«Ainda nos idos de março, estava a pandemia no início, fiquei comovido com a forma como os portugueses se mobilizavam para proteger os seus mais velhos e doentes, que são os principais grupos de risco da covid. Rapidamente passou a comoção. Dada a histeria coletiva e a perceção totalmente distorcida do risco envolvido com a doença, convenci-me de que, afinal, a generalidade dos portugueses estava era preocupada consigo mesma ou, vá lá, com os seus familiares. Nada disto é científico, claro, eram perceções.
A reação pública, ou a falta dela, às mortes no lar de idosos de Reguengos de Monsaraz aumenta a minha convicção. Nesse lar houve um surto de covid, vários foram os infetados, não apenas entre os idosos, e acabaram por morrer 18 pessoas. No entanto, ficámos a saber, a maioria das mortes não resulta dessa doença, mas sim da falta de cuidados médicos. Os velhos morreram desidratados e, quando finalmente receberam assistência médica, tinham as suas doenças crónicas agravadas. Morreram porque foram abandonados à sua sorte. O que se seguiu? Gritos histéricos nas redes sociais? Não. Gritos histéricos dos partidos da oposição? Não. Palavras de conforto de Marcelo Rebelo de Sousa? Não. Mensagem grave, em direto para o telejornal das 20h, da Ministra da Saúde, da diretora-geral da Saúde ou da ministra do Trabalho e da Segurança Social? Não. Admito que me possa ter falhado alguma notícia, mas de facto não assisti a nenhuma comoção nacional. Nem pouco mais ou menos. Apenas nos disseram que o Ministério Público ia abrir um inquérito.
Esta ausência de choque com a morte de velhos abandonados à sua sorte mostra que não eram eles a nossa preocupação quando tirámos as crianças e jovens das escolas e nos enfiámos em casa. Mostra também que tão perigoso como a covid (ou, na verdade, mais) é o nosso medo. Mostra também o quão certeiro foi o Gato Fedorento quando em 2007 nos disse que os velhos não deviam ser despejados nas ruas, mas sim no Velhão, “o sítio onde deitamos os velhos fora quando já não precisamos deles.”
Neste momento, muitos velhos estão num regime de sequestro nos lares de terceira idade. Não podem, de facto, sair, porque se saírem a sua reentrada está vedada. Não podem receber visitas a não ser à distância, pelo que não podem sentir sequer um toque ou um carinho dos seus filhos. Como as visitas estão altamente condicionadas, a sua frequência é agora muito menor, apenas podendo ver os seus familiares de forma muito espaçada. Pelo menos em alguns lares, não sei se todos, a entrada está vedada a crianças até aos 12 anos de idade, pelo que nem grande parte dos netos podem ver.
O caso de Reguengos de Monsaraz leva-me a desconfiar que todas estas medidas não são para proteger os velhos, mas sim para preservar os responsáveis dos lares de eventuais chatices. Assim, podem sempre alegar que fizeram tudo o que era possível.
Não sei se não seria preferível a morte a tal sorte. De qualquer forma, seja com que intenção for, está na altura de perguntarmos com cada vez mais insistência: e se não houver vacina eficaz? Vamos manter os velhos sequestrados no lar durante quanto tempo? Até deixarem de reconhecer os netos?»
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