«“Aproveitar a posição pública do meu avô e invocá-lo para, depois, seguir o caminho inverso ao que ele defendia é usurpação de nome.” A frase é de António Arnaut, o único neto e homónimo do pai do SNS que aceitou falar ao Expresso — em nome da família — sobre o destino provável da Lei de Bases da Saúde. Confessa-se “preocupado”, mas ainda acredita na hipótese de um consenso à esquerda. Ana Maria Brito Jorge, viúva de João Semedo, está mais pessimista. “Foi visível a decisão de infletir caminho por parte de quem detém o poder”, diz ao Expresso. Resta o “desalento, a deceção, a incompreensão e a revolta”, conclui.
Foram testemunhas diretas do último trabalho político produzido por António Arnaut, jurista e fundador do PS, e João Semedo, médico e ex-líder do Bloco de Esquerda: uma proposta de nova Lei de Bases da Saúde para aprovar por um Parlamento onde a esquerda tinha maioria. Um novo dado político que abria a possibilidade de alterar a lei aprovada nos tempos do Governo Cavaco Silva e que abriu a porta às parcerias público-privadas.
Ana Maria esteve “sempre tão próxima” da tarefa de redação da proposta da lei de bases que pode acompanhar “de perto o desenvolvimento do pacto solidário” que uniu Semedo e Arnaut para “salvar o SNS”. Ambos estavam já gravemente doentes, mas “foram incansáveis, determinados, quase heroicos no seu esforço, alimentados pela certeza inabalável de estarem a abraçar uma causa justa e inadiável”, diz a viúva de João Semedo.
O único neto de António Arnaut não herdou só do avô o nome, mas também o interesse pelo Direito e pelo debate das questões jurídicas e políticas. “Era comigo e com o meu pai (António Manuel Arnaut, entretanto falecido) que o meu avô falava sobre aquilo que ele assumia ser o seu testamento político. Não me contaram o que ele pensava sobre o SNS: eu estava lá e falava com ele”, confessa ao Expresso.
A ideia central dos dois homens era clara: era necessário separar águas. “O SNS devia ser garantido a todas as pessoas pelo Estado e por ele deve ser gerido. Era decisivo garantir que a gestão do serviço público de saúde não caísse nas malhas dos interesses privados. Tão simples quanto isto, defendiam António Arnaut e o João nas suas conversas, nas suas intervenções, no que escreveram”, lembra Ana Maria Brito Jorge.
O neto de Arnaut confirma e acrescenta. “Não foi prometido ao meu avô acabar com as PPP na Saúde, embora fosse o que ele queria, não tenho dúvida”, disse. Mas “o essencial do seu projeto era a clara separação entre os sectores públicos e privados e o fim da concorrência na saúde”, conclui.
«Podia ter sido resolvido»
A proposta de Arnaut e Semedo foi concluída e deu entrada no Parlamento. Mas os dois autores acabariam por morrer (Arnaut em maio do ano passado e João Semedo dois meses depois) sem ver o desfecho da discussão na AR. “A vida tem destas coisas e aqueles dois homens, que continuaram mesmo a ser citados também no Parlamento, já não puderam assistir a tudo o que lá veio a desenrolar-se à vista de qualquer observador ou no segredo dos gabinetes”, diz Ana Maria. E o resultado foi uma inversão de rota. “A certa altura a ‘maré’ que tinha vindo a encher com a confluência de consensos, entrou em fase de refluxo”, diz a viúva de João Semedo. “Foi visível a decisão de infletir caminho por parte de quem detém o poder. O partido que governa quis e pôde, mas deixou de querer a partir de um dado momento.”
“Podia ter sido resolvido”, diz Ana Maria Brito Jorge, e mesmo com “tantos e tão variados” apelos, não foi possível ultrapassar “a teimosia entretanto retomada pelo partido do Governo”. Resta “o desalento, a deceção, a incompreensão, a revolta. Tudo palavras que o João não usaria, porque tinha a infinita capacidade de persistir na defesa daquilo em que acreditava. Nem tudo eu consegui aprender com o João”, conclui.
«Há dois PS»
António Arnaut “queria uma Lei de Bases da Saúde aprovada à esquerda. Este seria o ponto nevrálgico da ‘geringonça’: conseguir um pacto de regime nesta matéria e repetir o alcançado em 1979 com a primeira lei de bases. PS e PCP entenderam-se na altura. A esquerda pode e deve entender-se agora”, diz o neto.
Os ventos até pareciam de feição e “a mudança de ministro da Saúde foi um sinal claro de que o Governo pretendia seguir na linha dos objetivos do meu avô”, diz António Arnaut. “Marta Temido sabe para onde quer e precisa de ir e revejo-me completamente na proposta inicial do Governo (de Lei de Bases da Saúde)”.
Na verdade, as alterações introduzidas posteriormente pela bancada socialista mudaram o quadro e deixaram “preocupados” os herdeiros de António Arnaut. “Parece haver aqui dois PS: o de Marta Temido e o de Carlos César”, mas “a índole do SNS não pode ser desvirtuada pelo partido, a menos que mude de nome e deixe de se chamar socialista”, diz António Arnaut.
“Preocupa-me que possa haver um PS que faça perigar as promessas feitas ao meu avô e aos portugueses sobre a separação clara entre o sector público e o sector privado na saúde”, afirma o neto de Arnaut. “Aproveitar a posição pública do meu avô, invocá-lo e bater com a mão no peito a dizer que ‘o SNS é nosso’ e depois seguir o caminho inverso ao que ele defendia é usurpação de nome”. Um crime que, apesar de tudo, a família do fundador do PS acredita não ir ser cometido. “Estou convicto que António Costa vai querer e vai ser capaz de fazer perceber a um certo PS que quem está mal, muda-se”, diz António Arnaut. “Costa tem um partido e um Governo para gerir. Mas compreende bem a importância desta questão”, conclui.»
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