José Pacheco Pereira no Público de hoje:
«No quarto capítulo do Alice Através do Espelho, de Lewis Carrol, Alice está perdida num bosque e a noite aproxima-se. Encontra o par Tweedledee e Tweedledum, a quem pede ajuda. Mas estes não são capazes de a ajudar porque estão envolvidos num conflito qualquer. A querela é sobre uma ninharia e, quando estão preparados para se batalhar por essa ninharia, aparece um corvo negro e fogem cada um para o seu lado. Vamos admitir que Alice representa os portugueses, comparação que é um elogio aos portugueses. E que Dee é o PS, e Dum o PSD e o CDS, ou vice-versa, comparação que não é um elogio para ninguém. E que o “corvo negro” é a “crise” ou o Diabo. Olhemos pois, a esta luz sombria, a célebre “crise da direita”.
Há “crise da direita”? Há e faz parte da “crise de regime”. Por que razão a direita é ineficaz, quer na versão moderada de Rio, quer na versão agressiva de Cristas, quer nos micro-partidos da Aliança, da Iniciativa Liberal, ou do Chega!? Porque são como os dois Tweedle: iguais. Alice distingue-os só porque um tem escrito Dee e outro Dum no colarinho. O facto de se guerrearem também é irrelevante, porque percebe-se que são tão iguais que estão sempre a pegar-se um com o outro. Iguais no fundamental, peguilhentos no acessório. Tweedledee e Tweedledum.
Veja-se em detalhe essa igualdade. Quais são os dois aspectos mais estruturantes da política nacional? O “rigor orçamental” e o “cumprimento das regras europeias”. Na verdade, são uma e a mesma coisa, só que as “regras europeias” não são europeias, mas apenas as dos países que assinaram o Tratado Orçamental. O descalabro dos serviços públicos, o caos na saúde, o mau funcionamento da administração pública, a gestão dos restos orçamentais, a quebra do investimento público, a alta carga fiscal, tudo isto depende do principal, mas não é o principal, é o acessório. Como é que, no contexto do poder e da oposição, alguma vez a oposição, apenas criticando a performance da situação e não as suas opções de fundo, pode alguma vez ser alternativa? E como é que a direita pode fortalecer-se quando do outro lado há um partido, um primeiro-ministro e um ministro das finanças que fazem de forma mais consequente a mesma política que eles fariam? Sim, porque a política do “rigor orçamental” e do “cumprimento das regras europeias”, é não só de direita, como representa o núcleo duro da política de direita por essa Europa fora, que teve e tem o beneplácito dos socialistas. Tweedledee e Tweedledum.
A haver alteridade de política, ela devia manifestar-se no principal, nas causas, e não no acessório ou na gestão dos efeitos do principal. Porém, muito significativamente, estes aspectos centrais e causais são os menos discutidos no debate político entre o PSD, o CDS e o PS. Por uma razão muito simples, todos estão de acordo com os pilares da política que é seguida por Costa-Centeno e participam do “consenso europeu” sobre o qual o Presidente zela. Tweedledee e Tweedledum.
A partir desta igualdade essencial, o discurso da diferença procurado pela direita manifesta-se em mil temas que, desdobrados em mil questões, são a agenda comunicacional e política, mas nenhum permite uma crítica de fundo, que comece na raiz e depois passe para o resto da árvore. E, acima de tudo, há também um problema de legitimidade: o Tweedle sem poder não está inocente das principais opções que decorrem do “rigor orçamental” e das “regras europeias”. As políticas que agora revelam os seus efeitos perversos começaram quando o Tweedle que agora protesta tinha poder, e o que agora tem poder não o tinha à altura. A saúde está mal com Costa-Centeno? Paga-se o preço dos cortes de Passos. Os serviços públicos não funcionam com Costa-Centeno? Começou tudo nos anos da troika com o PSD e o CDS a governarem. Os impostos são altos? Pergunte-se a Passos, Portas e Cristas? Tweedledee e Tweedledum.
Acresce que um dos dois gémeos, não sei de Dee ou Dum, é mais simpático do que o outro, tira o dinheiro aos portugueses com impostos agressivos, mantém a desigualdade no mundo laboral, deixa o estado cair aos bocados, mas não insulta aqueles a que faz pagar por “viverem acima das suas posses”, distribui mais alguma coisa, e não quer fazer engenharia social como no tempo da troika-Passos-Portas. O outro Tweedle resmunga, “estragaste-me” o brinquedo, temos pois que batalhar. E batalham, batalham, fazem muito barulho, mas é uma fúria inconsequente. Tweedledee e Tweedledum.»
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