«Há um tema recorrente na discussão sobre a extrema-direita que se pode resumir na frase: “isso é o que eles querem”. Devemos indignar-nos perante cada provocação da extrema-direita? “Não lhes dês palco, isso é o que eles querem”. Devemos fazer de conta que não reparamos nas suas provocações, para não lhes dar palco? “isso é o que eles querem; se não reagires eles aproveitam para ganhar espaço”.
O que está de errado nesta premissa, seja qual for a conclusão, é que passamos a determinar as nossas atitudes e decisões por aquilo que “eles” querem — mesmo que seja sob o pretexto de fazer exatamente o contrário daquilo que “eles” querem. E assim perdemos rasto ao fundamental: o que é que nós queremos? Nós — os defensores da democracia, do Estado de direito e dos direitos humanos — qual é a nossa vontade? Que agenda política queremos que seja a dominante? Que narrativa deve ser a nossa, inadulterada e independente das pressões, caprichos e provocações de adversários e inimigos?
Esta pergunta, por ser a fundamental, deveria ser a de mais fácil resposta para nós. Tem também de ser a que mais imediatamente temos na ponta da língua, sob pena de confundirmos matérias puramente táticas, e como tal mutáveis, com aquilo que para nós tem de ser estratégico ou, mais ainda do que isso, cardinal e imutável.
Felizmente, a resposta é simples: o que os defensores da democracia, do Estado de direito e dos direitos humanos querem é a defesa intransigente da democracia, do Estado de direito e dos direitos humanos. É isso que nos une, ainda antes de sermos de esquerda ou de direita, de cima ou de baixo, de trás ou da frente. É nossa a defesa intransigente das instituições democráticas. É nossa a defesa intransigente dos direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição. É nossa a defesa intransigente dos direitos humanos, de que ninguém possa ser discriminado por cor de pele, orientação sexual, origem étnica ou opinião. É nossa a defesa intransigente de que a democracia e o Estado de direito se fazem de pessoas concretas, que merecem e têm de viver sem medo, sem insegurança, sem ameaças.
E essa defesa que é nossa e nos deve unir para lá de todas as diferenças, tem de se fazer de forma permanente, assumida e clara. A própria noção de que deveríamos calibrar esta defesa em função dos desejos ou das táticas de outros já é em si mesma uma cedência. Causa por isso espanto que três deputadas da República — Beatriz Gomes Dias, Joacine Katar Moreira e Mariana Mortágua — tenham esta semana sido ameaçadas de morte sem que isso tenha gerado um coro unânime e imediato de condenação, da esquerda à direita. Causa por isso espanto que cidadãos e associações — incluindo a SOS Racismo e o Conselho Português de Refugiados — tenham sido incluídos nessas mesmas ameaças, e coagidas e intimidadas por uma manifestação de mascarados empunhando tochas — sem que tenha havido uma mais vigorosa reação dos órgãos de soberania.
Eu compreendo o que quer dizer o Presidente da República quando apela à “sensatez” na reação, e quando diz ser “tão condenável uma manifestação racista com contornos criminais contra deputados como contra outro cidadão”. Mas não por acaso nos EUA uma ameaça de morte a um congressista é imediatamente crime federal e merece visita dos serviços secretos mesmo que o autor dela seja maluquinho — porque um ataque às pessoas que transitoriamente representam a democracia é um ataque à democracia. Pouco importa em quem votámos, que diferenças ou que afinidades temos, as três deputadas que foram ameaçadas — duas delas mulheres negras, já por muitas outras vezes atacadas com discurso de ódio — são deputadas de nós todos e devemos-lhes que possam exercer o seu mandato em segurança, e em sossego para as suas famílias, que foram também visadas pelas ameaças.
Compreendo também — e espero verdadeiramente que seja o caso — que haja averiguações a fazer discretamente pelas forças policiais e de investigação. Mas também não por acaso, na Alemanha a agência de segurança que investiga este tipo de crimes se chama de Serviço Federal de Defesa da Constituição. Porque é de defesa da Constituição que se trata, contra grupos que desejam subvertê-la. E porque sabemos, nomeadamente através de copiosas e profundas investigações jornalísticas, que há ligações entre a extrema-direita portuguesa e os neo-nazis alemães (que ainda recentemente mataram políticos), e que os elementos que destes grupúsculos fazem parte já tiveram no passado participação em crimes violentos de índole racial e política. As investigações, por discretas que tenham de ser, não podem prescindir de uma sinalização política clara, por parte do governo e dos partidos parlamentares, de que a Constituição é mesmo para defender sem tergiversações contra os cultores da intimidação e da violência política — todos eles, venham de onde vierem, ainda que nos últimos anos em Portugal seja unicamente da extrema-direita que estejamos a falar.
O que é inaceitável não pode ser aceitado. Isso deve ser dito sem nenhuma hesitação, e logo à cabeça. O que é que “eles” querem? A única coisa que quero saber é que não vão conseguir — e ponto final.»
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