Como já aqui referi, este blogue publicará agora também textos que não são da minha autoria, como é hoje o caso com este de Miguel Serras Pereira.Num
texto publicado no Esquerda.net, intitulado “Vinte Anos Depois”, Francisco Louçã desenvolve sobre a queda ou derrubamento do Muro de Berlim algumas considerações um tanto desconcertantes.
Escreve, na primeira parte do comentário:
«Vinte anos depois da queda do Muro de Berlim, floresce assim a ideologia contentatória: o comunismo acabou, diz Saramago e repete, com gosto evidente, António Vitorino. Frágil ilusão, contudo, pois continuou a ser possível ser cristão depois da Inquisição, social-democrata depois da votação dos créditos de guerra e mesmo depois do assassinato de Rosa Luxemburgo, e até continuou a ser possível ser economista liberal depois da grande depressão de 1929. Cada experiência trágica tem muitas leituras e nunca ninguém tem a última palavra. Como é possível ser socialista depois da queda da União Soviética e do seu muro, do mesmo modo que é possível – e necessário – ser socialista depois do colapso do subprime e da criminalidade financeira que se tornou deslumbrantemente evidente com a crise de 2008 e 2009.» O que, se bem o leio, significa que a queda do muro foi um mal ou um momento de crise do socialismo – ainda que não torne impossível ser-se socialista, como os males que afectaram o capitalismo não impede que este tenha defensores, ou a Igreja fiéis apesar da Inquisição. A queda do muro teria sido, pois, uma dificuldade ou uma derrota a superar. Esta maneira de ver não se distingue em nada de fundamental da oficialmente sustentada pelo PCP e por todos aqueles para quem a derrocada do regime em vigor na ex-URSS e outros países do “socialismo realmente existente” são um retrocesso histórico e político, a reparar. E diz-nos, bem vistas as coisas, que, embora talvez sejam desejáveis, as liberdades democráticas não são condições essenciais da construção do socialismo, que um regime pode ser socialista ou uma superação avançada do capitalismo ao mesmo tempo que oprime os trabalhadores e o conjunto da população, que uma economia estatizada, colectivamente dirigida e possuída por uma camada burocrática que dispõe dos meios de produção e estabelece os critérios de distribuição, decidindo também do que destina ao consumo (desigual) e ao investimento, é menos opressiva e mais progressista do que a que vigora sob os regimes oligárquicos “ocidentais”.
Mas eis que, quando mentalmente nos ocupamos de refutar Louçã, dizendo-lhe que não há socialismo sem democracia, que a democracia é condição necessária do socialismo, etc., eis que FL - depois de um absolutamente inócuo parágrafo sobre a insuficiência dos julgamentos e a necessidade de compreender (cujo autor, creio, é La Palice, apesar de FL não o citar) - parece querer roubar-nos as palavras da boca ou do pensamento, e escreve:
«Compreender a derrocada de uma mentira, de um sistema social esgotado no privilégio e na desigualdade, na repressão e na censura, no militarismo e no Gulag. A queda do Muro foi o episódio final de uma agonia perante a tensão social insuportável. Mas também ensina que o socialismo só pode ser o contrário do Muro: liberdade contra a censura, responsabilidade contra o controlo sindical, todos os direitos sociais, incluindo o pluripartidarismo, a liberdade de formar sindicatos ou de fazer greve.» O que só pode significar que a queda ou derrubamento do Muro, longe de ser um obstáculo que a nossa convicção socialista deve superar pela força da convicção, só pode ser saudada como um momento de libertação, uma ocasião favorável ao combate pela emancipação dos trabalhadores, uma condição de posteriores avanços na luta pelo socialismo democrático (o único concebível, ainda que sob várias formas) ou, se assim se preferir, “democracia socialista”.
Em que ficamos, então? Como devemos avaliar em termos políticos este exercício de, numa só e a mesma breve página, se afirmarem duas teses antgónicas e entre as quais não há síntese dialéctica possível? Será esta a plataforma “dos socialistas de esquerda, mais precisos do que nunca”, que FL invoca nas últimas palavras do seu texto? Será esta a plataforma que FL defende como base do alargamento e reforço do BE?
Miguel Serras Pereira