduardo Djaló, Eunice Rocha, Evalina Dias, Fabião Ocante, Fátima Cande, Fernando Ganga, Flávio Almada, Gio Lourenço, Inês Furtado, Inocência Mata, Iolanda Évora, Ivan Varela, Jakilson Pereira, Jaquelina Varela, Joacine Katar Moreira, João Carlos Barros, João Delgado, Joaquim Matamba, Joceline Pereira, John Kalagary, Jorge Almeida, José B. Pina, José Duarte, José Gueleka, José Monteiro, José S. Fernandes, José Semedo, Kalaf Epalanga, Karin Gomes, Karyna Gomes, Kiluanji Kia Henda, Lolo Arzik, Lubanzadyo Bula, Lúcia Furtado, Luzia Moniz, Maíra Zenun, Mamadou Ba, Manuel Santos, Maria João Pinto, Marlene Nobre, Mónica Furtado, Myriam Taylor, Ndofusu Kiala, Neusa Trovoada, Nina Manso, Noé João, Nuno Dias, Paulo Inglês, Paulo Taylor, Pedro Djassi, Raquel Lima, Raquel Rodrigues, Redy W. Lima, Ricardo Maneira, Rui Mindela, Samanta Semedo, Sandra Costa, Selma Uamusse, Shirley Van-Dúnem, Solange S. Pinto, Suzana Djiba, Ulício Cardoso, Ulika Franco, Ussumane Mandjam, Vítor Sanches, Vuza Ntoko, Zia Soares.»
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